sábado, 22 de novembro de 2014

Sertões encantados

(caio silveira ramos)

Prêmio Leia Comigo!(2007)
da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil- FNLIJ


Meu pai chegou com o recorte do jornal: um anúncio convocando os ex-alunos do Seminário de Pirapora do Bom Jesus para um encontro festivo.  No dia marcado, lá estávamos nós no carro, meu pai dirigindo, lembrando pelo caminho de histórias vividas há mais de quarenta anos.
Eu já conhecia muitas delas: minha avó morrera quando meu pai tinha sete anos. Ele disse adeus para o pai (que foi morar com o filho mais velho em São Paulo) e de mãos dadas com a irmã mais nova passou a viver em Itu com a família da mãe.  Quando meu pai completou onze anos, o tio fez o comunicado: ele seria encaminhado para aprender o ofício de sapateiro.  Meu pai não tinha nada contra sapatos, botas e afins, mas nos pés ele já calçava as palavras aladas dos livros que conseguia emprestado das freiras que o ensinaram o abecedário e outras vírgulas.  Acuado, mas coroinha maroto, empiedou os olhos e pediu, “quero ser padre”.  A tia, comovida, ralhou com os filhos, “vejam seu primo, tão piedoso, por que nem um filho meu foi abençoado com a vocação?”. Os primos não se importaram: gostavam dele como um irmão e no fundo sabiam que a vocação dele era bem outra. Ele só queria continuar calçando outras palavras para voar mais alto.  E não necessariamente para alcançar arcanjos e querubins.
Chegamos à Pirapora e subimos pelo velho caminho que levava ao Seminário.  Estacionamos o carro e fomos a pé, meu pai deixando a alma correr na frente aos pulos.  De acordo com o anúncio, os alunos deveriam usar crachás para facilitar a identificação.   Mas ao cruzarmos o portão, um grito saiu de um senhor de bigodes e cabelos brancos que estava reunido com outros senhores de cabelos brancos (e que com certeza, daquela distância, não conseguiam ler os nomes escritos no crachá do meu pai).  Mas podiam claramente reconhecer seu rosto transfigurado:
“E aí, rapaz! Continua lendo Os Sertões?”
Eu sabia que meu pai era fascinado pela obra de Euclides da Cunha desde menino. No Seminário, o acesso aos livros era um tanto restrito: havia uma espécie de index librorum prohibitorum em que certos alencares, machados, azevedos, eças e até lobatos eram sutilmente não recomendados ou simplesmente proibidos.  Mas se até o fantástico e o misterioso eram desaconselhados, não faltavam clássicos da literatura greco-romana, obras sobre vida de santos, compêndios de História Universal e História do Brasil, e alguns livros de aventura.  Daí que os meninos se esqueciam dos estudos de latim e grego, dos banhos frios, do despertar na madrugada e dos dias de jejum, piedade e oração, com autores que iam de Karl May a Júlio Verne e eram lidos por um colega na hora do almoço ou nas quintas e domingos de folga.  
Diferentemente de outros meninos que eram visitados pelos parentes em um dos finais de semana do mês (quando recebiam abraços, presentes e doces), meu pai era esquecido durante o ano todo, só retornando para Itu nas férias de janeiro.  Ele era aluno aplicado, goleiro voador, bamba de pião e papagaio, mas na solidão das folgas, ele se perdia por outros caminhos em busca de novas aventuras. Foi então que topou com Antonio Conselheiro, Beatinho, o temível Moreira César e milhares de jagunços, e se embrenhou sertão adentro.  E aquele livro árido, com seus barroquismos e ciências, desvendou ao meu pai-menino um País rico e miserável, generoso e cruel, místico e valente.    Mal sabiam os padres belgas de olhos azuis e sotaque afrancesado, que o garoto que preenchia os vazios dos dobrados da banda do Seminário com um velho bombardino, naqueles sombrios finais de semana encontrava (no mais insuspeito dos livros) muito mais do que análises da terra, do homem e da luta. Além de ensaios e aventuras, moravam ali, escondidos, o fantástico, o misterioso e os pecados proibidos.  
Por isso, ele se apaixonou pelo grito lancinado que aquelas páginas não abafavam.
Páginas escritas por um homem inconformado feito de angústia.

***

No encontro dos antigos alunos do Seminário de Pirapora, em 1990, os meninos de cabelos brancos se multiplicavam.
Falavam de partidas e jogos pendurados no tempo, de bolas de borracha moldadas com pente para o futebol de botão, dos grêmios de leitura, do salão de estudos, das Festas de São Norberto e do Bom Jesus, onde o batuque negro dos barracões profanos se misturava ao canto-chão e, juntos, embebedaram o sangue dos meninos para sempre.    E se algum daqueles velhos meninos se lembrava agora das músicas da banda ou das peças que meu pai tinha participado, aparecia outro que chegava na roda e perguntava: “diga, Miro, como anda Os Sertões?”.  
A maioria não seguiu a carreira religiosa – inclusive meu pai, que para o desespero da tia, disse que iria para São Paulo, não para usar batina e seguir no Seminário-Maior, mas para trabalhar como bancário, estudar Letras Clássicas e ser professor.  E quando algum colega perguntava “professor de quê?” e ele respondia “de Português”, já vinha a exclamação “claro que foi por causa d’Os Sertões !”, como se fosse uma senha para desvendar antigos sonhos, esquecer dos assuntos graves dos sessenta e poucos anos e disparar a corrida descalça atrás de uma bola de capotão no campo de terra.
Terminada a missa – na qual, para meu espanto, meu pai entoava com os colegas cantos-gregorianos seguindo uma partitura de notações para mim desconhecidas e indecifráveis –, foram aqueles meninos se despedindo dos colegas e de si próprios. E, entristecendo-se, lentamente vestiram suas armaduras de tempo e aceleraram seus carros pela estrada.
No caminho de volta, pouco conversamos.   Eu sabia que meu pai levava aquele menino que se embrenhou n’ Os Sertões, escondido no banco de trás.  E não queria fazer barulho para acordá-lo, tão exausto que ele estava pelo dia cheio.   Sabia também que por amor à palavra feiticeira daquele livro, o menino me tomaria nos braços – para que eu não me ferisse com a dureza do chão e o perigo das plantas espinhosas – até que eu estivesse pronto e pudesse me enveredar sozinho e apaixonado por outros sertões, mais poéticos e mais sonoros. Que ele machucaria tantas vezes a alma rasgada por baleias, tubarões, fabianos e paulo honórios para que meu corpo doesse mais sereno.   Que para centenas de crianças, seus filhos ou não, revelaria aqueles sertões e aquelas almas, apresentando D. Quixote, Zezé, Bentinho e o Visconde de Sabugosa (primo talvez de um tal conde de mesmo nome que aparece perdido nas páginas d’Os Sertões).  E que o menino descobriria que o misterioso adormecer de sua mãe doía tanto quanto aquele narrado nos engenhos de Zé Lins; que a solidão e o abandono no seminário eram as mesmas do coruja André Miranda, de Aluísio Azevedo.  
Mas pelo resto da vida, aquele menino voltaria muitas vezes ao Arraial de Canudos.   Naquele livro feito com a razão de um homem apaixonado, ele encontrou as vozes e as mãos ressecadas para protegê-lo da solidão, e a dor de um mundo inteiro despencada dos olhos de um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.  Naquele livro ele se agarrou às palavras e viveu por elas.    Por causa delas.
Com a liberdade de um sonho inventado.  

Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 7 e 21/11/2014

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Além do Mirante 2: O inventor de brinquedos







Gostaria de ser lembrado como um ser abençoado pela inocência. E que tentou mudar a feição da poesia.






poesia é voar fora da asa
(Manoel de Barros)