Tio Amador era
irmão da minha avó Jandyra. Ele
trabalhava no Jardim Botânico do Rio de Janeiro e morava com a esposa e os dois
filhos numa das casinhas que eram reservadas para os funcionários. De quando em vez vinha para São Paulo: na
Capital, visitava a mãe, dona Sebastiana, e suas irmãs e irmãos. Em Jundiaí, a
irmã Zezé e a sobrinha Josette. E em
Piracicaba, as sobrinhas Maria da Glória e Jandyrinha, que se assemelhava à mãe
não só no nome, mas também no amor pelas plantas.
Ele chegava
sempre risonho, com o cabelo muito crespo e branco cortado bem curto, os óculos
de aro escuro e quadrado, e o corpo baixote e gorducho. Às vezes aparecia de
chapéu de palha. Mas sempre vinha com um
pacotinho de papel pardo, lotado de “Balas Chita” para a molecada. Eu adorava as de embalagem amarela – acho que
de abacaxi ou de tutti frutti –, mas
não dispensava as de menta, caso no meio viessem também as empacotadas em papel
verde. A primeira criança da casa que
aparecesse (e era quase sempre eu quem abria a porta) recebia o sorriso e o
pacote, mas as balas eram imediatamente oferecidas aos mais velhos (e, por
sorte, recusadas), e fraternalmente repartidas entre os pequenos.
Tio Amador
adorava papear com meus pais sobre os parentes, o Jardim Botânico e as
plantas. Em todas as visitas, não
deixava de demonstrar seu encantamento por minha mãe ter feito florescer o
“Bastão do Imperador” nos fundos da casa: “o Hélio, melhor agrônomo que eu já
vi, mesmo naquela belezura de terra roxa dele, jamais conseguiria Bastões tão
saudáveis e bonitos quanto esses que iluminam seu quintal, Jandyrinha! Só sendo filha da mana Janda para ter essa
mão pra natureza!” E ficava lá, um
tempão no quintal, namorando aquela flor misteriosa de caule grosso e bulbo
majestoso, avermelhado, parecendo mesmo um cetro real.
Depois, ou Tio
Amador almoçava em casa ou pedia para meu pai levá-lo de carro a algum dos
restaurantes da cidade “para comer uma feijoada ou um peixinho, sem dar
trabalho para a Jandyrinha”. Entrou para
o folclore da família a história que meu pai contava às gargalhadas: enquanto
saboreava uma suculenta feijoada, tio Amador espirrou forte e a dentadura caiu
dentro do prato. Sem qualquer cerimônia,
ele resgatou a dita do meio da comida, deu-lhe uma leve espanada com os dedos
para retirar alguns grãos de feijão, meteu-a de novo na boca e tranquilamente
voltou a comer satisfeito.
O que me
intrigava é que, depois desses almoços, meu pai voltava sozinho para casa.
Questionado, seu Miro sorria com os olhos e dizia apenas que tio Amador gostava
de dar uns passeios sozinho.
Já um pouco mais
velho, perguntei novamente a meu pai sobre aqueles antigos passeios do
tio. E ele respondeu gaiatamente mais
uma vez: “seu Amador saía por aí porque gostava de ver moças bonitas e
conversar com elas”.
Me dei por
satisfeito com a resposta e pensei lá comigo que tio Amador tinha sido um
sujeito feliz.
E que eu queria
ser um amador também.
***
Até meus oito,
nove anos, eu e minhas irmãs fomos alegremente abastecidos pelas “Balas Chita”
trazidas pelo tio Amador. Mas ele não
aparecia apenas com o pacotinho de balas para as crianças: dos seus bolsos, tio
Amador tirava sementes de todos os tipos e tamanhos, e as distribuía para quem
se interessasse por plantas. Eu que
naquela época tinha descoberto a história d’ “O menino do dedo verde”, de
Maurice Druon, achava que tio Amador também tinha o “dedo verde”: ele devia ser
uma espécie de mágico, que ia derramando suas sementes pelo mundo. E delas
brotavam as flores mais exóticas, as plantas mais misteriosas, que se
espalhavam por quintais e varandas. E que de repente até poderiam sair pelas
frestas dos muros e do mundo.
Eu já devia ter
uns onze anos quando fui com meus pais passear na casa da tia Josette, em
Jundiaí. Uma casa cheia de sol e som,
com primos e primas crescendo junto com a gente lá de casa, todos mais irmãos
que simples parentes. Além do encontro
das famílias, o passeio tinha também dois grandes motivos: uma visita ao tio
Amador, que muito doente passava uns dias na casa da sobrinha Josette. E o
abraço numa coleção de pedras.
O primo Renato,
o segundo filho mais velho da tia Josette, foi um dos meus heróis de infância:
curioso e inteligentíssimo, passava horas estudando no quarto que dividia com o
irmão Roberto. Quando tio Sammy
construiu o “predinho” nos fundos da casa, Renato passou a ter um quarto de
estudos, de onde, para mim, ele saía muito raramente. Um quarto de estudos com a porta sempre
aberta, o que me permitia, mesmo de longe, espiá-lo pesquisando ou tocando
flauta doce. Um quarto cheio de livros, com uma dessas mesas de engenheiro
(provavelmente para o irmão desenhar os projetos para a faculdade) e um jogo de
lentes chamado “Poliopticon” (cuja caixa eu namorava secretamente quando
passava pela vitrine da “Gatti Ótica”, na esquina da rua Governador com a
Moraes Barros).
Mas Renato nunca
bancou o geniozinho chato, muito pelo contrário: conversava mansamente, não se
negando a compartilhar seu vasto conhecimento com quem quer que fosse.
Inclusive comigo, um primo quase dez anos mais novo, que olhava para ele
fascinado como se estivesse diante do próprio Professor Pardal. Pois quando saía do quarto de estudos, Renato
aparecia com seus inventos: uma câmara fotográfica feita de papelão e fita
adesiva, com disparador, visor e tudo mais. Ou um despertador de corda, que em
vez soar estridente, acendia uma lâmpada quando dava o horário para acordar o
sonhador.
Eu, mesmo
acordado, sonhava em ter um telescópio. Generosamente, Renato me deu duas
lentes para que eu construísse meu brinquedo: fucei aqui e ali e, com dois
tubos de papelão, fiz minha luneta regulável que conforme a distância permitia
o ajuste do foco. Feliz da vida, achei que meu primo ficaria orgulhoso de
mim.
Mas quando fui
mostrar a ele minha geringonça (e aproveitar para perguntar como se fazia para
as imagens não se serem vistas de ponta-cabeça), o primo Renato já tinha voado
para bem longe e se tornado professor de uma universidade americana. Foi ensinar a novos amadores a beleza dos
números que viajam por trás dos mistérios do Universo.
Isso foi bem
depois. Naquele dia da visita, já que eu andava todo interessado em fazer uma
coleção de pedras, ele me deu de presente vários exemplares incríveis para eu
não começar do zero. E com o pensamento
cravado nas pedras e cristais que tinha acabado de ganhar do primo Renato, fui
cumprimentar o tio Amador, que estava ocupando uma das camas lá no quartão das minhas
primas.
Acho que ele não
me reconheceu direito. E eu também quase não o reconheci de pijama listado de
mangas compridas e com o cabelinho crespo muito branco. Os olhos miúdos sem os óculos pareciam
infinitamente tristes. Era um tio Amador
sem pacotes de balas nas mãos, sem sementes brotando dos bolsos, sem sorriso
cantando na boca.
Parecia que, de
repente, a terra e a vida também tinham se transformado em pedra. Não como
aquelas cheias de beleza e mistério da minha nova coleção. Mas como pedras secas, duras, que agora se
negavam a beijar os dedos verdes de um amador inveterado.
***
Eu e meu pai
fomos passear no Rio de Janeiro e aproveitamos para visitar a família do tio
Amador, que já tinha falecido fazia quase quinze anos. Por todo o caminho,
cortando por dentro do Jardim Botânico, tive a impressão de que a qualquer
momento eu o veria espalhando suas sementes ou espiando por entre as árvores,
feito um curupira protegendo sua mata.
Seus filhos
tinham a idade das minhas tias mais novas: ele, muito parecido com o pai, só
que quieto e com o olhar mais distante.
Ela, o sorriso e a ternura de tio Amador.
Já a viúva, se
parecia não ter ternuras, com certeza tinha perdido todos os seus
sorrisos. Nos olhos, nos cabelos pretos
muito lisos presos num coque e em cada vinco do rosto se embrenhava uma secura
que parecia ter rompido há séculos. Não havia um olhar, um movimento de boca,
uma palavra que não rimasse com a mais palpável amargura.
Dei para
emparelhar as figuras ou para desentender o emparceiramento desenhado no
passado: como podiam aqueles dois ter um dia se conhecido, se apaixonado, se
casado e criado filhos sendo tão diferentes? Disfarçaria, ela, toda a alegria?
Teria ele me enganado todo o tempo, escondendo igual amargor atrás de um pacote
de “Balas Chita”?
Pensei que atrás
daquele fel talvez ela escondesse as saudades dele, mas já desconsiderei: não
se fisgava nela qualquer indício de falta acabrunhada. Ela reclamava do
passado, do presente e da possibilidade de futuro.
Fui por outros
caminhos: teria ele se espalhado, igual a suas sementes, para não vislumbrar as
amarguras dela? Ou teria ela se
amargurado com a largueza da alegria apaixonada dele? Ou será ainda que eles
teriam de comum acordo (re)partido ao meio a palavra “amador”, ficando ele com
a melhor parte e ela apenas com a rima pobre?
Mas já no
caminho de volta percebi que o amador era eu. Eu que do alto dos meus vinte e
quatro anos tinha a certeza de já conhecer todos os meandros das paixões
avassaladoras. Eu que julgava
implacavelmente os certos e os errados dos relacionamentos conjugais e
afetivos. Eu. Eu, que condenava
traidores e traídos, compreendi que do amor só conhecia a superfície. Era um
amador no entendimento dos amores alheios e próprios.
E hoje, passado
tanto tempo, continuo reconhecendo meu amadorismo e humildemente me visto com a
poesia do velho Carlos para repetir: amar se aprende amando.
E amando, e
aprendendo, vou me tornando cada vez mais amador.
Simplesmente um
amador.