sábado, 15 de agosto de 2015

Fuga de amor

(caio silveira ramos)

Ele já tinha me falado há um mês.  E sua fala vinha acompanhada de todas as regularizações verbais possíveis e lógicas, pois assim se constrói o falante: “se você não sesse meu pai, eu ia fugir para encontrar você”.
Mas dessa vez a frase veio escrita à mão em um cartão de Dia dos Pais. A professora disse para as crianças não escreverem somente infinitos “te-amos”. E íntimo das letras desde que suas mãos ainda ajudavam nas caminhadas pela casa, ele não precisou de sugestões e auxílios para continuar seu texto: de seu lápis solitário, o verbo renasceu com todas as suas irregularidades, afinal, “ele já fez sete anos” e para escrever tentou se vestir com algumas poucas normas da Língua que o enrodilhará pela vida afora:

Papai, te amo! Te adoro!
E também seus gols são muito belos
Se eu tivesse outro pai eu ia fugir para achar você.
João Pedro

Me deliciei com o sentimento, com a ideia, com o poema: o ser amado, mais que obrigatório, escolhido.  A possibilidade de uma existência paralela onde o destino é recusado. A transgressão apaixonada da fuga na busca do único amor possível. E a vocação inata para tragédia (e ainda shakespeariana): no mesmo texto, Hamlet, Romeu e Julieta.
Ao reler o cartão na frente dele, o pequeno pareceu se emocionar.  E seu olhar se tingiu de transparências. Mas logo disfarçou, saiu correndo pela sala em seu futebol imaginário, locutor-jogador-e-bola nas mesmas pernas e gargantas apaixonadas.
E eu saí para o trabalho, vendo o menino alardear um de seus bordões: “olha aí!”, enquanto a bola cruzava a porta da cozinha estufando a rede de sonhos (e quase atingindo um vaso de flores).
E eu saí para o trabalho. Orgulhoso por saber que pelo menos um dos meus gols era realmente belo.

Cartão original - autor: João Pedro




Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 14/8/2015





O canto da bruxa

(caio silveira ramos)

Quando nasci, um anjo torto desses que vivem de sombra e água fresca resolveu fazer cosquinhas na cabeça da minha irmã Raquel, que deu para cismar que já não era mais a pituquinha do pai. Na verdade, nada mudou muito na família, a não ser pelos cuidados normais que um bebê recém-nascido provoca numa casa que já tem três meninas de 4, 6 e 8 anos.  Mas passado tanto tempo, Raquel se culpa profundamente por coisas que toma hoje como grandes maldades que teria feito comigo para tentar recuperar seu reinado.   Eu acho muita graça nessas lembranças, assim como me divertia com tudo que ela fazia na época.
Me divertia com tudo... Pensando bem, menos com uma coisa.
Raquel devia ter cerca de oito anos quando ganhou dois “Discões”.   O tal “Discão” era uma reunião, num mesmo LP de doze polegadas, de várias histórias da clássica “Coleção Disquinho”.  Produzida pela gravadora Continental, a Coleção apresentava, numa série de compactos coloridos, fábulas e contos de fada narrados por meio de textos recheados de rimas e de canções ricamente orquestradas que se tornaram muito populares nas décadas de 1960 e 1970.
Pois num daqueles LPs, Raquel descobriu esfregando as mãozinhas, que a história d’ “A bela adormecida” me botava um medo de tapar os ouvidos e implorar: “tira, tira, tira isso!”
A questão toda não estava na história em si, mas na bruxa que aparecia logo no começo jogando a maldição do sono eterno sobre a princesa ainda bebê. E depois, lá pelo meio do disco, ainda cantava a terrível “Canção da velha fiandeira” – “lalilalá-lilalá-lilalá, girando, girando, não paro de girar, trabalho, cantando, na roda de fiar” –, que atraía a jovem princesa para espetar seu dedo no fuso da roca e dormir por cem anos.
Eu já tinha pavor de bruxas, mesmo antes daquele disco.   Pelo que lembro, todas as vezes em que voei para o meio da cama dos meus pais durante a madrugada, a causa foi sempre a mesma: os terríveis pesadelos com bruxas. E bruxas antropófagas.
Talvez só Freud possa explicar esses meus terríveis sonhos de infância com bruxas tentando me devorar.  Só Freud. E talvez uma amiga de Dona Marica, que de vez em quando aparecia para ajudar a passar roupa e contar tenebrosos contos de bruxas para a molecada.   Não, a culpa não é dela: eu já tinha pesadelos com bruxas antes. Ela só me deu um empurrãozinho para dentro da casa de doces e me emprestou o ossinho de frango para tentar iludir a faminta feiticeira. Bem, talvez a culpa seja dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm. Mas só Freud mesmo pode explicar.
A bruxa do desenho de Walt Disney era má, mas tinha estilo e certa beleza exótica.  No filme “Malévola”, ela se mostra ainda mais bela, afinal é interpretada por Angelina Jolie, que se estivesse menos magra estaria ainda mais estonteante.  Mas, ah, me desculpe, ela é no fundo boa e injustiçada.  Bruxa tem que ser bruxa, e aquela do disco da Raquel, só pela voz, já diz para que veio.  Ela é irresistivelmente má e sarcástica.  E deve ser velhíssima, muito feia e cruel. E com um rancor medonho que já se revela na fala inicial: “não me convidaram, no entanto eu vim. Mesmo assim”.
Raquel percebeu meu “glup”, assim que ouvi aquela frase. E lá pelo meio do disco, enquanto a voz do canto da bruxa crescia na medida em que a jovem princesa se aproximava do porão, eu ia parar embaixo da escrivaninha do meu pai. E minha irmã descobria que tinha o poder.
E que dali em diante, estava de novo no comando.

***
Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha foi um grande compositor da música brasileira.    Quando formou o “Bando de Tangarás” com Noel Rosa, Almirante, Henrique Brito e Alvinho, passou a adotar também o pseudônimo “João de Barro”.   Mas qualquer que fosse o nome usado, ele não abria mão do talento criador, tanto que, além de escrever a letra de “Carinhoso” para a melodia de Pixinguinha, foi um dos reis das marchinhas de São João e de Carnaval (com seu estilo “antropofágico-pré-tropicalista”), e também precursor da Bossa Nova.  Sozinho ou com parceiros, compôs clássicos do calibre de “As pastorinhas” (com Noel), “Copacabana” “Balancê”, “Touradas em Madri”, “Yes, nós temos bananas”, “Chiquita Bacana”, “Capelinha de Melão” (as seis com Alberto Ribeiro), “A saudade mata a gente” (com Antonio Almeida), “Pirata da perna de pau”, “Vai com jeito” e muitos outros.  
Quando o longa-metragem de Walt Disney “Branca de Neve e os sete anões” chegou ao Brasil, Braguinha participou ativamente da dublagem e também compôs as letras em português.  O mesmo aconteceu com outras produções da Disney como “Pinóquio”, “Dumbo” e “Bambi”.   Assim, não é de se espantar que ele estivesse à frente da produção da “Coleção Disquinho”, da gravadora Continental, na década de 1960.    Além de adaptar alguns dos mais fantásticos contos infantis de todos os tempos, ele compôs várias canções para aquelas histórias, o que imprimiu à série um sabor gostosamente brasileiro (e novamente “antropofágico”). Só para lembrar, são dele as canções “Pela estrada” (“pela estrada fora eu vou bem sozinha, levar esses doces para a vovozinha”) e “Lobo mau” (“eu sou o lobo mau, lobo mau, lobo mau, eu pego as criancinhas pra fazer mingau”), de “Chapeuzinho Vermelho”.  Canções tão enraizadas na nossa imaginação, que até nos parecem hoje de autoria desconhecida e popular.
Além de escrever, adaptar e compor, Braguinha conseguiu atrair para a “Coleção Disquinho” gente talentosa de todas as áreas: dubladores, narradores (principalmente narradoras, como Sônia Barreto, Simone Moraes e Nely Martins), orquestras, compositores, autores, roteiristas, todos de primeira linha.  Para se ter uma ideia, as músicas receberam arranjos e regências dos míticos Radamés Gnattali, Francisco Mignoni e Severino Araújo.
Entre os bambas escalados por Braguinha, estava a professora de música, compositora e escritora Elza Fiuza.   E foi Elza quem adaptou para o “disquinho colorido”, “A bela adormecida”.  E foi Elza quem criou os diálogos todos para aquela história. Inclusive as terríveis falas da bruxa e a canção da velha fiandeira que tanto teimavam em frequentar meus pesadelos.
Estranhamente, porém, de tanto minha irmã Raquel colocar o disco para rodar na vitrola, fui perdendo o medo de bruxas e daquela faixa.  E fui, sem saber por que, me apaixonando por aquela canção anteriormente tão assustadora.
Muitos anos depois, enfeitiçado pela voz de Clementina de Jesus, compreendi meu fascínio por aquela música.
E descobri que havia muitas outras bruxas em meu caminho.

***
Trabalhei durante dez anos com F. Baruq e, apesar dos angelicais olhos azuis, ela é daquelas que perde o amigo (e qualquer parente), mas não perde a piada.  Por ser um dos seus alvos preferidos – ela não perdoa qualquer deslize do meu daltonismo – acho que F. Baruq gosta de mim como de um parente próximo.  Daí porque não sei o que me deu na cabeça de contar a ela a história dos temores profundos que eu sentia quando minha irmã Raquel colocava para rodar na vitrola a cantiga da velha fiandeira “interpretada” pela bruxa do disquinho d’“A Bela Adormecida”: “fiando, fiando não paro de fiar...”. 
Pois F. Baruq arranjou a gravação em meio digital e passou a repetir a cantiga sempre que uma oportunidade surgia. E mesmo quando não tinha a gravação por perto, cantava para me provocar, “fiando, fiando”, ainda que tenha descoberto que o correto era “girando, girando, não paro de girar”.  Para entrar na brincadeira, eu recriava meus medos antigos e quase me metia embaixo da primeira mesa que aparecesse.  A palavra “fiando” virou entre nós um verdadeiro código de falsas ameaças e zombarias inocentes.  E o auge da brincadeira aconteceu em um 31 de outubro, durante o aniversário de uma amiga: quando entrei no apartamento em que ocorria a festa, F.Baruq e outra colega, ambas usando vistosos chapéus de bruxa, entoaram “fiando, fiando” entre risos e letras alteradas cheias de graça. Mais uma vez entrei na brincadeira e simulei sustos e traumas. Mas a verdade é que há muito tempo eu não temia mais a música. Pelo contrário: sentia uma profunda emoção ao ouvi-la.
Desde menino eu conhecia a figura de Clementina de Jesus, mas foi somente durante minhas peregrinações pelos sebos de discos, nos intervalos das aulas de Direito, que me dei conta da sua grandeza.  Quando encontrei o LP “Clementina de Jesus”, de 1966, entre tantos deslumbramentos – começando pela capa –, me encantei com a singeleza de um cântico folclórico natalino de pastoril chamado “Vinde, vinde companheiros”.   O “laialaiá” da “Rainha Quelé” se iniciava ao longe, como que chamando docemente os pastores e as pastoras. E o canto crescia, crescia, ainda muito doce, como se todos se aproximassem ternamente para ver o Menino nascido.
Emocionado, me veio de repente outro laialaiá distante, que foi chegando, chegando sem medo.  Intrigado, me dei conta que quem se avizinhava era aquela antiga canção da bruxa de “A Bela Adormecida”, que também se iniciava com uma voz envelhecida e distante. E que depois crescia e atraía a princesa para os porões do palácio.  Mas o canto que agora chegava e me tomava pela mão e pelos ouvidos nem de bruxa mais era. Era um “canto de trabalho” entoado por uma velha fiandeira de um Brasil rural e profundo, semelhante a tantos outros cantos espalhados por Clementina. Vozes velhas, distantes, embolando aspereza, doçura e encantamentos:

Girando, girando
Não paro de girar
Trabalho, cantando,
Na roda de fiar

A velha fiandeira
Trabalha sossegada
A noite inteira
Na roda encantada

Girando, girando...

E girando, girando, aquela cantiga não vinha mais até mim nascida dos porões de um palácio de uma Europa medieval.  Girando, girando, o canto da velha fiandeira - criado pela sabedoria dos ouvidos e da imaginação de Elza Fiuza – se misturava à voz sagrada de brandura e desespero de Rainha Quelé e brotava de outros porões, de outros pesadelos, de medos e pavores concretos gravados na carne. Aquelas vozes envelhecidas e torturadas revelavam um país gestado nos porões dos navios negreiros, onde as bruxas eram os próprios homens. Onde não apenas as pontas dos dedos eram feridas, mas o corpo todo.
Onde o sono se chamava morte.
Ou um pesadelo que durou muito mais que cem anos.


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em  3, 17 e 31/7/2015