(caio silveira
ramos)
Prêmio
Leia Comigo!(2007)
da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil- FNLIJ
da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil- FNLIJ
Meu pai
chegou com o recorte do jornal: um anúncio convocando os ex-alunos do Seminário
de Pirapora do Bom Jesus para um encontro festivo. No dia marcado, lá estávamos nós no carro,
meu pai dirigindo, lembrando pelo caminho de histórias vividas há mais de
quarenta anos.
Eu já
conhecia muitas delas: minha avó morrera quando meu pai tinha sete anos. Ele
disse adeus para o pai (que foi morar com o filho mais velho em São Paulo) e de
mãos dadas com a irmã mais nova passou a viver em Itu com a família da
mãe. Quando meu pai completou onze anos,
o tio fez o comunicado: ele seria encaminhado para aprender o ofício de
sapateiro. Meu pai não tinha nada contra
sapatos, botas e afins, mas nos pés ele já calçava as palavras aladas dos
livros que conseguia emprestado das freiras que o ensinaram o abecedário e
outras vírgulas. Acuado, mas coroinha
maroto, empiedou os olhos e pediu, “quero ser padre”. A tia, comovida, ralhou com os filhos, “vejam
seu primo, tão piedoso, por que nem um filho meu foi abençoado com a vocação?”.
Os primos não se importaram: gostavam dele como um irmão e no fundo sabiam que
a vocação dele era bem outra. Ele só queria continuar calçando outras palavras
para voar mais alto. E não
necessariamente para alcançar arcanjos e querubins.
Chegamos à
Pirapora e subimos pelo velho caminho que levava ao Seminário. Estacionamos o carro e fomos a pé, meu pai
deixando a alma correr na frente aos pulos.
De acordo com o anúncio, os alunos deveriam usar crachás para facilitar
a identificação. Mas ao cruzarmos o
portão, um grito saiu de um senhor de bigodes e cabelos brancos que estava
reunido com outros senhores de cabelos brancos (e que com certeza, daquela
distância, não conseguiam ler os nomes escritos no crachá do meu pai). Mas podiam claramente reconhecer seu rosto
transfigurado:
Eu sabia que
meu pai era fascinado pela obra de Euclides da Cunha desde menino. No
Seminário, o acesso aos livros era um tanto restrito: havia uma espécie de index
librorum prohibitorum em que certos alencares, machados, azevedos, eças e
até lobatos eram sutilmente não recomendados ou simplesmente proibidos. Mas se até o fantástico e o misterioso eram
desaconselhados, não faltavam clássicos da literatura greco-romana, obras sobre
vida de santos, compêndios de História Universal e História do Brasil, e alguns
livros de aventura. Daí que os meninos
se esqueciam dos estudos de latim e grego, dos banhos frios, do despertar na
madrugada e dos dias de jejum, piedade e oração, com autores que iam de Karl
May a Júlio Verne e eram lidos por um colega na hora do almoço ou nas quintas e
domingos de folga.
Diferentemente
de outros meninos que eram visitados pelos parentes em um dos finais de semana
do mês (quando recebiam abraços, presentes e doces), meu pai era esquecido
durante o ano todo, só retornando para Itu nas férias de janeiro. Ele era aluno aplicado, goleiro voador, bamba
de pião e papagaio, mas na solidão das folgas, ele se perdia por outros
caminhos em busca de novas aventuras. Foi então que topou com Antonio
Conselheiro, Beatinho, o temível Moreira César e milhares de jagunços, e se
embrenhou sertão adentro. E aquele livro
árido, com seus barroquismos e ciências, desvendou ao meu pai-menino um País
rico e miserável, generoso e cruel, místico e valente. Mal sabiam os padres belgas de olhos azuis
e sotaque afrancesado, que o garoto que preenchia os vazios dos dobrados da
banda do Seminário com um velho bombardino, naqueles sombrios finais de semana
encontrava (no mais insuspeito dos livros) muito mais do que análises da terra,
do homem e da luta. Além de ensaios e aventuras, moravam ali, escondidos, o
fantástico, o misterioso e os pecados proibidos.
Por isso, ele
se apaixonou pelo grito lancinado que aquelas páginas não abafavam.
Páginas
escritas por um homem inconformado feito de angústia.
***
No encontro
dos antigos alunos do Seminário de Pirapora, em 1990, os meninos de cabelos
brancos se multiplicavam.
Falavam de
partidas e jogos pendurados no tempo, de bolas de borracha moldadas com pente
para o futebol de botão, dos grêmios de leitura, do salão de estudos, das
Festas de São Norberto e do Bom Jesus, onde o batuque negro dos barracões
profanos se misturava ao canto-chão e, juntos, embebedaram o sangue dos meninos
para sempre. E se algum daqueles
velhos meninos se lembrava agora das músicas da banda ou das peças que meu pai
tinha participado, aparecia outro que chegava na roda e perguntava: “diga,
Miro, como anda Os Sertões?”.
A maioria não
seguiu a carreira religiosa – inclusive meu pai, que para o desespero da tia,
disse que iria para São Paulo, não para usar batina e seguir no
Seminário-Maior, mas para trabalhar como bancário, estudar Letras Clássicas e
ser professor. E quando algum colega
perguntava “professor de quê?” e ele respondia “de Português”, já vinha a
exclamação “claro que foi por causa d’Os Sertões !”, como se fosse uma
senha para desvendar antigos sonhos, esquecer dos assuntos graves dos sessenta
e poucos anos e disparar a corrida descalça atrás de uma bola de capotão no
campo de terra.
Terminada a missa – na qual, para meu espanto, meu pai entoava com os
colegas cantos-gregorianos seguindo uma partitura de notações para mim
desconhecidas e indecifráveis –, foram aqueles meninos se despedindo dos
colegas e de si próprios. E, entristecendo-se, lentamente vestiram suas
armaduras de tempo e aceleraram seus carros pela estrada.
No caminho de
volta, pouco conversamos. Eu sabia que
meu pai levava aquele menino que se embrenhou n’ Os Sertões, escondido
no banco de trás. E não queria fazer
barulho para acordá-lo, tão exausto que ele estava pelo dia cheio. Sabia também que por amor à palavra
feiticeira daquele livro, o menino me tomaria nos braços – para que eu não me
ferisse com a dureza do chão e o perigo das plantas espinhosas – até que eu
estivesse pronto e pudesse me enveredar sozinho e apaixonado por outros
sertões, mais poéticos e mais sonoros. Que ele machucaria tantas vezes a alma rasgada
por baleias, tubarões, fabianos e paulo honórios para que meu corpo doesse mais
sereno. Que para centenas de crianças,
seus filhos ou não, revelaria aqueles sertões e aquelas almas, apresentando D.
Quixote, Zezé, Bentinho e o Visconde de Sabugosa (primo talvez de um tal conde
de mesmo nome que aparece perdido nas páginas d’Os Sertões). E que o menino descobriria que o misterioso
adormecer de sua mãe doía tanto quanto aquele narrado nos engenhos de Zé Lins;
que a solidão e o abandono no seminário eram as mesmas do coruja André
Miranda, de Aluísio Azevedo.
Mas pelo
resto da vida, aquele menino voltaria muitas vezes ao Arraial de Canudos. Naquele livro feito com a razão de um homem
apaixonado, ele encontrou as vozes e as mãos ressecadas para protegê-lo da
solidão, e a dor de um mundo inteiro despencada dos olhos de um velho, dois
homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil
soldados. Naquele livro ele se
agarrou às palavras e viveu por elas.
Por causa delas.
Com a
liberdade de um sonho inventado.
Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 7 e 21/11/2014