sexta-feira, 29 de abril de 2016

História de cérebro e boca

(caio silveira ramos)

Caiu de alguma forma nas mãos da mãe do João Pedro a seguinte frase: “às vezes, para um taurino ser feliz, ele precisa apenas de um abraço e duas coxinhas de frango com catupiri”.   A mãe do João Pedro, mesmo não vendo graça em horóscopos, encontrou graça na frase e emendou: “acho que sou mesmo uma típica taurina: essa frase me define”.   João Pedro que é amigo de afetos, mas também nunca abre mão do riso, retrucou: “pra mim, que não sou de touro, fico bem só com as coxinhas”.  E rindo, rindo foi abraçar sua mãe.
À noite, enquanto se preparava para dormir, João Pedro fez seu pedido de todo dia:
“Papai, deita comigo e conta uma história?”
 E como sempre, lá fui eu, de livro na mão, para ser iluminado pela luz do abajur verde e branco.
Terminada a leitura, na escuridão do quarto, ele me pediu que eu lhe coçasse as costas. E emendou:
“Agora, me conta uma história de cérebro e boca?”
Entendi o pedido: ele queria uma história inventada da minha cabeça, sem livros, sem escritas, algo para embalar seu sono e seu sonho. Mas para fazer eco a suas graças comecei:
“Um grande cérebro mal-humorado caminhava pela floresta quando encontrou uma boca cheia de dentes...”
Ele cocegou a noite com seu riso, e pediu: “não, papai, fala sério...”
Geralmente invento algo novo, que vai se espichando, espichando, e se encerra ao encontrar o sono do pequeno. Mas naquele dia me lembrei da história de “Aladim e a lâmpada maravilhosa”, que no segredo da noite se achegou em mim abrigada pelas lembranças das belas gravuras de um livro perdido na infância, onde Aladim era chinês e havia dois gênios: um da tal lâmpada e outro de um anel.  Com o pensamento grudado naquelas velhas figuras, que até pareciam fotografias, fui retecendo a história, esticando o enredo, inventado mil e um ingredientes, umas três ou quatro tramas novas e alguns personagens estranhos tirados do bolso. E, tomado de liberdades, decretei até alforria para os tais gênios aprisionados.
No outro dia, encontrei outra versão de “Aladim” num livro grosso.  À noite, debaixo do abajur, li a história palavra por palavra. Letra por letra. Ele cutucou:
“Gostei. Mas a sua foi melhor.”
Dito isso, virou-se de costas para mim e pediu que eu atravessasse meu braço sobre seu peito, o que ele chama de “cinto de segurança”.
E dispensando coxinhas de frango com catupiri e outras histórias, ele adormeceu.
Aninhado no meu abraço.

Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 24/4/2016


Amadores

(caio silveira ramos)

Tio Amador era irmão da minha avó Jandyra.  Ele trabalhava no Jardim Botânico do Rio de Janeiro e morava com a esposa e os dois filhos numa das casinhas que eram reservadas para os funcionários.  De quando em vez vinha para São Paulo: na Capital, visitava a mãe, dona Sebastiana, e suas irmãs e irmãos. Em Jundiaí, a irmã Zezé e a sobrinha Josette.  E em Piracicaba, as sobrinhas Maria da Glória e Jandyrinha, que se assemelhava à mãe não só no nome, mas também no amor pelas plantas.
Ele chegava sempre risonho, com o cabelo muito crespo e branco cortado bem curto, os óculos de aro escuro e quadrado, e o corpo baixote e gorducho. Às vezes aparecia de chapéu de palha.  Mas sempre vinha com um pacotinho de papel pardo, lotado de “Balas Chita” para a molecada.  Eu adorava as de embalagem amarela – acho que de abacaxi ou de tutti frutti –, mas não dispensava as de menta, caso no meio viessem também as empacotadas em papel verde.    A primeira criança da casa que aparecesse (e era quase sempre eu quem abria a porta) recebia o sorriso e o pacote, mas as balas eram imediatamente oferecidas aos mais velhos (e, por sorte, recusadas), e fraternalmente repartidas entre os pequenos. 
Tio Amador adorava papear com meus pais sobre os parentes, o Jardim Botânico e as plantas.   Em todas as visitas, não deixava de demonstrar seu encantamento por minha mãe ter feito florescer o “Bastão do Imperador” nos fundos da casa: “o Hélio, melhor agrônomo que eu já vi, mesmo naquela belezura de terra roxa dele, jamais conseguiria Bastões tão saudáveis e bonitos quanto esses que iluminam seu quintal, Jandyrinha!  Só sendo filha da mana Janda para ter essa mão pra natureza!”  E ficava lá, um tempão no quintal, namorando aquela flor misteriosa de caule grosso e bulbo majestoso, avermelhado, parecendo mesmo um cetro real.
Depois, ou Tio Amador almoçava em casa ou pedia para meu pai levá-lo de carro a algum dos restaurantes da cidade “para comer uma feijoada ou um peixinho, sem dar trabalho para a Jandyrinha”.  Entrou para o folclore da família a história que meu pai contava às gargalhadas: enquanto saboreava uma suculenta feijoada, tio Amador espirrou forte e a dentadura caiu dentro do prato.  Sem qualquer cerimônia, ele resgatou a dita do meio da comida, deu-lhe uma leve espanada com os dedos para retirar alguns grãos de feijão, meteu-a de novo na boca e tranquilamente voltou a comer satisfeito.
O que me intrigava é que, depois desses almoços, meu pai voltava sozinho para casa. Questionado, seu Miro sorria com os olhos e dizia apenas que tio Amador gostava de dar uns passeios sozinho.
Já um pouco mais velho, perguntei novamente a meu pai sobre aqueles antigos passeios do tio.  E ele respondeu gaiatamente mais uma vez: “seu Amador saía por aí porque gostava de ver moças bonitas e conversar com elas”.
Me dei por satisfeito com a resposta e pensei lá comigo que tio Amador tinha sido um sujeito feliz. 
E que eu queria ser um amador também.

***

Até meus oito, nove anos, eu e minhas irmãs fomos alegremente abastecidos pelas “Balas Chita” trazidas pelo tio Amador.  Mas ele não aparecia apenas com o pacotinho de balas para as crianças: dos seus bolsos, tio Amador tirava sementes de todos os tipos e tamanhos, e as distribuía para quem se interessasse por plantas.  Eu que naquela época tinha descoberto a história d’ “O menino do dedo verde”, de Maurice Druon, achava que tio Amador também tinha o “dedo verde”: ele devia ser uma espécie de mágico, que ia derramando suas sementes pelo mundo. E delas brotavam as flores mais exóticas, as plantas mais misteriosas, que se espalhavam por quintais e varandas. E que de repente até poderiam sair pelas frestas dos muros e do mundo.
Eu já devia ter uns onze anos quando fui com meus pais passear na casa da tia Josette, em Jundiaí.  Uma casa cheia de sol e som, com primos e primas crescendo junto com a gente lá de casa, todos mais irmãos que simples parentes.  Além do encontro das famílias, o passeio tinha também dois grandes motivos: uma visita ao tio Amador, que muito doente passava uns dias na casa da sobrinha Josette. E o abraço numa coleção de pedras.
O primo Renato, o segundo filho mais velho da tia Josette, foi um dos meus heróis de infância: curioso e inteligentíssimo, passava horas estudando no quarto que dividia com o irmão Roberto.   Quando tio Sammy construiu o “predinho” nos fundos da casa, Renato passou a ter um quarto de estudos, de onde, para mim, ele saía muito raramente.  Um quarto de estudos com a porta sempre aberta, o que me permitia, mesmo de longe, espiá-lo pesquisando ou tocando flauta doce. Um quarto cheio de livros, com uma dessas mesas de engenheiro (provavelmente para o irmão desenhar os projetos para a faculdade) e um jogo de lentes chamado “Poliopticon” (cuja caixa eu namorava secretamente quando passava pela vitrine da “Gatti Ótica”, na esquina da rua Governador com a Moraes Barros).
Mas Renato nunca bancou o geniozinho chato, muito pelo contrário: conversava mansamente, não se negando a compartilhar seu vasto conhecimento com quem quer que fosse. Inclusive comigo, um primo quase dez anos mais novo, que olhava para ele fascinado como se estivesse diante do próprio Professor Pardal.  Pois quando saía do quarto de estudos, Renato aparecia com seus inventos: uma câmara fotográfica feita de papelão e fita adesiva, com disparador, visor e tudo mais. Ou um despertador de corda, que em vez soar estridente, acendia uma lâmpada quando dava o horário para acordar o sonhador. 
Eu, mesmo acordado, sonhava em ter um telescópio. Generosamente, Renato me deu duas lentes para que eu construísse meu brinquedo: fucei aqui e ali e, com dois tubos de papelão, fiz minha luneta regulável que conforme a distância permitia o ajuste do foco. Feliz da vida, achei que meu primo ficaria orgulhoso de mim. 
Mas quando fui mostrar a ele minha geringonça (e aproveitar para perguntar como se fazia para as imagens não se serem vistas de ponta-cabeça), o primo Renato já tinha voado para bem longe e se tornado professor de uma universidade americana.  Foi ensinar a novos amadores a beleza dos números que viajam por trás dos mistérios do Universo.
Isso foi bem depois. Naquele dia da visita, já que eu andava todo interessado em fazer uma coleção de pedras, ele me deu de presente vários exemplares incríveis para eu não começar do zero.  E com o pensamento cravado nas pedras e cristais que tinha acabado de ganhar do primo Renato, fui cumprimentar o tio Amador, que estava ocupando uma das camas lá no quartão das minhas primas.
Acho que ele não me reconheceu direito. E eu também quase não o reconheci de pijama listado de mangas compridas e com o cabelinho crespo muito branco.  Os olhos miúdos sem os óculos pareciam infinitamente tristes.  Era um tio Amador sem pacotes de balas nas mãos, sem sementes brotando dos bolsos, sem sorriso cantando na boca. 
Parecia que, de repente, a terra e a vida também tinham se transformado em pedra. Não como aquelas cheias de beleza e mistério da minha nova coleção.  Mas como pedras secas, duras, que agora se negavam a beijar os dedos verdes de um amador inveterado.

***
Eu e meu pai fomos passear no Rio de Janeiro e aproveitamos para visitar a família do tio Amador, que já tinha falecido fazia quase quinze anos. Por todo o caminho, cortando por dentro do Jardim Botânico, tive a impressão de que a qualquer momento eu o veria espalhando suas sementes ou espiando por entre as árvores, feito um curupira protegendo sua mata. 
Seus filhos tinham a idade das minhas tias mais novas: ele, muito parecido com o pai, só que quieto e com o olhar mais distante.  Ela, o sorriso e a ternura de tio Amador.
Já a viúva, se parecia não ter ternuras, com certeza tinha perdido todos os seus sorrisos.  Nos olhos, nos cabelos pretos muito lisos presos num coque e em cada vinco do rosto se embrenhava uma secura que parecia ter rompido há séculos. Não havia um olhar, um movimento de boca, uma palavra que não rimasse com a mais palpável amargura.
Dei para emparelhar as figuras ou para desentender o emparceiramento desenhado no passado: como podiam aqueles dois ter um dia se conhecido, se apaixonado, se casado e criado filhos sendo tão diferentes? Disfarçaria, ela, toda a alegria? Teria ele me enganado todo o tempo, escondendo igual amargor atrás de um pacote de “Balas Chita”?
Pensei que atrás daquele fel talvez ela escondesse as saudades dele, mas já desconsiderei: não se fisgava nela qualquer indício de falta acabrunhada. Ela reclamava do passado, do presente e da possibilidade de futuro.
Fui por outros caminhos: teria ele se espalhado, igual a suas sementes, para não vislumbrar as amarguras dela?  Ou teria ela se amargurado com a largueza da alegria apaixonada dele? Ou será ainda que eles teriam de comum acordo (re)partido ao meio a palavra “amador”, ficando ele com a melhor parte e ela apenas com a rima pobre?
Mas já no caminho de volta percebi que o amador era eu. Eu que do alto dos meus vinte e quatro anos tinha a certeza de já conhecer todos os meandros das paixões avassaladoras.  Eu que julgava implacavelmente os certos e os errados dos relacionamentos conjugais e afetivos.  Eu. Eu, que condenava traidores e traídos, compreendi que do amor só conhecia a superfície. Era um amador no entendimento dos amores alheios e próprios.
E hoje, passado tanto tempo, continuo reconhecendo meu amadorismo e humildemente me visto com a poesia do velho Carlos para repetir: amar se aprende amando.
E amando, e aprendendo, vou me tornando cada vez mais amador.
Simplesmente um amador.

Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 13 e 27/3 e 10/4/2016



Doçura enviada pela leitora Dilma Spigolon Ferreira (abril/2016)


O sítio do outro mundo

(caio silveira ramos)
  
Meus pais juntaram suas economias e compraram um pequeno sítio em São Pedro.  Talvez pretendessem plantar alguma coisa lá, ter uma horta, um pomar. Quem sabe criar algumas galinhas, como fizeram durante algum tempo no quintal de casa.
Me lembro de alguma coisa do caminho: antes de entrar na estrada de areia, no fim da parte asfaltada, um casal de poloneses vendia paçoquinha. Talvez servissem outras coisas, café, chá, melado, pois tinham um pequeno caminhão velho. Mas eu só me lembro da paçoquinha. E da areia que vinha logo a seguir pelo caminho.
No início, a porteira era feita de troncos retorcidos e arame farpado. Quando sobraram mais algumas economias, meu pai colocou uma porteira de verdade, de madeira, fechada com corrente e cadeado.  Para imitar os meninos dos filmes, eu descia, abria a porteira, subia no mourão, balançava na mão o chapéu de festa junina e gritava feliz “eeeia, eeeia, eeeia” para o carro do meu pai.
O sítio tinha uma parte plana e depois um longo declive, que terminava no lugar mais misterioso do mundo: enclausurado pelas copas das árvores gigantes, que impediam que o sol se intrometesse por ali, eternamente sombreado e fresco, havia um terreno arenoso limitado ao fundo por uma elevação de terra e pedra de onde brotavam fios grossos de água.
Era difícil chegar até lá embaixo: o terreno era acidentado, a descida, forte, a trilha às vezes se escondia debaixo do capim-gordura e era preciso ter cuidado por onde pisar para não se estrepar num buraco de tatu ou de cobra.  Mas o coração batia forte, quando, na metade do caminho, dava para se ouvir o barulho da água correndo.  E ele vinha para boca quando se entrava naquela catedral alta e sombria. Entre o medo e o deslumbramento, sempre acompanhado por alguém mais velho, eu caminhava com a respiração presa, desviando das áreas mais úmidas, até chegar perto da “parede do fundo” onde a mão em concha recolhia o jorro mais forte de água para refrescar a cabeça, a garganta e a alma. Depois era encher os galões para levar aquele frescor também para casa.  Mas antes de preparar o fôlego para a subida dura, eu olhava de canto para o maior dos meus medos ali: um grande círculo de areia molhada que diziam ser movediça.  E onde ninguém se atrevia pisar. Era como se aquele lugar saísse de um filme de Tarzan para me tragar até o centro da Terra. Era como se aquele círculo de areia brotasse de um sonho ruim para me levar para outro mundo.
Mas já lá no alto, eu me sentia a salvo de novo. Meu pai abria o porta-malas do carro e de dentro da “geladeirinha” de isopor tirava uma garrafa de laranjada gelada e sanduíches de presunto e queijo (ou de mortadela), tudo preparado pela minha mãe.   Passados a sede, a fome e uma suave modorra (depois de um breve cochilo), meu pai pegava a enxada, e de chapéu na cabeça, equilibrando de quando em vez os óculos que escorregavam no suor do rosto, saía para carpir o terreno mais plano. E incansável, lá ia ele também, combater a erosão na área inclinada, fincando, nos barrancos, sacos de estopa cheios de areia ou cavando longos e intermináveis sulcos de terra com bordas altas.
Algumas vezes, eu me vestia de meu pai e, de chapéu de palha, camisa enxadrezada, calça rancheira, bota de cano curto enlasticado e óculos se divertindo no suor do rosto, pegava uma enxadinha para brincar de trabalhar e ajudar a construir sulcos sem fim naquela terra com cara de areia dura.
Mas, diferente de meu pai, eu não era menino criado na roça. Cansado da brincadeira, ia até o carro, me sentava em frente ao volante e fingia dirigir aventurado no meio de uma savana cheia de leões e rinocerontes sanguinários.
Ou então, deixava meu olhar se perder pelo céu.
E me perdia junto com ele.


***
Enquanto meu pai, já sem camisa e empunhando apenas sua velha enxada, continuava a lutar contra a erosão faminta que atacava nosso sítio sem nome, e minha mãe, de coração botânico e dedo verde, enfrentava todos os perigos dos capões mais traiçoeiros para recolher mudas novas e diferentes, eu subia pelo capô da Variant cor de café com leite (e tempos depois, da Brasília branca) e chegava até o teto do carro estacionado.
Eu era pequeno e leve, mas mesmo assim me suavizava ainda mais para não ferir a lataria. Lá em cima, me deitava de costas sobre o teto e, com as mãos sob a cabeça, grudava os olhos no céu. E aí me esquecia do mundo.
Não ficava ali para cochilar ou decifrar o formato das nuvens, mesmo porque o céu era tão limpo que poucas vezes vi algumas delas passeando por lá.  O meu prazer era me tontear naquele infinito azulado até quase perder os sentidos: deixar os olhos mergulharem fundo, fundo, para que pontos dourados e prateados começassem a dançar pisca-piscando. Então, me dissolvia inteiro para me confundir com aquele céu.
Dali, mesmo durante o dia, eu poderia atravessar a atmosfera e descobrir todos os mistérios das galáxias mais distantes. Mas preferia ficar fragmentado e despossuído só naquele azul, invertendo todos os sistemas copérnicos para me tornar o centro do Sistema. O centro dissolvido do Universo.  Eu era além de mim e era tudo.  Pelo menos até o que azul se amarelasse nas beiradas do céu e meus pais me chamassem de volta. Era hora de ir para casa.
Mas chegou o dia em que da estrada de areia avistamos a cerca cortada e o sítio invadido por uma boiada bem nutrida. Meu pai pastoreou o rebanho até a abertura da cerca, montou no carro e seguiu no rastro da bicharada. Acostumada ao pasto alheio e ao caminho de volta para a casa própria, mansamente a boiada pegou a estrada e retornou para o ninho.  Meu pai desceu do carro e foi encarar quem arrebentava a porta do seu restaurante. “A culpa é da sua cerca que é fraca”.  Meu pai, filho de roça matreiro, rebateu: “a culpa é da sua torquês que é forte para cortar o arame e deixar a marca”.  Virou-mexeu, os donos do outro sítio acabaram pedindo desculpas e prometeram que a boiada deixaria de comer fora de casa.
Se aqueles prometeram, outros não.  Em nova visita ao sítio, a mesma história: cerca cortada, boiada se esbaldando no capim-gordura, meu pai pastoreando a bicharada para fora, que mansamente também sabia o caminho de casa.  Só que dessa vez teve jangunçaria mal-encarada, um sujeito que se distraía batendo com o facão na própria coxa e intervenção da polícia. Tudo certo, tudo resolvido, mas ficava claro que o sonho do sítio estava virando pesadelo. 
Bois invasores, capangas de gente graúda, árvores frutíferas vandalizadas, lutas inglórias contra a erosão e a impossibilidade, para um casal de professores, de gerar mais vida naquela terra fizeram meus pais venderem o sítio de São Pedro para garantir o estudo dos filhos. 
Aquele lugar, onde eu avistava deus e o diabo numa catedral de cúpula copada.  Aquele sítio, onde eu me entorpecia olhando o céu e acabava misturado ao infinito, desprendeu-se do meu caminho para sempre e foi parar num outro mundo. Ainda mais distante.
E hoje, nos dias sem nuvem, quando tento olhar para o alto, eu me sufoco no azul-cinzento.
E boiando na poeira, vou me desintegrar no céu desbotado.


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 14 e 28/2/2016

Além do Mirante 3: Faro de silêncio



Silenciou o silêncio de Fernando Faro.

Antes disso, o silêncio dele, generoso, me encheu das vozes penduradas nas rugas do tempo.

Minha alma é reflexo do reflexo daquele silêncio.

Silêncio dele. Sonoro, profundo.

Silêncio.