(caio
silveira ramos)
Sou um
espantalho.
Não daqueles de
filmes de terror ou das histórias do Batman.
Se for para me remeter ao cinema, estou mais para o Espantalho do Mágico
de Oz. E continuo à procura de um cérebro.
Mas a razão da
identidade não é o espanto: é a feitura.
Sou feito de pedaços,
pedaços das almas, rostos, corpos, visões e amores de quem vou encontrando pelo
caminho.
Desde que nasci fui colecionando pessoas. Não para que elas me pertencessem, mas para que eu fosse remendado por elas. Durante o dia, durante a noite, na vigília e no sono sonhado, uma multidão desfila sem parar na minha frente, costurando minha pele, escorrendo nas vielas do meu cérebro, se aproveitando da minha incapacidade de desamar: a vendedora de uma loja de brinquedos, o coleguinha da pré escola, a menina bonita fazendo a leitura do dia numa sala de aula da minha infância, o cobrador de ônibus, o motorista do táxi, a copeira do serviço, a professora de inglês, a mãe, o pai, a irmã, a mulher, o filho, a prima, a tia, a vó não conhecida. Todos, todos, todos, de qualquer tempo, inesquecidos, flutuando, me compondo, me reamando.
Desde que nasci fui colecionando pessoas. Não para que elas me pertencessem, mas para que eu fosse remendado por elas. Durante o dia, durante a noite, na vigília e no sono sonhado, uma multidão desfila sem parar na minha frente, costurando minha pele, escorrendo nas vielas do meu cérebro, se aproveitando da minha incapacidade de desamar: a vendedora de uma loja de brinquedos, o coleguinha da pré escola, a menina bonita fazendo a leitura do dia numa sala de aula da minha infância, o cobrador de ônibus, o motorista do táxi, a copeira do serviço, a professora de inglês, a mãe, o pai, a irmã, a mulher, o filho, a prima, a tia, a vó não conhecida. Todos, todos, todos, de qualquer tempo, inesquecidos, flutuando, me compondo, me reamando.
Ultimamente,
passei a usar tecnologias: na internet, os poemas criados por Maira Garcia
passam a morar nas minhas ideias. Outra poeta, Marina Mendes, envia por e-mail suas-minhas dores mais
profundas. A fotógrafa Patricia Ide leva
meus olhos para passear pelo mundo e me envia as visões dela-já-também-minhas
pelo WhatsApp. O blog
de Brontops Baruq muda os descaminhos dos meus sonhos.
Ainda muito
pequeno, a imagem de Pixinguinha na capa do volume número 2 da Coleção
“História da Música Popular Brasileira” me chamou a atenção. Folheei o encarte,
vi as fotos, encontrei o sorriso. Ouvi o disco, o som da flauta, o som do sax,
o som da voz de Orlando Silva se misturando aos instrumentos. As melodias do
disco se misturando aos sorrisos das páginas do encarte, o sorriso meu se
recriando na boca. Quando aprendi a ler,
entendi emocionado a inscrição ao lado da foto da capa: “Este homem é um
poema”.
E minha alma se
amoldou àquela poesia.
***
Eu já tocava um
pouco de violão, quando a voz me veio.
Cantando um samba que eu não sabia de que em era, a voz me veio. Claro,
o som que saía de mim era de menino. Nove, dez anos. Mas havia uma doçura na busca das palavras,
uma tentativa de aveludamento do meu timbre agudo de pouco volume. O ritmo se fez outro. Um ritmo que às vezes acelerava, como se
fugisse tímido. E que impunha ao violão uma cadência que obrigava meus dedos a
procurar uma batida que eu desconhecia.
Minha irmã Ruth desvendou:
“Você está
parecendo o Paulinho da Viola.”
Então fui
conferir o nome e a figura. E percebi que já tinha visto o sambista na TV. E a
voz e a imagem se fundiram.
O som do samba
agora saía daquela imagem. E o samba se chamava “Não é assim”. Fazia parte do caderno de violão da irmã
Ruth? Podia ser, mas como eu sabia que o samba tinha que ser cantado com aquele
jeito intimidado? Já teria ouvido no rádio? Seria um tema de novela?
“Não é assim” se
tornou um dos meus hinos – não cantado em altos brados (que a música pedia
justamente o contrário disso) -, mas interpretado com a cadência, com a batida
que Paulinho da Viola me ensinava à distância.
E junto caminhava uma doçura humilde, mas altiva, acompanhada da timidez
de um fechar de olhos e do encabulamento de um sorriso discreto. Aquele samba de Paulinho da Viola era uma
verdadeira carta de intenções para toda minha vida: a cadência, a batida, a
busca da doçura humilde e altiva, a timidez e o encabulamento não seriam dali
em diante somente instrumentos do samba.
Seriam os alimentos que passariam a coordenar meus músculos, meu
pensamento, minha voz, minha maneira de conceber e entender o amor.
Outros sambas
vieram de Paulinho da Viola. Outros
sambistas vieram com outros sambas diversos: sincopados, risonhos, candentes,
rasgados: compositores e composições me tecendo, me remediando, me
espantando. Mas aquele jeito embebedado
com “Não faz assim” enraizou-se em mim e eu me tornei um pouco aquele samba.
Mais tarde eu
descobri que não era apenas Paulinho da Viola que emprestava seu jeito a “Não
faz assim” e me contaminava junto. Havia
ali, uma doçura-além que não vinha dele, mas que eu já sentia que viajara para
dentro de mim. Havia entre os versos um
contracanto, um lalaialaiá sereno que embalava a canção toda. E aquele voz – eu
soube bem depois – era de Dona Ivone Lara.
Então, se no dia a dia meu jeito se afeiçoou a Paulinho da Viola, meus
sonhos se abrigaram no colo daquela senhora.
E de viola em
viola, de laras em laras, eu continuo me espantalhando. Não um espantalho de afugentar, mas um que
estende os braços e fala com passarinhos, tal qual o personagem cantado pelo
próprio Paulinho da Viola em “Vela no breu”, samba composto por ele e por
Sérgio Natureza.
E se não é assim
que se faz, me perdoem.
É assim que me
faço.
Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 13 e 27/2/2015
Publicado no Jornal de Piracicaba em 13 e 27/2/2015