terça-feira, 3 de março de 2015

A viola e o espantalho

(caio silveira ramos)

Sou um espantalho.
Não daqueles de filmes de terror ou das histórias do Batman.  Se for para me remeter ao cinema, estou mais para o Espantalho do Mágico de Oz. E continuo à procura de um cérebro.
Mas a razão da identidade não é o espanto: é a feitura.
Sou feito de pedaços, pedaços das almas, rostos, corpos, visões e amores de quem vou encontrando pelo caminho.
Desde que nasci fui colecionando pessoas. Não para que elas me pertencessem, mas para que eu fosse remendado por elas.  Durante o dia, durante a noite, na vigília e no sono sonhado, uma multidão desfila sem parar na minha frente, costurando minha pele, escorrendo nas vielas do meu cérebro, se aproveitando da minha incapacidade de desamar: a vendedora de uma loja de brinquedos, o coleguinha da pré escola, a menina bonita fazendo a leitura do dia numa sala de aula da minha infância, o cobrador de ônibus, o motorista do táxi, a copeira do serviço, a professora de inglês, a mãe, o pai, a irmã, a mulher, o filho, a prima, a tia, a vó não conhecida.  Todos, todos, todos, de qualquer tempo, inesquecidos, flutuando, me compondo, me reamando.
Ultimamente, passei a usar tecnologias: na internet, os poemas criados por Maira Garcia passam a morar nas minhas ideias. Outra poeta, Marina Mendes, envia por e-mail suas-minhas dores mais profundas.  A fotógrafa Patricia Ide leva meus olhos para passear pelo mundo e me envia as visões dela-já-também-minhas pelo WhatsApp.  O blog de Brontops Baruq muda os descaminhos dos meus sonhos.
Ainda muito pequeno, a imagem de Pixinguinha na capa do volume número 2 da Coleção “História da Música Popular Brasileira” me chamou a atenção. Folheei o encarte, vi as fotos, encontrei o sorriso. Ouvi o disco, o som da flauta, o som do sax, o som da voz de Orlando Silva se misturando aos instrumentos. As melodias do disco se misturando aos sorrisos das páginas do encarte, o sorriso meu se recriando na boca.  Quando aprendi a ler, entendi emocionado a inscrição ao lado da foto da capa: “Este homem é um poema”. 
E minha alma se amoldou àquela poesia. 

***
Eu já tocava um pouco de violão, quando a voz me veio.  Cantando um samba que eu não sabia de que em era, a voz me veio. Claro, o som que saía de mim era de menino. Nove, dez anos.  Mas havia uma doçura na busca das palavras, uma tentativa de aveludamento do meu timbre agudo de pouco volume.  O ritmo se fez outro.  Um ritmo que às vezes acelerava, como se fugisse tímido. E que impunha ao violão uma cadência que obrigava meus dedos a procurar uma batida que eu desconhecia.   Minha irmã Ruth desvendou:
“Você está parecendo o Paulinho da Viola.”
Então fui conferir o nome e a figura. E percebi que já tinha visto o sambista na TV. E a voz e a imagem se fundiram. 
O som do samba agora saía daquela imagem. E o samba se chamava “Não é assim”.  Fazia parte do caderno de violão da irmã Ruth? Podia ser, mas como eu sabia que o samba tinha que ser cantado com aquele jeito intimidado? Já teria ouvido no rádio? Seria um tema de novela?
“Não é assim” se tornou um dos meus hinos – não cantado em altos brados (que a música pedia justamente o contrário disso) -, mas interpretado com a cadência, com a batida que Paulinho da Viola me ensinava à distância.  E junto caminhava uma doçura humilde, mas altiva, acompanhada da timidez de um fechar de olhos e do encabulamento de um sorriso discreto.  Aquele samba de Paulinho da Viola era uma verdadeira carta de intenções para toda minha vida: a cadência, a batida, a busca da doçura humilde e altiva, a timidez e o encabulamento não seriam dali em diante somente instrumentos do samba.   Seriam os alimentos que passariam a coordenar meus músculos, meu pensamento, minha voz, minha maneira de conceber e entender o amor.
Outros sambas vieram de Paulinho da Viola.   Outros sambistas vieram com outros sambas diversos: sincopados, risonhos, candentes, rasgados: compositores e composições me tecendo, me remediando, me espantando.  Mas aquele jeito embebedado com “Não faz assim” enraizou-se em mim e eu me tornei um pouco aquele samba.
Mais tarde eu descobri que não era apenas Paulinho da Viola que emprestava seu jeito a “Não faz assim” e me contaminava junto.  Havia ali, uma doçura-além que não vinha dele, mas que eu já sentia que viajara para dentro de mim.  Havia entre os versos um contracanto, um lalaialaiá sereno que embalava a canção toda. E aquele voz – eu soube bem depois – era de Dona Ivone Lara.   Então, se no dia a dia meu jeito se afeiçoou a Paulinho da Viola, meus sonhos se abrigaram no colo daquela senhora.
E de viola em viola, de laras em laras, eu continuo me espantalhando.  Não um espantalho de afugentar, mas um que estende os braços e fala com passarinhos, tal qual o personagem cantado pelo próprio Paulinho da Viola em “Vela no breu”, samba composto por ele e por Sérgio Natureza.
E se não é assim que se faz, me perdoem.
É assim que me faço. 

Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 13 e 27/2/2015