terça-feira, 27 de outubro de 2015

O homem do cata-vento

(caio silveira ramos)

Sabe a Deise? É, a Deise, amiga inseparável da minha irmã Raquel. Isso mesmo, as duas sempre juntas, sempre falando-rindo-falando, felizes da vida: a falta de assunto nunca apareceu para elas. Isso, conhece? Pois é, foi ela quem contou que tinha um professor de Inglês que dava aulas individuais ou no máximo para duas pessoas. A Deise tinha aulas com ele uma vez por semana e comentou sobre o irmãozinho assim-assado da melhor amiga: “o senhor precisa ver!”.  Depois disso, a Deise, sempre risonha e generosa, falou pra mim: “Dr. Ruben quer conhecer você. Disse para levar o boletim.”
E eu fui com minha mãe, numa noite de quarta-feira, até a rua Alferes, quase esquina com a Dom Pedro II. Ali era a casa do Dr. Ruben Carvalho, pesquisador internacionalmente reconhecido e Professor Catedrático de Fitopatologia e Microbiologia Agrícola da ESALQ, aposentado fazia muitos anos.  Mas naquela noite ele disse, apenas, “aposentado”.  E também que seu médico recomendara que, aos 77 anos, deveria fazer alguma atividade para exercitar a mente.  Por isso ele tinha resolvido dar aulas de Inglês para alguns alunos recomendados por pessoas conhecidas.  
Naquele primeiro contato tive um pouco de medo: Dr. Ruben era um homem grande, de rosto redondo e nenhum fio de cabelo na cabeça. Usava óculos de aro grosso, escuro e quadrado, e fumava um cigarro longo. E parecia muito sério e educado. Olhou meu boletim com atenção e perguntou se eu poderia vir às quartas-feiras, às três horas da tarde, para começar as aulas.  Minha mãe, pedindo desculpas, indagou sobre o preço e ele serenamente disse que não cobrava nada. E emendou: “é ele quem está me fazendo o favor: as aulas fazem bem para mim”.
Logo no primeiro dia, todos os meus medos se perderam pelo ar e não foram nunca mais vistos.  Nem mesmo pelo galinho-cata-vento que o próprio Dr. Ruben tinha construído para enfeitar o quintal em declive, e que girava bem perto da edícula de teto baixo dividida em dois cômodos, ambos com grandes janelas.
O primeiro cômodo abrigava uma mesinha que servia para passar roupas, mas que muitas vezes foi utilizada para os estudos da minha irmã Ruth, que me fazia companhia nas idas e vindas para as aulas. O segundo – que já tinha sido uma oficina de marcenaria para os trabalhos manuais e artísticos do professor –, agora era usado como sala de aula, decorado apenas com uma mesa de madeira (provavelmente feita por ele mesmo) e uma lousa pendurada na parede caiada. Nós nos sentávamos frente a frente, e eu, depois de descobrir seus títulos acadêmicos e sua importância nos meios científicos, ficava me perguntando como um homem tão importante, que tinha dado aulas e conferências em tantos outros países, e ainda tivera como mentor o grande pesquisador americano Edwin E. Honey, podia tratar com tamanha deferência um menino que ainda usava shorts
Um menino a quem o Professor Doutor dava aulas de Inglês.
Um menino a quem o Professor Doutor chamava simplesmente de Cainho.

***
Nos dias de chuva, me lembro do Dr. Ruben Carvalho e seu sorriso aberto junto com o portão. E de seu guarda-chuva enorme me protegendo enquanto desviávamos dos canteiros incrustados no pátio de pedras lisas. E depois, quando passávamos pelo portão alto, descíamos pela rampa do quintal sob os giros molhados do galinho-cata-vento e chegávamos à edícula onde ficava a sala de aula.   Eu via pelo janelão os verbos irregulares se misturando à chuva grossa, até que chegavam, numa bandeja de prata, uma garrafa de Guaraná Antárctica e bombons de chocolate. E os verbos irregulares saiam da chuva.
Me lembro dele também ao me encontrar num porta-retrato morando na casa materna: a foto tirada por ele, o sorriso tímido dos doze anos, as lentes dos óculos escurecidas pela claridade, a pastinha, com o caderno e as apostilas datilografadas, abrigada em frente ao peito.
Me lembro do Dr. Ruben Carvalho quando alguém abre uma garrafa de vinho do Porto. Me acho de novo nas visitas das férias, eu e minha mãe levando lembranças de agradecimento e flores para dona Maria da Glória. Na sala, eu sem jeito nas poltronas elegantes, as mãos sem saber aonde ir, a voz sem saber o que falar. Então era servido um calicezinho de vinho e bombons recheados de licor. Eu comendo devagar, mordendo uma pontinha todo educado, o licor escorrendo pelos dedos e querendo escapar pelo canto da boca. As mãos ainda mais perdidas, o que fazer, o que fazer?, um lenço saindo do bolso, o licor secando nos dedos. Na hora da despedida, tudo certo: o licor era tão encantado que as mãos já estavam limpas para os cumprimentos.
Penso no meu avô ao me lembrar do Dr. Ruben Carvalho: depois de dois anos, o mesmo médico que disse para ele dar aulas, recomendou que era hora de parar.  Nos despedimos cheios de tristeza e os verbos irregulares se perderam na enxurrada.  Mas, três anos depois, quando passei no vestibular, ele veio me fazer uma visita.  Elegante como sempre. E ainda mais. Assim como tinha sido meu avô, mesmo nos tempos mais difíceis: chapéu de feltro, paletó, gravata-borboleta e uma bela bengala.  E Dr. Rubens trouxe flores para minha mãe, conversas para meu pai, bombons para a família e um cartão para mim, que guardo até hoje e releio sempre que posso.
A lembrança do Dr. Ruben de Souza Carvalho, pesquisador brilhante e antigo Professor Catedrático de Fitopatologia e Microbiologia Agrícola da ESALQ, se despedaça pelas ruas da cidade: nenhuma delas lhe faz uma homenagem. Mas não importa, pois se as ruas guardam os nomes, também perdem rapidamente a memória.
 Passeio com os dedos pelo cartão e as palavras escritas à caneta pelo meu velho professor de Inglês, feito o licor numa tarde de férias, escorrem pela minha mão.  
Não preciso de lenços nem da água da chuva: gentis como sempre foram, Dr. Ruben e suas palavras já se descolaram da minha pele.
E sem pressa, escapam para dentro do meu peito.


Ilustração; Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em  11 e 25/10/2015


Histórias das fotos de uma menina

(caio silveira ramos)

Talvez seja muito cedo. Ainda muito cedo. Eu não a conheço, mas preciso falar sobre ela.  Helloysa, Eloísa, Heloísa, Helô: ela.
Mas ainda é muito cedo: Heloísa tem dois anos.
Mas Heloísa tem dois anos e daqui a pouco será moça, morará sozinha, viajará até Paris, passeará em Lisboa.  Eu preciso falar sobre ela agora. Antes que ela ganhe o mundo.
Chegou assim, com dois anos e muitas histórias.  Falando pelos cotovelos, balançando os cachinhos, revirando a vida dos compadres e de três gatos abismados.  Chegou com três DVDs de suas músicas e seus filmes preferidos.  Ainda não a conheço, mas já vou avisando: não sou fã do “Patati Patatá” e cismo com a canção da bolacha de água e sal do “Palavra Cantada”.  Mas gosto da “Peppa Pig” e das músicas do Cocoricó. Vou cantar para ela “Nos dias quentes de verão” e “Chuva, chuvisco, chuvarada”: vamos comer bolo de cenoura com cobertura de chocolate quente e banana saída do forno com açúcar e canela: que a bolacha de água e sal sirva apenas quando tivermos dor de barriga.
Ainda não a conheço. Ou só a conheço pelas fotos. Então vamos falar sobre as fotos na ordem que chegaram para mim. Do jeito que Heloísa chegou. Histórias:

Foto 1: É ela! E é linda. Está frio no parque e Heloísa usa um conjunto vermelho.  Ela parece muito feliz e divide o balanço com uma boneca. Ao fundo, o compadre observa a alegria e segura uma sacola de plástico com a mão esquerda. Não dá para ver o que tem na sacola.
Foto 2:  Heloísa ainda está no balanço com a boneca. Meigamente pende a cabecinha para o lado direito e mostra um sorriso doce. Ao fundo, o compadre observa a doçura e ainda segura a sacola de plástico com a mão esquerda. A sacola tem o logotipo de uma farmácia. Parece que tem um pacote de fraldas dentro. Ou talvez um babador para o compadre.
Foto 3:  Heloísa está no carro, na cadeirinha nova e vermelha. Parece compenetrada. Ao seu lado, sentado no banco, um cachorrinho de pelúcia com focinho igual ao do Mickey.
Foto 4: Heloísa continua no carro, na cadeirinha nova e vermelha. Ao seu lado, permanece o cachorrinho de pelúcia com focinho igual ao do Mickey. Ela sorri. E seu sorriso é ainda mais doce.
Foto 5: Na cozinha da casa nova, Heloísa – com classe e fineza - usa uma colher grande para apanhar as rodelas de banana num prato quadrado de louça. Na mão esquerda ela segura uma chupeta.  Calça meias listadas, que combinam até com a toalhinha da mesa. Ao fundo, na área de serviço, os pés do compadre estão metidos em um par de chinelos confortáveis.
Foto 6: Heloísa já apanhou – com classe, fineza e o apoio da mãozinha que segura a chupeta – a rodela de banana com a colher, e prepara a boquinha (ou o bocão?) para devorar a fruta. Ao fundo não se vê mais os pés do compadre. Deve estar na sala com um livro na mão.
Foto 7: De costas para TV, Heloísa olha para câmera com a chupeta no canto da boca. Deve ter se cansado do “Patati Patatá”.
Foto 8: Ao fundo, estirados sobre o sofá comprido, os pés do compadre (com meias) e os pés da comadre (sem meias). Em primeiro plano, usando uma chupeta em forma de borboleta, Heloísa. Com um sorriso irresistível nos lábios e nos olhos.
Foto 9: Em frente ao piano, de chupeta nova e cachinhos soltos, Heloísa desfila com a mão esquerda na cintura. De blusa amarela e calça vermelha (acho), usa os chinelos de bolinhas da comadre.
Foto 10: Balançando os braços e ainda usando o mesmo modelito – inclusive os chinelos de bolinha da comadre – Heloísa desfila pela sala, desviando dos brinquedos dos gatos. Os gatos não aparecem na foto.
Foto 11: Segurando um aparelho celular na mão direita (acho que ouve música), de camisa vermelha e calça azul, ela se prepara para escovar os dentes.
Foto 12: Ainda com o celular na mão esquerda (deve estar realmente ouvindo música), ela segura, com a outra mão e o canto da boca, uma escovinha de dentes de cabo amarelo e vermelho (deve realmente gostar de vermelho) e vira charmosamente o pezinho esquerdo para dentro. Acho que ela está dançando.

Ainda não a conheço: continuo só com suas fotos, mas preciso, preciso falar sobre ela agora. Antes que ela ganhe o mundo.
Não. Já é tarde.
O mundo já é dela. Todo dela.

Publicado no Jornal de Piracicaba em 27/9/2015

O segundo parto

(caio silveira ramos)

A primeira pessoa a me falar sobre o Marcos foi minha mãe. Ele devia ter 11, 12 anos e era seu aluno de piano na Escola de Música.   Mas ela admirava a sabedoria daquele menino além da música: Marcos desenhava dinossauros com graciosa ciência e sabia uma infinidade de coisas das áreas mais diversas. De botânica à astronomia, nada escapava da sua curiosidade. 
Eu também gostava de astronomia, mas do meu jeito: enquanto o genial Marcos sabia as distâncias entre as galáxias e a velocidade dos astros, e parecia conhecer todos os segredos dos buracos-negros, eu sonhava com histórias em que Michael Collins, o único astronauta da Apollo 11 a não pisar na lua, tinha uma nova oportunidade e visitava outros planetas. Marcos tinha a dimensão da infinitude do Universo. Eu tentava entender a solidão de um astronauta.
Pois Marcos, na oitava série, veio frequentar o colégio em que eu estudava. Eu já o conhecia de vista, mas agora ele estava ali, na mesma turma. Imaginava um geniozinho excêntrico, chato e metido à besta, mas para minha surpresa ele podia até parecer excêntrico, porém era excentricamente bem-humorado e generoso.  Marcos era realmente esperto, mas não ficava se vangloriando de sua ciência e gostava de compartilhá-la.  E sabia rir de si próprio: quando teve que usar um colete com haste de ferro para arrumar a postura, ao ouvir as primeiras gozações já se pôs um apelido: Robocop.  Mas o apelido não pegou e ninguém mais deve se lembrar disso.  O que ninguém se esquece é que ele foi o único de sua turma a passar direto na Medicina da USP. 
E nós nos encontramos muito na rua Teodoro Sampaio, meu caminho para o Largo São Francisco e endereço da “Casa do Estudante” da Medicina.  Mas depois os caminhos se espalharam: terminada a faculdade, Marcos teve que servir um ano o Exército e só então pôde fazer a sonhada Residência em Psiquiatria no Hospital do Servidor.  E lá, encontrou em seu orientador, o mestre que mudou seu destino: Dr.Carol Sonenreich.
Marcos terminou a Residência e resolveu voltar para Piracicaba. Apaixonado pela Psiquiatria e pelas técnicas únicas de seu mentor, ganhou o profundo respeitado dos colegas e o amor agradecido dos pacientes.   Conhecido por não recusar os casos mais difíceis, se tornou uma referência na delicada missão de aliar os tratamentos psiquiátricos às gravidezes tanto arriscadas quanto infinitamente desejadas.
E o Doutor Marcos continuou sua trilha predestinada até que um dragão sem luzes resolveu atravessar seu caminho.
Porém, mais uma vez seu cérebro privilegiado soube encontrar novos atalhos.
E sua mãe soube ressuscitar Deus.

***
Durante minhas últimas férias, fui depois de muitos anos visitar o Marcos. Ele não estava: estava sua mãe.  Até que ele chegou: entrou pela sala feito um furacão ensolarado e me viu.  Exclamou interrogando meu nome e abriu os braços fraternos.
Durante horas conversamos sobre seus planos e sua memória pulsou toda sua paixão pela Medicina.   Falou de seus estudos incessantes, dos cinco livros que passou a escrever – um sobre os métodos inovadores de seu mestre na Psiquiatria, Carol Sonenreich -, da vontade de ensinar tudo que aprendeu e tudo que não se cansa de aprender. E de suas aulas de canto. E dos seus cantares em russo.
Me dei conta do porquê seus pacientes o amavam (e o esperam) tanto:  generoso, Marcos precisa da Medicina, assim como a Medicina precisa dele.   Talvez por isso, ela e ele tenham se entendido tanto, ainda mais depois do acidente: afinal, como explicar que ele esteja andando, conversando, pensando e sorrindo depois de tudo o que aconteceu? Como pode o Dr. Marcos estar vivo, produzindo pensamento e ação?  Bem, a explicação disso tudo talvez não esteja apenas no amor da Medicina por ele.
A notícia do terrível acidente sofrido pelo Marcos veio acompanhada de uma sentença: se sobrevivesse, o que parecia muito difícil, ele passaria a habitar outro mundo, um mundo distante, imóvel e silencioso. Mas qualquer que fosse o caminho, seu irmão Rogério, com a arte à flor da pele, aguardaria o retorno do irmão tatuando infinitas telas cheias de vida.
Quem também remodelou sua vida na espera, foi a mãe do Marcos, que chegou a receber o seguinte conselho: “deixe ele ir embora, vai ser melhor.”  Mas as mães não entendem certos recados e rebateu: “ir embora para onde?  Para casa?”  E diante de um suspiro médico, ela pediu perdão por suas descrenças e deu para rezar. Rezar a cada instante, como um vício, como uma mania que lhe encobria a voz e o pensamento.  Penelopeando-se toda, passou a desfiar suas falas com seu Deus e com seu Marcos por dias e noites.  E completa de vozes, gestou seu filho novamente.
E um marcos-novo-marcos-mesmo foi crescendo.  Seus movimentos começaram a se multiplicar para explorar os sentidos. Seus e os do mundo que o aguardava.   Tal qual a gestação (que foi longa), seu segundo parto também foi trabalhoso.  Horas e horas, dias e dias, meses e meses.  Até que ele foi regerado.  E renasceu.
E sua mãe sorriu para sua cria.
Mais uma vez.

Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 30/8 e 13/9/2015