(caio
silveira ramos)
Ela tinha 54 anos, fazia faxina e
se encantou com nosso menino. Virava e mexia, ela aparecia com um bolo, uma
roupinha, um brinquedo. E enchia os olhos de alegria ao ver o pequeno batendo
palmas e correndo para lhe dar um beijo na bochecha.
Naquele dia, ela chegou com três
porquinhos abraçados, que compunham uma única peça de plástico e se
assemelhavam, nos focinhos e na roupagem, aos do desenho famoso dos Estúdios
Disney. Pra completar, nas costas do
porquinho do meio havia um pequeno botão que, acionado, chiava no ar o refrão
“Quem tem medo do lobo mau?”. Quando ouviu, o menino quase virou cambota de
contentamento. Ela, no entanto, me perguntou o que é que os porquinhos estavam
cantando. Estranhei, mas debitei na
conta da desaparelhagem sonora do brinquedo.
Sob o olhar dos dois, dei para
desenrolar a história ali mesmo no chão da sala: era uma vez três porquinhos
etc e tal. Quando cheguei na parte da
construção das moradas, enquanto o menino se preparava para se metamorfosear em
lobo e soprar todos os ventos (conhecedor já de pedaços da história), pedi a
cumplicidade dela para enflorecer o conto:
“O primeiro porquinho fez uma
casa de...de... Do que mesmo, Ná?”
Ela sorriu estranhada:
“ ‘Uma casa de quê?’ Não sei. Os
porquinhos são de uma história, é?”
Disfarcei o embaraço e engatei no
conto, retirando do ar casas de palha, madeira e tijolos. E lobos, ameaças,
sopros, bufos, peles de carneiro, chaminés e caldeirões fumegantes. Ela e o
menino se encantaram. Mas eu fiquei, pelo resto do dia, espiando atônito pelo
buraco da fechadura o lobo que também me espiava do outro lado da porta.
Desde que o inglês James Orchard
Halliwell e o australiano Joseph Jacobs publicaram no século XIX suas versões
de “A história dos três porquinhos”, que pertencia à cultura popular inglesa,
muitos ventos sopraram: em 1933, Walt Disney espalhou o conto pelo mundo com
seu curta-metragem de animação “The three little pigs”, embalado pela canção de
Frank Churchill, “Quem tem medo do lobo mau?”.
Daí em diante, a história ganhou centenas de versões nas mais diversas
línguas, quase sempre tomando por base o premiado curta americano: novos
desenhos para cinema e televisão, paródias, quadrinhos, jogos, livros (dos mais
diversos formatos, tamanhos e materiais), discos, brinquedos, fantoches e
bonecos espalharam pelos quatro cantos do planeta o enredo, os porquinhos (com
seus instrumentos, roupas e casas), a canção, a fala do lobo, o sopro do lobo e
a fome do lobo, tudo à moda de Disney.
Nas versões impressas e sonoras até os nomes dos porquinhos (Heitor,
Cícero e Prático) se popularizaram, embora Braguinha, ao contar a história para
a “Coleção Disquinho”, da Continental, mesmo que baseado também na versão de
Disney e na canção de Frank Churchill, tenha nomeado os três de Bolinha, Bolota
e Bolão.
De qualquer forma, eu tinha
certeza: essas informações pouco importavam para adultos e crianças de todo o
planeta. Para eles, bastaria um simples assobio de um trecho de “Quem tem medo
do lobo mau?” ou um esboço distraidamente rabiscado em um pedaço de papel (e
que de alguma forma lembrasse três porquinhos ou três casinhas singelas), para
que se lembrassem da história e começassem a soprar o mundo.
Até que uma mulher de 54 anos
soprou também. Soprou qualquer certeza para longe.
E tudo voou pelo ar.
***
“A história dos três porquinhos”
me parecia tão enraizada na cultura de todas as gentes que, quando aquela
mulher de 54 anos e coração generoso disse desconhecer completamente o conto, o
canto e os personagens, me espantei. E meu espanto me embaralhou pelo resto do
dia.
Depois dei para pensar se aquele
espanto diante do desconhecimento alheio não era uma visão turvada pela minha
ignorância, fruto de um eurocentrismo esnobe e de uma disneycultura mergulhada
em mim até os ossos.
Não, talvez eu estivesse
exagerando. Ana Maria Machado escreveu na sua “Apresentação” para os “Contos de
Fada” (ed. Zahar, 2010), que as histórias de Perrault, irmãos Grimm, Andersen e
outros “fazem parte de um patrimônio comum de todos nós, um tesouro que a
humanidade vem preservando pelos tempos afora”. E que “cada um de nós tem
direito a um quinhão dele”. E vai mais
além ao afirmar que o historiador José Murilo de Carvalho “confirmou o que as Histórias de Tia Nastácia (de Monteiro
Lobato) ou as Histórias da Velha Totonha (de
José Lins do Rego) já apontavam: o repertório de contos maravilhosos narrados
por escravos e seus descendentes em fazendas no século XIX e início do XX era
europeu, filtrado pela linguagem e habilidade narrativa africanas – um
importante capítulo de nossa formação cultural”.
De qualquer maneira, embora os
três porquinhos e o lobo já tenham ultrapassado o folclore inglês e os produtos
da Disney, e sejam hoje um verdadeiro “fenômeno pop” – tanto que o brinquedo sonoro representando os personagens
dado ao meu filho por sua admiradora fora comprado num camelô da rua Silva
Bueno –, é claro que existem crianças e adultos, dos mais diferentes grupos
espalhados pelo planeta, que desconhecem totalmente a tal história. E conhecem
muitas e muitas outras, tão ricas e interessantes quanto. Lendas e cantos que
falam das Histórias de cada povo, com seus sonhos, sua geografia e sua própria
cultura.
Quantas e quantas narrações
fantásticas das mais diversas raças e etnias que formaram e formam o Brasil são
desconhecidas dos nossos currículos e das nossas vidas, e infelizmente não
fazem parte dos nossos sonhos e dos sonhos de tantas crianças do País. Merecemos
essas histórias, assim como todos, todos, merecem os contos de Perrault, Grimm,
Andersen e Jacobs. Antropofagicamente deglutidos ou não.
Mas naquele meu espanto diante do
desconhecimento de “Os três porquinhos” havia mais do que a minha ignorância e
a simples constatação de que, qualquer que fosse a forma, os personagens já
tinham mergulhado, não na barriga do lobo, mas no mais profundo imaginário
popular.
Meu espanto era a surpresa diante
de uma infância pilhada.
Aquela mulher de 54 anos não trazia
a história dos três porquinhos, como também não trazia, da fazenda de cacau em
que tinha nascido e passado boa parte da sua meninice, qualquer história
inventada ou lenda soprada pelos mais antigos.
A história de infância que ela trazia era a dela mesma: uma história
difusa, em que o trabalho na lavoura desde muito cedo parecia engolir suas mais
remotas lembranças. Em que a mesquinhez
do dono da fazenda, a brutalidade do pai e dos parentes, e a resignação da mãe
lhe tinham roubado qualquer possibilidade de criação do imaginário de sua
própria infância. Vassoura de bruxa?
Para ela era simplesmente uma terrível praga que devastava a lavoura de cacau e
que tinha provocado o êxodo de sua família de uma terra que de fato nunca fora
sua.
Hoje, suas canções de embalar os
filhos e os netos são músicas românticas ou religiosas ouvidas do rádio de
agora e não as dos braços que um dia, ainda que pouco, a tomaram no colo. As
histórias que gosta de contar são as que assiste nos programas policiais da TV,
que parecem oferecer o vislumbre de vidas ainda mais trágicas que a sua,
marcada pela violência que lhe comeu a infância e que devora sua paisagem
diária.
E, ainda que com muito sacrifício
sua casa seja feita de tijolos, o lobo está ali fora.
E continua à espreita.
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 3 e 17/7/2016