quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Desmemórias

(caio silveira ramos)

O ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, foi preso sob a acusação de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.  Cabral, que segundo o Ministério Público Federal seria o chefe de uma verdadeira organização criminosa, teria recebido milhões em propina para fechar contratos públicos, como o da reforma do estádio do Maracanã. Isso, sem falar (também de acordo com o MPF) na compra de joias caríssimas (que teriam servido para lavagem de dinheiro) e de sua ligação criminosa com o empreiteiro Fernando Cavendish, que, ao lado de Cabral, de secretários estaduais e de um conselheiro do Tribunal de Contas, participou na Europa da chamada “Farra dos Guardanapos”.
Assim que o ex-governador foi preso, pensei imediatamente em seu pai, o jornalista Sérgio Cabral, fundador e editor do lendário “O Pasquim”. Sempre admirei o velho Cabral por seu espírito bonachão e carioquíssimo. Mas o que de fato me liga a ele é a paixão avassaladora pela música brasileira.  Mais do que isso: muito dessa paixão eu devo a Cabral: por meio de seus artigos, crônicas e livros eu me deixei (e me deixo) embebedar ainda mais de samba e de choro.   Li e reli seus livros sobre Elizeth Cardoso, Tom Jobim, Almirante, Ary Barroso, Ataulfo Alves, Nara Leão, as Escolas de Samba do Rio de Janeiro e, principalmente, me encantei com sua fundamental obra narrando a vida e a arte do meu querido São Pixinguinha.
Logo constatei que a preocupação com Sérgio Cabral pai não era somente minha. O escritor Ignácio de Loyola Brandão escreveu no jornal “O Estado de São Paulo” a crônica “Diante da situação tenebrosa, a notícia ruim é bênção” em que ele se pergunta o quanto o velho Cabral estaria “pensando e sofrendo com este show de horror com que o filho brindou o Brasil”.  Consultando escritores amigos como Antônio Torres e Ruy Castro, Brandão nos informa que há cerca de três anos Sérgio Cabral está doente e que, segundo Ziraldo, “as névoas do Alzheimer se insinuaram, mas provavelmente se acentuaram quando Sérgio sentiu a realidade. Seria uma forma de negá-la? Hoje, ele já não distingue o que é e não é, não identifica quem é. Mergulhou no escuro total, a memória dissolvida”.   Seguindo esse caminho, mas esquecendo-se de qualquer poesia, Maurício Lima escreveu em uma nota crua para o Radar On-Line da Veja.com: “o jornalista Sergio Cabral, pai do ex-governador do Rio, está com Mal de Alzheimer. Quando perguntado sobre o que aconteceu com seu filho, preso na operação Lava-Jato, ele responde que o menino morreu ainda criança”.
O que explicaria um pai enganchar sua desmemória na construção da falsa morte de um filho pequeno?
Pois numa entrevista do velho (mas feliz) ano de 2011, esbarrei nas voltas da memória perdida daquele escritor que se esqueceu de seu mundo e de suas histórias. E acho que encontrei a resposta.

***

Fui atrás do velho Cabral na internet e descobri uma entrevista sua, de 2011, para o programa Roda Viva, da TV Cultura. Nela, ele diz que considerava seu filho (naquele momento, já no segundo mandato) o melhor governador que o Estado já tivera. Que ele pegara o Rio em frangalhos e rapidamente o transformara na unidade da Federação que mais recebia investimentos. E que a violência estava sendo combatida com muita competência. E que as finanças estavam de tal forma “arrumadíssimas” que o Rio teria sido o primeiro Estado brasileiro a ser reconhecido “por essas agências internacionais que dão nota aí”.  Alguém mais sarcástico poderá dizer hoje: ou o Rio estava bem mesmo e em poucos anos Cabral Filho foi tão corrupto e mau administrador que arrebentou o Estado ou o Alzheimer já em 2011 tentava fazer seu pai não ver a realidade.
Esse alguém também poderá perguntar se o pai não teve influência decisiva sobre o (mau) caráter do filho. De fato, me incomodo um tanto ao descobrir que o velho Cabral se orgulhava de ter nomeado o filho seu chefe de gabinete, quando fora vereador na cidade do Rio, na década de 1980.  Nepotismos à parte, ainda prefiro ver o escritor não como um deformador do caráter do filho (até porque a responsabilidade é pessoal do ex-governador que, cá entre nós, já é bem grandinho), mas como um sério pesquisador e escritor que teve influência decisiva na minha paixão pela música brasileira e pelas palavras ligadas a ela.

Mas continuando a passear naquela entrevista de 2011, me deparo com uma descoberta pungente, que talvez explique o porquê de um pai costurar sua mente na invenção da morte de um filho ainda na infância:
No começo da década de 1970, Sérgio Cabral pai estava hospedado em um hotel, na cidade de Campos, Estado do Rio de Janeiro, quando recebeu um recado de sua mulher: o jornalista devia, urgentemente, entrar em contato com ela. Durante quarenta minutos, enquanto não conseguia telefonar para a esposa, seu pensamento girou desesperado: ele e a família moravam no bairro do Leblon, bem próximo da praia. O dia estava lindo: com certeza um dos seus meninos (um de 5, outro de 6 e o mais velho de 7 anos) teria morrido afogado.  Mas qual deles? Qual deles? Quando finalmente conseguiu falar com sua mulher e ela lhe disse que o Exército tinha invadido “O Pasquim” e estava atrás dele para prendê-lo, Sérgio simplesmente respondeu: “ai, que alívio!”.
Quem sabe, no aqui e ali de sua mente perdida, o velho Cabral se alivie um pouco ao se encontrar de repente com a flauta de Pixinguinha ou com a batida do surdo da Estação Primeira de Mangueira.  Mas fora disso, enquanto vai dizendo adeus ao ano novo, ele talvez insista em existir apenas naqueles quarenta minutos traumáticos de angústia e medo: Serginho, seu amado filho mais velho, morreu naquele dia afogado no mar. Não em um mar de lama. Mas num mar daqueles de Caymmi, feito de poesia, mistério, morte e doçura.
E naquele mar, morrendo junto, ele parte em busca de seu menino.


Ilustração: Maria Luziano– cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 1º/e 15/1/2017



Contra o Natal

(caio silveira ramos)

Seu Astrogildo não gosta do Natal porque sente aumentada sua solidão.
Pierre, porque acha uma festa cafona. Duda, porque acha uma festa careta. Carlos, porque acha uma festa puramente comercial e consumista. Wladimir, porque considera um evento capitalista e burguês. Gustavo, porque vê o Natal como mais uma manifestação golpista e machista. Cíntia, porque diz que é um momento representativo da culpa incutida pela Igreja Católica. Haroldo, porque vê na festa a imposição da cultura opressora ocidental-européia aliada ao perverso imperialismo americano. Dolores, porque diz que é uma época de pura hipocrisia. Jussara, porque acha que as pessoas ficam ainda mais falsas. Fabiana, porque acha que as pessoas demonstram uma alegria fingida. Fabiano, porque acha que as pessoas demonstram uma solidariedade forçada. Letícia, porque vê todo mundo feliz, menos ela. Joaquim, porque se lamenta ainda mais por não morar em Londres. Edson, porque se lamenta ainda mais por não morar em Nova Iorque. Jurema, porque se lamenta por não ter onde morar. Humberto, porque não gosta de dar caixinha de Natal para os porteiros do prédio. Carmen, porque sente que a miséria do mundo fica muito mais gritante. Sônia, porque sente que a miséria humana fica muito mais flagrante. Paulo, porque sente que os marginalizados são ainda mais excluídos. Magnólia, porque num dia de Natal morreu uma tia querida. Gabriel, porque se lembra ainda mais dos parentes que já se foram. Gonçalves, porque percebe que os lugares à mesa da ceia ficam a cada ano mais vazios. Sebastião, porque a mesa da ceia fica mais vazia a cada ano. Juca, porque não tem ceia. Osvaldo, porque não tem mesa. Nunes, porque fica mais deprimido nessa época. José, porque fica tão deprimido nessa época que sente profundo desejo de se matar. Murilo, porque previram que ele morreria num dia de Natal. Soraia, porque fica aflita com os preparativos e as correrias típicas do período. Ludmila, porque fica estressada com os preparativos e as correrias típicas do período. Mônica, porque fica com vontade de matar alguém com os preparativos e correrias típicas do período. Tamires, porque a comilança atrapalha seu regime. Nice, porque fica com mais fome ainda. Sandra, porque não tem o que comer. Pedro, porque também sente aumentada sua solidão.  Manuel, porque não gosta de dar presente. Rui, porque não gosta de ganhar presente. Uéslei, porque não ganha presente. Rosa, porque não gosta do passado. Evandro, porque tem medo do futuro. Ebenéser, porque não tem tempo a perder. Tiago, porque fica com saudade da infância. Luís, porque fica apavorado ao se lembrar da infância. Taís, porque tem que ir para o interior e lá é um inferno de quente. Tatiana, porque tem que ir para praia, lá é um inferno de quente, tem areia que gruda no corpo e um monte de parente chato. Dirce, porque detesta reuniões de família. Diva, porque detesta a família. Soraia, porque também sente aumentada sua solidão. Fátima, porque acha uma maldade com o peru e outros bichos. Lucas, porque tem medo de Papai Noel. Ana, porque acha brega o Papai Noel com roupa de frio num país tropical. Gabriela, porque tem dó do Papai Noel de loja que tem que usar roupa tão quente num país tropical e ainda aturar criança chata. Tomás, porque detesta shopping lotado. Dimas, porque detesta shopping. Daniel, porque diz que montar presépio é pecado. Enrico, porque não suporta música natalina. Cláudia, porque detesta cheiro de panetone. Raimundo, porque reclama que a cidade fica um caos. Solange, porque diz que as luzes piscantes dos prédios agride seus olhos e sua intimidade.  Mirela, porque acha que as lojas enfeitadas ferem seus sentidos e seus bolsos. Vicente, porque acha que o Natal é uma festa de origem pagã e que a data certa do nascimento de Cristo é outra. Hugo, porque não acredita no nascimento de Cristo. Luigi, porque não acredita na divindade de Cristo. Ivo, porque não acredita em Cristo. Michel, porque não acredita em Deus. Silmara, porque acha que, ao contrário da música, Papai Noel sempre se esquece de alguém. Dante, porque diz que as imagens nos saguões dos edifícios afrontam sua fé. Virgílio, porque pensa que o feriado não condiz com o Estado laico. Ângela, porque sonhava em ganhar uma boneca na infância e num Natal longínquo sua tia deu a boneca sonhada para uma prima. Vitor, porque não gostou do presente do ano passado. Manuela, porque acha que Papai Noel nunca dá o que ela pede.  Francisco, porque Papai Noel nunca lhe deu presente. Augusta, porque também sente aumentada sua solidão. Felipe, porque não gosta e pronto. E Nelson, que fica na dúvida se gosta do Natal, porque diz que não pode afirmar com certeza se Deus realmente existe.
Mas para sempre perdido no tempo, o menino eterno gosta do Natal. E na verdade, nem sabe dizer o porquê.
Lá está ele com a mãozinha limpando o espelho embaçado pelo banho recente.  Ele se vê: está arrumadinho, de roupa nova e umas gotas de colônia no pescoço. Olha para o cabelo molhado e pensa que só a escova velha do pai pode dar um jeito naquilo. E enquanto a escova vai domando a cabeleira, imagina que poderia ir até a sala, subir no banquinho e adiantar o relógio pra meia-noite. Não, ele não vai fazer isso. O bom é a espera. Pelo cheiro gostoso da comida, ele já imagina a mesa posta e um embrulhinho ao lado do presépio (nem que seja um carrinho de plástico bem simples: mas tem que ser surpresa). O bom é a espera. E ele espera: cinco abraços o esperam. Assim como um cocho para animais aguarda outro menino.
Daqui a duas, três horas, enquanto um garoto já estiver deitado no cocho brincando com o mundo, o outro dormirá feliz com o carrinho de plástico ao pé da cama.  Talvez ele sonhe com a manhã do dia que vai nascer.
Ou, quem sabe, com a espera do Natal do ano que vem.

Publicado no Jornal de Piracicaba em 18/12/2016


Sapatos e papéis

(caio silveira ramos)

Quando descobri que meu pai, para ganhar alguns trocados lá na sua infância na cidade de Itu, tinha engraxado sapatos e carregado malas na estação, resolvi botar a mão na massa também.
Só que ele mesmo me explicou que os tempos eram outros: o mundo começava a entender que obrigação de criança era brincar e estudar.  Na infância difícil, ele tinha trabalhado não só para comprar umas poucas bolinhas de gude ou as tais balas que vinham com figurinhas, mas principalmente para ajudar com as despesas da casa dos tios, onde ele morava com os primos e a irmã mais nova.   Lendo pensamentos, meu pai disse que se eu quisesse comprar alguma coisa para mim, ele poderia ajudar. Desde que a tal coisa não fosse muito cara.
Eu sabia que o cinto em casa andava permanentemente apertado e que loja de brinquedo era um lugar de passeio e de sonho, não propriamente de compras.  De qualquer forma, o que eu queria, nem brinquedo era. E mesmo se tivesse coragem de pedir um presente, a ideia era adquirir meu objeto de desejo sozinho. Com meu próprio dinheiro.
Meu pai me disse que, se fosse em casa, eu poderia trabalhar um pouquinho: seria bom aprender coisas novas, desde que não atrapalhasse os estudos e as leituras. Eu até poderia encarar o “serviço” como uma boa brincadeira, mas para ganhar algumas moedas, a brincadeira teria que ser séria e bem feita.  Ah! Arrumação da própria cama e enxugamento de louça do almoço de domingo já eram obrigações e não seriam remuneradas de jeito nenhum.
Já que não havia malas pra carregar, escolhi engraxar sapatos. Meu pai arranjou uma escova de dente usada, duas latas novas de graxa (uma preta e outra marrom), três flanelas limpas, uma caixinha simples de madeira e uma escova grande. Nem bem me deu as instruções básicas e eu já saí pela casa à caça de fregueses e de sapatos.  Virei, mexi e arranjei uns seis pares, sendo que quatro eram dele: ali, na minha mão, aqueles seus sapatos surrados, todos com o formato inconfundível de seus pés desconcertados por horas e horas de aulas e sofrimentos passados tantos.
Sapatos e bailarino calejados pelas mil voltas de uma vida tormentosa.

***

Eu já tinha engraxado todos os sapatos da casa e nem assim conseguira juntar o dinheiro que queria para iniciar meu projeto secreto.  Com muito jeito, fui até meu pai e me ofereci para fechar o portão da garagem toda vez que ele saísse com o carro. Quando percebi que ele ia rir gostosamente, me adiantei e expus todas as dificuldades que a tarefa exigiria de mim:
Para que alguém do meu tamanho pudesse fechar a garagem seria preciso dar um salto e se pendurar na grade inferior do pesado portão de ferro. Depois, esse mesmo alguém deveria fazer força para baixo usando todo o corpo: só assim a parte superior do tal portão poderia correr pelo trilho preso no teto ao mesmo tempo em que um complexo sistema de cabos e roldanas levantaria, junto à parede, um gigantesco paralelepípedo de madeira que servia de contrapeso. Mas não era só isso: depois de fechada a garagem, seriam necessárias muita técnica e intrincada ciência para erguer um pouco e com muito jeito a base do portão, o que faria a lingueta da tranca se encaixar no local devido. Aí, e somente aí, se poderia girar a chave e a garagem ficaria trancada com segurança.
“Hum...Além de força, técnica e ciência, essa tarefa parece exigir uma grande responsabilidade...” , tentou não rir meu pai.
“Uma grande responsabilidade!”, confirmei muito sério.
E naquela mesma tarde, assim que meu pai saiu com o carro, fechei solenemente a garagem com a tal “grande responsabilidade”, segurei com força a moeda recebida por aquele serviço, apalpei o bolsinho do short que guardava as minhas economias amarrotadas e atravessei a rua.
Com o coração lá na frente, dobrei a esquina que dava para o Largo Santa Cruz, cumprimentei rápido seu Chalita, que atendia alguém no balcão da sua loja, e entrei na porta vizinha, a da Papelaria Rossi.
Minutos depois, ao lado da grande mesa do escritório-biblioteca de meu pai, abri o sonhado pacote de 250 folhas de papel sulfite comprado graças a alguns pares de sapato e ao portão da garagem.
E sobre a antiga escrivaninha de datilografia do meu avô, agora transformada na minha mesa de estudos, retirei dez folhas do pacote, ajeitei-as meticulosamente e, emocionado, mergulhei naquele mundo branco, imprevisível e incontrolável.
E deliciosamente sem limites.

***

Minha mãe sempre soube o feitiço certo para anzolar criança na leitura.
Não se sabe como ela descobriu uns livros grandes e finos, de bordas onduladas e capas instigantes: dentro de cada um deles, gravuras coloridas e curiosas (sempre socorridas por frases curtas escritas com letras também grandes e em negrito) contavam histórias que eram lidas uma, duas, dez milhões de vezes. Como aquela do porquinho e do coelho que entravam em um castelo assombrado por um fantasma, que no final se revelava um lobo escondido sob um lençol. Ou a do posto de gasolina que na última página ia pelos ares por causa da imprudência de um senhor porco – de anéis no dedo e metido a sebo – que acendia um charuto enquanto abastecia seu carro conversível.
E se não eram esses livros, eram os fascículos (comprados em banca de jornal e depois encadernados) que traziam os contos clássicos da Disney em quadrinhos ou as incríveis histórias da Revista Recreio, cujo lema no início da década de 1970 era “Leia e pinte. Recorte e brinque”.  Editados pela editora Abril, cada número da Recreio trazia um ou dois contos, geralmente escritos por feras como Sonia Robatto, Ruth Rocha, Ana Maria Machado e Joel Rufino dos Santos, acompanhados pelas ilustrações de desenhistas geniais como Waldyr Igayara, Izomar Camargo Guilherme, Renato Canini e Brasílio da Luz.
Da Revista Recreio se aproveitava tudo: as folhas centrais que depois de recortes, dobras e colagens se transformavam em incríveis brinquedos de papel; o brinde encartado no fascículo (que podia ser um brinquedinho singelo de plástico ou até sementes para plantar no vaso); as páginas com ilustrações sem colorido feitas para o próprio leitor pintar como quisesse, e até as abas de cada folha, que apresentavam as mais diversas atividades. E, claro, as sensacionais histórias que incendiaram a imaginação das crianças da década de 1970 e as tornaram muito mais felizes. Aliás, não só daquela década, porque muitas dessas histórias, que naquela época eram vendidas em bancas de jornal por alguns cruzeiros, hoje podem ser compradas em livrarias por uns tantos reais, mas por menos pessoas.  Se atualmente tais histórias se revelam em papel de altíssima qualidade, com projetos editoriais ricamente elaborados e ilustrações que até parecem obras de arte, garanto que a apresentação gráfica simples, o papel comum e os desenhos cheios de cor, mas sem rebuscamentos (feitos justamente para ajudar a contar aquelas histórias) cumpriam muito bem sua missão de instigar, divertir e iluminar almas novas e sedentas de vida e de sonho.
Assim, quando eu me via diante do mundo branco de sulfite, meu coração se acelerava: com minhas canetinhas coloridas eu fazia desenhos em cada página e depois voltava colocando os textos que acabariam por formar pequenos livros de histórias.  Histórias que eu sonhava que fossem como as da Revista Recreio ou as dos livros finos de letras grandes e pretas. Mas nem que não fossem: o importante era contar histórias, brincar de Deus, criar do nada ou recriar o imperfeito.
Cada vez que retirava meu pacote precioso de dentro da gaveta e me emocionava com as folhas em branco, eu podia me espalhar pelo mundo conhecido ou até mesmo fazer outros. Novos. Remundos.
Cada vez que as canetas coloridas rabiscavam minhas histórias desvairadas com seus desenhos encapengados, sentia que de alguma forma eu podia rearranjar os caminhos sofridamente tortuosos de meu pai, para que seus pés libertos nunca mais deformassem seus sapatos.
Para que meus pés libertos encontrassem caminhos nunca imaginados.

Ilustrações: Erasmo Spadotto e Maria Luziano – cedidas pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 16 e 20/11 e 4/12/16


O menino, o mar e os poetas

(caio silveira ramos)

O Colégio São Francisco Xavier do Ipiranga escolheu a obra e a vida do poeta Vinícius de Moraes para desenvolver um projeto de leitura com seus alunos do 2º Ano do Ensino Fundamental.  O projeto culminou com uma apresentação teatral e eu fiquei matutando se não seria melhor terem usado mais músicas do repertório infantil do poeta do que suprimir “trechos incômodos” de algumas de suas obras.  Talvez fosse mais interessante cantar “A pulga”, “A foca”, “Menininha” (todas parcerias com Toquinho) e “São Francisco” (com Paulo Soledade), ou até mesmo obras adultas como “Chega de saudade”, “Se todos fossem iguais a você”, “Garota de Ipanema” (todas com Tom Jobim), “Coisa mais linda” (com Carlos Lyra) “Valsinha” (com Chico Buarque) e “Pela luz dos olhos teus”, que vetar as partes faladas de “Samba da Bênção” (com Baden Powell) – o que fez sair de cena as próprias bênçãos -, e de “Sei lá...a vida tem sempre razão” (com Toquinho) ou retirar as estrofes que enumeram os amores marotos do pequeno bardo de “O poeta aprendiz” (também parceria com Toquinho). 
De qualquer forma, o saldo do projeto foi muito bom, porque fez a meninada voltar para casa conversando sobre os parceiros do Poetinha e cantarolando a parceria com Tom Jobim, “Eu sei que vou te amar”, a com Toquinho e Paulo Soledade, “O pato (pateta)”, e as canções, só de Vinicius e Toquinho, “A Porta” e “Tarde em Itapuã” (com direito até a estrofe em que se argumenta “com doçura com uma cachaça de rolha”). 
Eu, sem saber se a professora tinha explicado o significado de algumas palavras de “O poeta aprendiz”, abri um dicionário com João Pedro e fomos tirando da cartola todos os sentidos de um menino valente e “caprino”. Ou do “bodoque” de um “infante” sadio e “grimpante” com o olhar “verde-gaio”.  E depois rimos gostosamente quando meu pequeno disse que uma coleguinha, ao interpretar “Tarde em Itapuã”, cantava “na Praça caída senti preguiça no corpo” em vez de “na Praça Caymmi senti preguiça no corpo”.  Aproveitei a deixa e perguntei se ele sabia quem era aquele “Caymmi” que dava nome a uma praça.
“Era um cantor, né?”
Era. Mas era tanto mais. Tanto que o verbo devia ser conjugado no presente: Caymmi é.  Mas como explicar isso ao pequeno? Como resumir o mar, o mar tamanho, a uma gota repousando na palma da mão?
Não entanto, Caymmi é mar e é gota.  Preenche os espaços abertos e se abriga nas miudezas. Revela os infinitos e as pequenas coisas.
Então, achei que, melhor que explicar tudo aquilo, seria contar uma história. Uma história que ocorreu noutro dia mesmo para mim. Ou há muito, muito tempo para um menino de oito anos.
Bebê de colo ainda, João pouco chorava. Mas quando chorava, pela proximidade do sono ou quando qualquer outra coisa lhe perturbava o sossego, sua voz ecoava com força. E eu, pai de primeira viagem, inventava mil e um segredos para recolher no meu próprio peito aquilo que eu achava ser dor ou incômodo para uma vida que cabia nos meus braços. 
Um dia, durante um daqueles momentos de choro, depois de andar com os pés no teto e me equilibrar na corda do varal (mas sem o sucesso da trégua), me veio em socorro a voz de Dorival Caymmi. Grave, potente, sonora. Mais sonora que o soluço do Joãozinho. Porém, ela não chegou trazendo o seu famoso “Acalanto”.  Ela saiu de mim em forma de mar. “O mar”:
“O maaaaaar, quando quebra na praiaaa, é boniiiiiiiiito, é boniiiiiiito”.
O pequeno parou imediatamente de chorar e me olhou intrigado. Um olhar profundo com todos os seus veres.
Aproveitei a deixa e, tal qual a gravação Caymmi, modulei a tonalidade:
“O maaaaaar, quando quebra na praiaaa, é boniiiiiiiiito, é boniiiiiiito”.
Aninhado pelo som potente que fazia vibrar meu peito e meu colo, Joãozinho sossegou de vez seu choro. E serenou, serenou. Até que dormiu.
E dali em diante, cada vez que ele chorava, eu me caymmizava todo. E “O mar” desaguava majestoso e sonoro sobre o desassossego do pequeno.
Anos depois, ele acharia graça por ter se deixado hipnotizar tantas vezes pelas ondas de um mar desenhado pelo homem que dava nome à praça da canção de Vinicius de Moraes e Toquinho.  Mas lá atrás, com meu filho ainda no meu colo e já dormindo, eu me lembrava de meu pai e de outra canção daquela dupla. Então, mergulhado em benquerenças, eu sussurrava baixinho para alimentar seus sonhos: “dorme meu pequenininho, dorme que a noite já vem/teu pai está muito sozinho de tanto amor que ele tem”.
E inundado de mar e poesia, eu adormecia também.



Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 23/10/2016

A força que vem do além

(caio silveira ramos)

O músico Fernando delPapa foi para França aos dezenove anos com a cara, a coragem, o cavaquinho e o talento.  Depois de mais de uma década na Europa, “Fernando do Cavaco” assumiu o sobrenome (embora artisticamente modificado) e lançou neste segundo semestre de 2016 seu primeiro CD, “Eu também”, um dos melhores discos dos últimos anos.  Suas letras e melodias são tão inspiradas, que o próprio Chico Buarque gravou um vídeo elogiando Fernando e seu CD.  A palhetada do Fernando é tão espetacular que o disco é ao mesmo tempo brasileiríssimo e universal.
Conheci o Fernando numa roda de samba antes de sua viagem para Paris. Naquela época, sua destreza com o instrumento, influenciada por Luciana Rabello, já mostrava “o que pode um cavaquinho”.   Além da paixão pelo samba, eu, ele e seu pai (um fabuloso cantor chamado Sérgio Del Papa) tínhamos pelo menos mais uma coisa em comum: nós três, assim como tantos outros, éramos discípulos de João Borba.    O que nos ligava a esse grande artista piracicabano não era apenas o seu canto: era também todo o espírito do samba que ele encarnava.
Depois que se aposentou do seu serviço na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, finalmente João Borba pôde cuidar melhor da carreira que já vinha desde os anos 1950 e que passava pelo grupo de teatro, música e consciência negra de Solano Trindade, pelas Escolas de Samba de São Paulo e pelas noites paulistanas.   Aposentado, finalmente Borba conseguiu gravar seus três CDs: “João Borba: Memória do Samba Paulista” (gravado em 2005 e lançado pelo Kolombolo em 2014), “João Borba Canta Jorge Costa” (2008) e “Eu comigo e meus amigos” (2011). Aposentado, finalmente Borba pôde levar seu samba e sua voz pelo mundo, principalmente para Paris, onde reencontrou Fernando e seu cavaco.
No começo do segundo semestre de 2015, João Borba andava um pouco doente, mas estava animado com sua última viagem. E já se preparava para ir à Cuba. Ele me procurou dizendo que em Paris, Fernando delPapa tinha criado a palavra “Baoborba”, mistura dos nomes da mítica árvore e do sambista. Fiquei entusiasmado com a ideia de Fernando, que definia tão bem a força soberana de João Borba.  Mas meu amigo me procurava por outro motivo. Tivera a inspiração de fazer um samba, não sobre si próprio, mas sobre a árvore que lhe emprestava o novo apelido.  Ele ainda não sabia como seria, não tinha a letra, nem a melodia, e por isso me provocava com sua doçura: “então, vamos fazer um samba sobre o baobá?”. Aceitei na hora, comovido pelo convite e pelas ideias que já me atropelavam com alegria e fúria.
Fiz a letra, esbocei a melodia e mostrei para o Borba. Ele se empolgou e disse que iria completar a música. Mas lentamente os males do corpo foram solapando a raiz daquele Baoborba que eu julgava eterno: ele não foi para Cuba, começou a cancelar algumas apresentações e não completou o samba.  No dia 10 de setembro de 2016, liguei para dar os parabéns pelos 82 anos.  A querida Salete atendeu, percebi que ele pigarreou para ajeitar a garganta e o corpo, e lá de longe eu ouvi a voz serena do meu parceiro: “estou fazendo 18 anos!”. Para animá-lo, contei que a melodia de “Baobá” estava pronta e acabada só esperando para ele gravar, quem sabe, fazendo um dueto com o médico e baluarte Chico Aguiar. E que poderíamos, no final do samba, preparar um duelo entre um violão 7 cordas e um violoncelo, e ainda... Mas senti que, mesmo colocando o sorriso de sempre na voz serena, meu amigo estava já cansado. E nos despedimos com o carinho de sempre.
No dia 20 de setembro de 2016, dez dias depois, tombou para sempre o meu Baoborba. O Baoborba de Fernando delPapa, Chicão, Pasquale Nigro, Wandi Doratiotto e de tantos outros parceiros, amigos e sambistas. O Baoborba da Pérola Negra, do Império do Cambuci e de tantas outras Escolas de Samba de São Paulo. O Baoborba da Vila Madalena, do Centro, de Embu das Artes, de Piracicaba, de Paris e de onde mais o samba chegou e chegará.
Nesses últimos vinte anos, meu conterrâneo João Borba foi meu parceiro, meu intérprete e meu irmão.  Para ele escrevi e atualizei seus “releases”, fiz o texto de encarte de um dos seus CDs e ofertei sambas que ele gravou ou apresentou em shows.  Juntos, planejamos inúmeros espetáculos (inclusive o que ele pretendia apresentar até o final de 2016: “João Borba: 60 anos de música e sonho”) e compusemos amizade, fraternidade e música.
Nossa única parceria gravada fala de um rio em que nós dois, quando meninos, mesmo em épocas tão distintas, matamos a sede e nos espelhamos.  Que a água cristalina sonhada para nosso rio e para tantos outros sacie todas as aflições. Que o samba, feito um baobá, ilumine todas as almas.
Viva sempre em nós, João Borba!
Para você, o samba sonhado:

Baobá
(Caio Silveira Ramos) – para João Borba e Fernando delPapa

Amei
Acima de qualquer pecado
Rasguei
Meu coração encarcerado
Plantei
Uma semente nessa terra
Que espera, feito ela,
Renascer, se libertar

E do meu coração dilacerado
Brotou
Meu samba novo, germinado
Cresceu
Embriagou-se de tristeza
Recriou a natureza
Se agigantou
Tocou o céu.

Baobá
A força que vem do além
Do além-mar
Além deste tempo, deste lugar
Raiz que ensina a caminhar

Baobá
Rompendo qualquer grilhão
Baobá
Abraço da multidão
Baobá
Sagrada profanação
Baobá

Baobá
Meu sangue já abrigou
Baobá
A sede já saciou
Baobá
Meu corpo multiplicou
Baobá
                                                                                          

                                                                                                                                                Publicado no Jornal de Piracicaba em 9/10/2016



A volta do Tigre Negro

(caio silveira ramos)

A cadelinha Nina chegou revirando o mundo. Mudou a disposição das coisas na área de serviço. Fez alguns cômodos da casa fechar suas portas. Espalhou obstáculos feitos de borracha e pano no tapete da sala.  Depois se espreguiçou e ofereceu a barriga manchada de branco para afagos de mil sóis e mãos infinitas.
A moça que trabalha no prédio sentenciou: “ela parece cachorro de pobre. Cachorro de rico é branco, peludo, sem focinho e tem rabo curto. Ela tem focinho grande, pelo rente e rabo comprido. Como ela, e ainda malhadinha assim, marrom, com mancha preta e pata bege, tem um monte na favela”.
Rindo, retruquei: “então a Nina é perfeita pra gente: não somos ricos mesmo!” E lá fui eu, todo feliz, com meu filho, jogar bola com a cachorrinha no meio da sala.
E lá vai ela, feliz também, correr com as orelhas balançando. Nina pula, deita, rola. E balança a cabeça, segurando com os dentes cheios da valentia dos seus dois meses, o cachorrinho de pelúcia Tibúrcio.
Nina parece tão feliz, que a suspeição da faxineira sobre o pedigree mambembe trazido pela criadora se dissolve no primeiro olhar profundo pedindo colo. E a “mini daschund arlequim” se transforma deliciosamente numa “salsichinha malhada”, provavelmente não tão “inha” assim no futuro.  E se seu “padrão raro de pelagem” – com manchas pretas, e focinho e patas cor “tan” –, se revela, na verdade, como o provável resultado de algum cruzamento temerário, apenas duas roladas de 360 graus no chão da sala fazem o prédio desabar de ternura por causa de Nina, a mais bela. Nina, Nininha, Ninoca, Ninotchka. Nina Biscoito. Nina-mel.
Mas existe algo mais naquela cadelinha que provocou a querença instantânea em mim.  Algo além da maciez do pelo malhado, da corrida saltitante pela casa, da delicadeza de mordiscar sem dor a mão que lhe afaga a barriga. 
Olhando uma sequência de fotos em que ela, apoiada no meu ombro, vai serenando tranquilamente os olhos até fechá-los por completo, decifro o sonho que a cadelinha devaneia.  Em algum lugar, lugar perdido entre mim e ela, Nina faz seu chamado, que é também o meu.
E ao longe, eu e ela avistamos quem atende ao nosso pedido.
Destemido e altivo, o Tigre Negro está de volta.

***
O cachorrinho de plástico, que já tinha passado pelas mãos das minhas três irmãs, chegou até mim sem os olhos e as rodinhas. Mas mesmo assim, eu me empertigava todo puxando o brinquedo por um barbante lá no quintal de casa. De tanto verem a cena, quando a Jô anunciou que a cadelinha da sua casa iria dar cria e que eu poderia ficar com um dos filhotes, meus pais decidiram que já era hora de eu ter um cachorro de verdade.
No começo de janeiro de 1979, os filhotes nasceram e ficou combinado que, assim que a nossa família voltasse da viagem de uma semana pra Poços de Caldas, iríamos apanhar o bichinho.  Quando a Jô disse que o cachorrinho tinha o pelo quase todo preto, imediatamente comecei a pensar em nomes.  Depois de muito matutar, anunciei solene: “ele vai se chamar Tigre Negro”.
Alguém ironizou e até me falou alguma coisa, mas na minha cabeça eu e Tigre Negro já enfrentávamos os mais temíveis vilões do Universo. Seríamos uma dupla corajosa e invencível, pronta para combater o mal.
A viagem para Poços foi muito, muito boa, mas confesso que entre os sabonetes artesanais, as fontes luminosas coloridas, o relógio de flores no meio da praça, o café da manhã de hotel, a vista do Cristo, uma cachoeira, um parque infantil e um barquinho de ferro da coleção “Matchbox”, Tigre Negro aparecia voando, me convidando para uma nova missão. Por isso, na mesma tarde em que chegamos cansados da viagem, fui com meu pai e minhas irmãs até a casa da Jô para me encontrar com meu parceiro.
Os filhotes estavam dentro de uma manilha de concreto e, mesmo antes de a mãe da Jô apanhar o bichinho certo e colocá-lo numa caixinha de papelão, eu já tinha reconhecido o temido Tigre Negro.  Que descansava serenamente de olhos fechados.
Em casa, rodeado por panos e crianças, o cachorrinho parecia se acostumar com as novidades. Menos com o nome. Eu chamava baixinho, “vem Tigre Negro, vem”, porém ele parecia não ligar muito. Mas quando minha irmã Ester esfregou os dedos com um pedacinho de comida e falou “tipe, tipe, tipe” ele levantou a cabeça, saiu da caixa e foi cambaleando, cambaleando, saborear o petisco. Depois, para minha surpresa, lambeu amoroso a mão da minha irmã. Que fez seu rá, rá, rá, triunfante, o afagou com gosto e completou:
“Tipe, tipe, tipe. Isso! Ele mesmo já escolheu seu nome: Tipe!”
Reclamei, sustentei o título, chamei, chamei de novo, com energia de um soluço engasgado “Tigre Negro! Vem cá!”.  Depois, minha voz foi se entristando baixinho, mas ele não veio. Ester tentou consolar:
“O tigre é um felino. Vai ver que ele acha que você tá chamando ele de gato...Ele é um cachorro valente.” 
Ela então o conduziu de volta para a caixinha de papelão e me ensinou que, coçando a orelha do bichinho, ele fechava os olhos. Depois segurou minha mão e fez meu dedo passear ao longo do focinho do cachorrinho, que foi se acalmando, me acalmando. Até que manso, ele dormiu com um suspiro adocicado.
Como muitas vezes ainda faria, me deixei consolar afagando longa e serenamente aquele meu novo amigo. E sussurrei, ainda que sem jeito, para mim e para ele:
“Dorme, Tipe. Dorme bem.”

***
Ainda que para o veterinário eu insistisse que o nome do meu amigo era Tigre Negro (“só o apelido é Tipe, mas pode chamar desse jeito mesmo”), acabei me rendendo ao inevitável e, exceto nas histórias ilustradas com canetinha – “em que o fabuloso herói Tigre Negro salva sua amada cachorrinha pequinês Pink” -, o nome “Tipe” passou a ser um dos que mais minha voz lançava pela casa com amor e alegria.
Não que fosse indomável, mas ninguém achou que adestrá-lo fosse importante. Assim, se ele era normalmente proibido de entrar nos cômodos internos da casa e até no pátio, lá no quintal (que começava no muro baixo e vazado, com seu portãozinho de ferro, e ia até o quartinho dos fundos), Tipe se espalhava com tal liberdade, que domá-lo pareceria violência ou insensatez.  Mesmo sendo completamente indisciplinado – ele nunca trouxe a bolinha atirada de volta -, Tipe se tornou meu grande parceiro pela cumplicidade.
Quando eu chegava triste, ele me olhava fundo, se sentava ao meu lado no chão e depois se ofertava para um afago silencioso. E permanecia lá, até que a minha tristeza se perdesse na sua pelagem preta.  Mas quando eu vinha felizando o dia, ele me pulava nas pernas, pegava alguma bola e saía correndo pra que eu fosse atrás dele sem nunca alcançá-lo. Depois ficávamos os dois exaustos, encostados em uma das colunas do ranchinho ou no tanque de pedra onde minha mãe o banhava.  Quando as respirações se acalmavam, ele oferecia a barriga e eu a coçava rapidamente do lado esquerdo, o que fazia a pata traseira da mesma banda girar freneticamente.  Ele então se esticava todo de contentamento.
Em outros dias, minha alegria de menino era tanta e se transbordava de tal forma, que só de me ver Tipe danava a fazer círculos enormes pelo quintal, numa velocidade três vezes maior que normalmente ele mostrava: cinco, seis voltas, passando feito um tiro em meio a galhos, troncos, touceiras, pedaços de madeira, degraus de canteiros, colunas do ranchinho aberto (que ficava no caminho), vasos, vasilhames e todo tipo de tralhas. Nada, nada o segurava. Ficava morrendo de medo que ele trombasse de frente com uma árvore, tropeçasse numa garrafa ou ficasse entalado entre galhos cortados. Mas Tipe parecia guiado por uma força sobrenatural, como se algo o conduzisse pelas frestas mais escondidas para que ele seguisse sua sina de relâmpago.  Depois parava bruscamente, bebia sua água com sofreguidão e vinha manso descansar ao meu lado.
Talvez por seu reino se limitar às fronteiras do quintal, Tipe se tornou uma fera com estranhos.  Se era amoroso e cheio de dengos para com os da casa, com os de fora – exceto com a Jô, Dona Délia e sua neta Marcinha e, lógico, com a Tita, por quem Tipe morria de amores -, ele se transformava mesmo em Tigre Negro, rosnava com força e, se pudesse, partia para o ataque.
Seus alvos preferidos eram os meus amigos que vinham para brincar ou jogar bola no pátio: talvez achasse que eles queriam machucar o seu querido parceiro.  Nesses dias, Tipe latia furiosamente e sem trégua, e quase se esgoelava com a cabeça entre as grades do portãozinho. Meu pai chegou a colocar uma tela e alguns arames grossos para ele não se machucar ou ficar entalado, mas para infelicidade dos meus amigos, Tipe, de tanto chacoalhar o portão, acabava por abrir o trinco e disparava feito um raio louco pra cima dos meninos.
Um dia ele foi direto na canela do Genival: não machucou muito, mas fez terminar o  futebol daquela tarde e quase acabou com a amizade também. Mas quando o Tipe foi pra cima do Nando, a coisa ficou feia pro lado do meu cachorro. A sorte é que, goleiro voador que era, Nando deu três pulos altos e livrou sua canela saltando pra cima da mesa da copa.  E enquanto eu prendia o Tipe de novo, balançando no ar uma folha de espada-de-são-jorge (uma das poucas coisas que o Tipe temia, embora nunca tenha apanhado), meu pai foi tirar o Nando de cima da mesa.
Depois daquele susto, ficou decidido: enquanto meus amigos estivessem em casa, Tipe ficaria preso no quartinho dos fundos.  Mas para que meu amigo ficasse mais à vontade durante seu desterro, meu pai serrou a porta do quartinho ao meio e colocou um trinquinho na parte de baixo, deixando a metade de cima aberta para o ar, para o som e para o sol.
Jogando bola com a molecada, eu ouvia ao longe os latidos incansáveis e ferozes do Tigre Negro.  E quando os meninos iam embora, lá ia eu libertar meu amigo.  Que pulava em mim afoito, parecendo conferir se aqueles intrusos tinham me machucado.  Cheio de remorso eu abraçava meu amigo, enchia seu potinho de água fresca e me sentava ao seu lado, conversando com ele, perguntando por que era tão bravo.  E ele, Tipe renascido, já despido do temível Tigre Negro, se aninhava tranquilo por me ver seguro de novo.
Ele e seu parceiro, mais uma vez, tinham conseguido escapar de todos os perigos do Universo.

***
Além de ter sido um amado professor de Educação Física e um lendário técnico de basquete e vôlei, tio Sebastião Simões nunca deixou para o dia seguinte o que podia fazer no anterior. Talvez por isso, assim que se viu preocupado com minha coluna de 16 anos moldada pela miopia, ele resolveu construir uma barra fixa para eu me exercitar em casa. 
Para sustentar o cano de ferro da barra, tio Sebastião cavou dois buracos na parte cimentada do quintal e em cada um deles ergueu os enormes batentes de uma antiga porta que estavam encostados no ranchinho. Por fim, para deixar tudo bem seguro, construiu em volta da base daquelas colunas de madeira (já furadas no alto para receber o cano de ferro), dois “caixotes” de concreto.
De dentro do quartinho, enquanto tio Sebastião suava com suas ferramentas no quintal, Tipe  latia, só que sem muito entusiasmo. Mas só depois que a obra ficou pronta e tio Sebastião foi embora, que eu percebi que meu cachorro não estava muito bem: assim que foi solto, andando pelo quintal, Tipe trombou com a base da barra. Ele estava praticamente cego.
Não demorou muito, sua visão se perdeu totalmente, a barriga ficou inchada e dura, e ele entristeceu-se todo.  Só ficou a ternura. 
Numa tarde de sábado, minha mãe ligou para um ex-aluno que era veterinário. Ele veio, examinou o Tipe, balançou a cabeça e aplicou uma injeção para amainar suas dores.  E no dia seguinte, de manhã, as dores se foram todas. Menos a da tristeza, que se instalou sem prazo para ir embora: Tipe fechou os olhos sem que meus dedos precisassem passear por seu focinho.
Como meu pai estava em Ribeirão Preto, na casa da Ester, minha irmã Raquel convenceu seu namorado a cavar um buraco bem profundo perto do pé de caqui para enterrar o Tipe.  Eu despreguei uma das tábuas de uma caixa (do tipo usado para vender cachos de uva), peguei uma lente de aumento e fui pacientemente direcionando a luz do sol para queimar, feito um pirógrafo, a madeira macia. E ponto por ponto, fui gravando letras e números naquela lápide de pau, fogo e lágrima: “TIGRE NEGRO (TIPE) - 09/01/1979 - ...”.  A data da partida também estava lá na placa, mas agora não me lembro mais. Me esforço, faço contas e associações, mas o choro que embebedou aquele pedaço de madeira, apagou tudo. O ano talvez seja 1986 ou 1987 ou 1988, mas o dia e o mês se perderam em meio a todas as chuvas de céu e de olhos, assim como se desintegrou aquela tábua que tinha sido queimada pela dor e pelos raios do sol.
Meu pai, quando voltou de Ribeirão, para aplacar sua tristeza, plantou margaridas bem na área onde a terra ainda úmida abrigava meu amigo. E como a tristeza talvez fosse muita, nas bordas dos três canteiros do quintal, ele cultivou mais das mesmas flores, contornando aquele canto do mundo de branco, amarelo, verde e do silêncio de um Tigre Negro.
Até que eu girei a chave da porta da entrada de casa e, vindo lá de dentro, o latido vigilante de Tipe escorou-se em mim.  Mas quando entrei, nem era do Tipe a voz agora estancada: quem me olhava fundo nos olhos e corria para o tapete da sala de um apartamento, se esticando toda para um agrado, de barriga para cima, era a cadelinha malhada Nina.  Sem mesmo tirar o paletó, me agachei ligeiro para que as minhas mãos de menino se desdobrassem em mil e um afagos.  Mas aquele menino nem era eu.
Eu continuava de pé, no meio da sala daquele apartamento, vendo meu filho de capa e coragem, voando pelos séculos ao lado de sua parceira tigrada.
Os dois prontos para derrotar todos os vilões da galáxia.

Ilustrações: Erasmo Spadotto e Maria Luziano – cedidas pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 14 e 28/8 e 11 e 25/9/2016



Fantasia de Maria

(caio silveira ramos)

Maria tem três anos e pouco. A pele morena e o cabelo escuro (que usa até os ombros) ela ganhou de Bangladesh.  E a fendinha que tem no arrebito do nariz ela copiou de sua mãe, que é paulista-pernambucana-italiana-etc-e-o-mundo.
Mas o sorriso, que ela estende pela rua quando vê a gente lá de longe, é só dela.  O olhar espremidinho de alegria, que não traz o azul da mãe, também é só dela. E os braços abertos, vindo, vindo, para trazer no abraço profundo aquele sorriso estendido e os olhos espremidinhos, também é apenas dela.
Pois a diretora da escolinha chamou a mãe da Maria para uma reunião. E lá foi, toda preocupada, a mãe da Maria. Com ares graves e sérios, diretora e professora disseram para a mãe da Maria não incentivar muito a imaginação da pequena, que deveria ser prontamente introduzida nas realidades do mundo com mais firmeza e menos fantasia.
A mãe da Maria suspirou aliviada, ficou um tanto constrangida pelo pensamento das duas pedagogas, mas não retrucou, nem sorriu irônica, pois não é do seu feitio desdenhar de ninguém.  Talvez se ela não tivesse tanta imaginação e não incentivasse tanto a fantasia da Maria, ela desdenhasse. 
Como as duas senhoras não explicitaram muito bem as situações fantasiosas da Maria, a mãe da Maria tentou imaginar, embora já suspeitasse, o que tanto sua filha andava matutando para que a direção da escola praticamente a pintasse voando pelos ares.
Pois ela não contava histórias para a Maria todos os dias? Não se misturavam na hora de dormir os contos de Daniel Munduruku com os dos irmãos Grimm? Não era ela mesma quem levava a Maria a peças de teatro e brincava que ela não era a mamãe, mas o lobo da Chapeuzinho-Maria, e as duas riam, riam de quase pular de soluço?
Por isso Maria sempre quis o lobo. E o jacaré. E o jabuti. E a onça. O macaco, o coelho e o Riquete Topetudo. Mas na escola talvez não conheçam histórias desses personagens e, não contem a ninguém: suspeito que pensam que tudo deve ser apenas fantasia da Maria e da mãe da Maria. 
Mas a escola toda conhece a princesa Elsa, da super-produção Frozen, da Disney. Os vestidos da Elsa. A cabeleira quase prateada de Elsa e sua trança idem.
E é tão lindo ver todas as meninas no intervalo cantando “Let it go”. É tão emocionante ver as meninas se fantasiando de Elsa ou de qualquer outra princesa.  Pois essa fantasia pode: essa está na moda. Na escola, na noite do pijama, nas sextas-feiras, nas brincadeiras no intervalo, na saída do “jardinzinho”, os adultos se desmancham ao verem suas meninas incorporarem as mais belas princesas dos desenhos.
E embora cantem “livre estou, livre estou”, o que fica dos contos de fadas para as crianças não é o enredo fabuloso, nem o chamado empoderamento feminino que teria vindo com as princesas Elsa, Valente e a Aurora de “Malévola”, que em seus filmes não encontram mais em príncipes encantados o amor verdadeiro. O que fica é apenas a fantasia. Mas não a fantasia da Maria, não a fantasia do sonhar, do encantamento, mas sim, a fantasia de, literalmente, apenas vestir roupa e cabelo. Essa fantasia é importante também, mas às vezes se perde na superfície do lago, deixando só a imagem no espelho.
Mas os “ligados na realidade” querem mais é a imagem chapada desse espelho sem fundo e se orgulham de suas meninas metidas debaixo de desengonçadas perucas platinadas de uma Elsa esvaziada.  Ou se gabam de suas pequenas imitando as coreografas de músicas que tratam de “poderosas” e “recalcadas”, mas que muitas vezes apenas reduzem meninas e mulheres a velhos estereótipos machistas. Esse é o “mundo real” onde as palavras “liberdade”, “fantasia” e “poder” se transformam em sapo e viram meras figuras retóricas.
Maria dança na roda de mãos dadas com as amiguinhas. Sorri, abraça, pinta, borda e brinca. Assiste ao “Sítio do Picapau Amarelo” e bate palmas ao ver a Menina do Nariz “Arrebentado”. Os olhos da Maria são vivos, ligados. A realidade não lhe escapa. O que ela teria feito?  Teria tentado voar do brinquedão da escola pensando ser a fada Sininho e acabara se estabacando no chão?  Teria se frustrado quando o amiguinho beijado no rosto não virara um sapo-boi? Ou se espantara por ter feito salacadula num boneco de madeira e ele permanecera apenas um boneco da madeira (porém falante)?
Depois de muito fuçar, a mãe da Maria descobriu a “excessiva fantasia”: durante a semana em que ela ficara de férias, sua filha, quando chegava à porta da escola, não queria entrar: dizia que lá dentro estava o lobo e que era melhor ficar em casa, cuidando das suas bonecas.  Estranhamente, o lobo sumiu da escola quando a mãe da Maria voltou a trabalhar.
É que talvez a fantasia da Maria seja muito poderosa: com um simples passe de mágica ela consegue fazer sumir o lobo mau.
Ou transformar adultos em abóboras recheadas de vento.


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 31/7/2016