segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Manhas e missões


(caio silveira ramos)

Eu ainda brincava descalço no pátio de casa, mas minhas pequenas tarefas eu cumpria com indisfarçável orgulho.
Quando a campainha tocava, era eu que corria em disparada para ver quem estava chamando. Descia a escada e abria a janelinha da porta que dava para a rua (ou, se era de noite, espiava do alto, lá da janela do escritório): se era alguém conhecido, fazia a pessoa entrar.  Caso contrário, ia voando avisar um adulto.  Mas em casa, a maioria das pessoas que chegava era conhecida: meus pais sempre receberam muita gente.  Gente que vinha para conversar, pedir ajuda, um conselho, um colo, dar um abraço, trazer um doce, um bolo, uma travessa de macarrão caseiro, uma sacola de frutas trazidas de um sítio.  Gente que vinha sem dizer nada, só procurar um abrigo para o olhar perdido.  Um apoio para as desesperanças da vida.
O telefone também era eu quem corria para atender: tanta gente também querendo falar com meus pais, ouvir suas vozes, matar as saudades, dar um alô. Ou eram as amigas da Ruth, cheias de novidades para contar. Ou para ouvir outras tantas. 
Eu também voava para abrir as portas quando alguém carregava a pesada lata de lixo avisando “rápido, que o caminhão da limpeza está chegando!!”. E ainda ajudava a enxugar a louça quando chegava domingo. Mas aí a tarefa era alegre, já que todo mundo também fazia alguma atividade sempre conversando, cantando ou rindo de alguma besteira dita. Também era muito divertido passar a enceradeira na sala durante muitas tardes de sábado, quando a casa cheirava ainda mais limpeza e bolo de leite fervendo.
E cabia a mim fechar a garagem quando meu pai saía com o carro, o que demandava não só meu impulso para trazer o portão para baixo, como também certa arte para dar um leve tranco nele, fazendo-o se encaixar no fecho com precisão.
Mas minha missão preferida, aquela de que eu mais me orgulhava, era a de ligar a televisão.  Como uma tarefa tão simples quanto apertar o botão de um controle remoto pode provocar orgulho em alguém?
Aparentemente simples, a tarefa envolvia os mais profundos mistérios.  É que lá pela década  de 1970, não havia controle remoto e para se “acender” uma televisão não bastava um clique.
A primeira etapa era “ligar a tomada”: o fio saía do transformador conectado (fisicamente) à TV, caminhava pelo rodapé, contornava o batente da porta que dava para o pátio e estacionava seu plugue num preguinho em forma de gancho perto da entrada elétrica que ficava na parede a poucos centímetros do assoalho.  Então, eu desenganchava o tal plugue e ajeitava seus pinos nos buracos do “espelho”.  Simples, não? Seria se os encaixes daquelas tomadas fossem firmes como são hoje.  Naqueles dias, o plugue ficava meio bambo: era preciso achar o ponto certo (com muita arte) para que a tomada não acabasse perdendo o contato elétrico, o que desligaria a TV justamente na melhor parte do programa. Mas eu sabia achar o ponto com precisão.
Tudo certo, tudo resolvido, então era partir para a segunda etapa: ligar o transformador de voltagem. 
O transformador era uma caixa quadrada de ferro pesadíssima (com uma grossa alça de plástico em cima), que tinha na parte da frente um botão giratório e um painelzinho em forma de meia lua onde se via uma seta descansando e alguns números desenhados.   Era preciso girar cuidadosamente o botão no sentido horário até dar um clique. Acesa a luz do painel, movia-se novamente o botão dando mais dois cliques para a seta se mexer. Então vinha o pulo do gato: eu tinha que dar um leve tapa na parte de cima do transformador para seta voltar um pouco e chegar ao ponto certo. Oba, agora sim eu podia ligar a TV.
Naquelas velhas televisões de tubo, com a imagem ainda apenas em preto e branco, a tela era emoldurada por uma robusta caixa de madeira. No lado direito, se mostravam uma saída de som, um grande botão seletor e três botões giratórios menores: dois para a imagem (brilho e fixação: as imagens às vezes corriam de cima pra baixo na tela...) e um para ligar e controlar o volume.
Girado o tal botão e controlado o volume, a televisão começava a esquentar e a imagem ia lentamente aparecendo.    Se o programa fosse na TV Globo, como a emissora “pegava direto”, não era preciso fazer mais muita coisa, a não ser, às vezes, dar uma leve girada no botão seletor (mas sem chegar a fazer “clique”: muita manha nessa hora, hein?). Porém, se o programa passasse em outro canal, quem morava no interior, como eu e minha família, precisava girar o seletor (fazendo um teque-teque-teque-teque) até o número “3 e um pouquinho”.  Então, enquanto a TV “chuviscava ferozmente”, se ligava o “conversor de UHF”, uma grande caixa de madeira retangular que reinava sobre a televisão (depois arranjamos um modelo compacto e de plástico) com dois botões e um visor como os de rádio para enxergar a sintonia dos canais.  Aí, era preciso profunda arte e destreza: enquanto se girava cuidadosamente com a ponta dos dedos da mão esquerda (com uma sutileza que beirava a telecinesia) um dos botões do conversor, com a mão direita era necessário balançar ou torcer os dois longos fios achatados da antena que pendiam do teto e corriam soltos pela parede até se conectarem com a parte de trás do aparelho.  Mas esses movimentos tinham que ser muito bem calculados, precisos e firmes, feitos, logicamente, com uma quase ternura, porque a qualquer momento os fios podiam se desconectar do conversor e tudo ficaria mais difícil.
Enfim, encontrados o canal (se ele estivesse “pegando” naquele dia) e o programa desejados, mesmo que às vezes a imagem tivesse certo chuvisco, alguns “fantasmas” e um e outro tremor, eu me virava para os telespectadores caseiros para receber os aplausos.  Mas então já não era a minha arte que a plateia queria aplaudir.
E esquecido de mim, eu me juntava àquele “respeitável público telespectador” para ver o mundo entrando pela janela da sala.



Nomes: modos de transgredir

(caio silveira ramos)

Entre o final de março e o início de abril de 1971, poucos dias antes do meu nascimento, meus pais decidiram qual seria meu nome.
Ele, talvez marotamente, sugeriu, se nascesse um menino, o nome do sogro.  Minha mãe, conhecedora dos sentidos mais profundos das palavras de meu pai, deu a deixa para que ele pudesse revelar as ideias que realmente estava ruminando:
“Hum... ‘Sylvio’... Seria muito bom, mas aqui vão chamar o pequeno de Sirvo, Sirvinho... Acho muita maldade fazer isso com nosso nenê”.
“É, não é mesmo? Você tem toda razão... Então, estive pensando... O que você acha do nome ‘Anísio’, em homenagem ao Anísio Teixeira?...”
“Ah, não... Um bebezinho chamado ‘Anísio’? Acho que não combina muito...”
“É mesmo... Um nome antigo... Parece nome pra gente mais velha... Pensei também em ‘Caio’. Em homenagem ao Caio Prado Júnior...”.
“‘Caio’... É bonito. Então está certo: vamos dar ao nenê o nome ‘Caio’!”
Meu pai sorriu.  Mas se eu pudesse assistir àquele momento “ao vivo” não entenderia todas as razões do sorriso do pai.
Anos depois eu soube que o educador baiano Anísio Teixeira era um dos ídolos dele.  Anísio foi, no Brasil, o grande ideólogo da educação pública e um dos maiores símbolos na luta pelo ensino gratuito (e de qualidade) para todos. Para ele, a educação não era privilégio: era um direito. Toda sua vida foi devotada à ela.  E por ela foi criticado e perseguido. Mas pela educação ele lutou até o fim de sua vida.
Caio Prado Júnior foi um dos grandes pensadores do Brasil. Até os que o criticam e discordam de suas ideias (e de algumas de suas injustificadas omissões) reconhecem que suas obras são fundamentais para entendimento da História do País. Livros como “Formação do Brasil Contemporâneo” e “História Econômica do Brasil” são leituras obrigatórias para quem deseja conhecer o País a fundo.  Sobre a obra de Caio Prado Júnior não cabe falar a frase ignorante: “não li e não gostei”.  Pode-se até abominar suas ideias. Mas elas devem figurar em qualquer biblioteca que se preze.
Assim, na intenção do nome “Anísio” – que mesmo não efetivada esteve sempre presente em cada passo da minha vida – e na concretização do nome “Caio”, as paixões de meu pai e as bênçãos generosas de minha mãe nada impuseram a uma criança, mas nela gravaram as ideias que eles tanto lutavam e colocavam em prática todos os dias: a salvação e a transformação de vidas pela educação gratuita de qualidade e a diminuição das profundas desigualdades sociais de um país.
Mas só há pouco tempo descobri que meus pais foram além.  Menos de um mês da escolha do meu nome e do meu nascimento, Anísio Teixeira, depois de dias desaparecido, foi encontrado morto no fosso de um elevador. Naquela época já se suspeitava o que as atuais investigações indicam: Anísio não sofreu um acidente como foi oficialmente alardeado: pelas posições de seu corpo e de sua pasta (ambos encontrados numa parte do fosso incompatível com uma queda), pelo local e condições em que foram encontrados seus óculos, e principalmente pelas lesões sofridas pode-se concluir que Anísio foi brutalmente assassinado e depois teve seu corpo, sua pasta e seus óculos “arrumados” no fosso.  Coincidência ou não, após a morte de Anísio Teixeira o governo deu o pontapé inicial no desmonte da educação pública brasileira de qualidade. Educação pública que hoje agoniza impedindo que várias vidas sejam transformadas.
Quanto a Caio Prado Júnior, quando “recebi” seu nome, estava ele preso já há algum tempo.  E assim continuaria até agosto daquele 1971.  Preso não por desvio de dinheiro público, caixa-dois, corrupção ou qualquer desses crimes tão comuns na vida política brasileira: da mesma forma que fora preso durante a Ditadura Vargas, Caio estava novamente encarcerado, agora pela Ditadura Militar, simplesmente por suas ideias e livros.
Assim, com um simples nome dado a um bebê, meus pais de uma forma corajosa transgrediram a brutalidade de um Regime que atravessava justamente seu momento mais covarde e perigoso.  Por meio do nome de uma criança (com todas as suas variantes e intenções) estavam ofertadas as esperanças de um Brasil mais justo e humano.
E aqui sigo eu, prova viva de um período que não se apaga.  Nos nomes e sobrenomes que carrego na alma e no corpo está gravada para sempre a certeza de que a educação transforma vidas.
E que as ideias de um País menos desigual jamais, jamais devem ser novamente torturadas, mortas ou encarceradas.

                                                                                               Publicado no Jornal de Piracicaba em duas partes: 24/1 e 27/2/2019

Além do Mirante 5: Desespaço

(caio silveira ramos)



No Jornal não haverá mais espaço para mirantes e miragens.
Não há mais espaço.
Só restará o infinito.

E o Mirante seguirá no infinito.








Dessemelhanças


(caio silveira ramos)

Minha mãe organizou um almoço para comemorar o aniversário da tia Teresa, que andava amuada desde a morte do tio Estrela.
Do primeiro casamento do vô Otávio nasceram sete filhos.  Depois que ficou viúvo, ele se casou com a vó Luiza com quem teve mais quatro crianças. Na época do almoço de aniversário, meu pai e tio Henrique já tinham partido, mas tio Augusto, depois de muitos e muitos anos, reviu tia Teresa. No início, não reconheceu a irmã e me cutucou: “quem é essa carioca?” “É a tia Teresa, tio...”
“Teresa, é você mesmo? Não tinha reconhecido!! Também, onde já se viu uma caipira criada em Itu com esse sotaque?”
Tia Teresa riu e abraçou o irmão.  Ela morava no Rio de Janeiro há muito tempo e um tanto pelo costume e outro tanto pelo charme (alguém diria “esnobismo”), carregava nos “erres” e “esses” cariocas.
De qualquer forma, eu estava feliz por rever tanta gente que não encontrava fazia tempo, inclusive a própria tia Teresa.   Estavam lá, tia Myrthes, Heloísa e Daniel, viúva e filhos do tio Henrique. E também todo pessoal do tio Augusto, vindos lá de Jundiaí: tia Carminha, Maria Luiza (com o marido e os filhos), Fátima, Helena e Tavinho.
Passei boa parte da festa olhando para aqueles meus parentes, buscando meu pai em cada traço e em cada palavra.  Mas ele era muito diferente dos irmãos e sobrinhos: talvez os olhos da minha prima Heloísa lembrassem um pouco os dele, com aquele verde profundo e atento. Mas de resto, meu pai parecia ser de outra família: tia Augusto, tia Teresa e a lembrança do tio Henrique tinham o mesmo formato de rosto e de nariz. O mesmo olhar. E quase os mesmos caminhos do tempo na pele.
Meu pai, mesmo com toda aspereza da vida, tinha o desenho do rosto menos brusco, os cabelos ondulados e negros penteados para trás, o olhar curioso de quem queria engolir o mundo e as letras para descobrir os mistérios do tempo, do espaço e do mais esquecido dos seres. Ele era muito diferente dos irmãos. Até no nome: era o único que tinha o “Coelho” antes do “Ramos”: será que o Miro teria puxado mais o lado materno, diferentemente dos irmãos?
Talvez as dessemelhanças fossem fruto do tempo e da separação causada pela morte prematura de uma jovem mãe de quatro crianças, que tinham na época entre 5 e 11 anos. Meu pai, por exemplo, mais por amor ao estudo que por vocação, foi para o Seminário Menor em Pirapora do Bom Jesus, só voltando para casa em Itu - na verdade a casa de seus primos e tios Maria e Benedito -, no período das férias escolares.  Quanto a seus irmãos e irmã, cada um foi para um lado.
De qualquer forma, constatei que não seria naquele almoço que eu conseguiria reencontrar o olhar do meu pai.
Mas de repente, de longe, justamente eu que sempre fora traído pela miopia, consegui desvendar todo um mistério: na cabeceira da mesa, meu tio Augusto almoçava em silêncio. Percebi mais uma vez que seu olhar, suas orelhas, seus cabelos e a pele enluarada do seu rosto não me traziam a imagem de quem eu procurava.   Mas se suas mãos eram diferentes das do meu pai, a forma de segurar o garfo era a mesma. Se sua boca e seu queixo não refletiam meu pai, sua mastigação tinha exatamente as mesmas ondulações. Assim como eram iguais aos do meu pai o seu abrir e fechar das pálpebras, mesmo sendo tão diferentes os olhos de um e do outro.
Meu pai estava ali, naqueles movimentos do corpo. Separados pelo mundo, pelas dores e pela morte, eles se encontravam talvez no embalar de um antigo colo perdido, nas brincadeiras de pés descalços na terra batida, no riso solto espalhado no ar há tantos anos.
Meu pai estava ali.
Nos movimentos do tempo.

Publicado no Jornal de Piracicaba em 2/9/2018

Breve acalanto para os dias de incertezas


(caio silveira ramos)

Imagine uma típica avozinha de livro de histórias: sorriso sereno, cabelinho curto e olhos doces embalados por óculos de aros dourados. Ela ainda tem que usar uma blusinha de lã com botões discretos, deve gostar de bichos e plantas, e ser apaixonada por suas netinhas, por suas duas filhas e por seu marido, que por gostar muito de doces (entre os quais ela se destaca), tem o carinhoso apelido de Formigão.  Pois se Dona Zélia se enquadra em todos esses requisitos, ela tem pelo menos uma característica que a diferencia de outras vovós de livros de história: Dona Zélia adora futebol.
Pois não é que ela sabe escalações, a tabela de jogos e, se bobear, discute até se é melhor o esquema 4-3-3 ou o 4-1-4-1?  E tudo isso com a serenidade de quem faz uma toalhinha de crochê durante a novela.
Dona Zélia cresceu, no meio de sua numerosa família, em uma grande casa com um assoalho de madeira que tremia quando a criançada corria pela sala.  E nessa sala, seu pai, sentado na sua poltrona, curvado, cotovelo apoiado num dos joelhos, mão no queixo, ouvido quase grudado no grande rádio, escutava os jogos do seu Palestra.  Sempre desse jeito, quieto, atento, pedindo com o olhar que as crianças fizessem silêncio durante as partidas.
A menina Zélia se perguntava por que o pai não colocava o rádio mais alto e se endireitava na poltrona para escutar as partidas com mais conforto. Mas, na verdade, era só o jeito dele, mania, simpatia ou simplesmente sua forma de se concentrar e torcer contido.
Mas por mais baixo que ele ouvisse, a voz do locutor, a tensão do pai e a empolgação da torcida invadiam a casa, e as crianças paravam de correr pela sala para o piso não tremer e atrapalhar o jogo. E ali perto, quietinha, sem se fazer perceber, a menina Zélia acompanhava a partida e vibrava para ver seu time ganhar e seu pai ficar mais feliz.
Um dia o pai se foi e a menina Zélia, durante muito tempo, nos dias de jogo, continuava entrando em casa pisando suave sobre o piso da sala. E por um segundo ela tinha a impressão de ver o pai junto ao rádio ouvindo mais uma partida do Palestra.
E nas noites tormentosas, com seus trovões, ventos e temores, ela procurava sentir a presença do pai, protegendo, de sua poltrona, a casa e a família.  Nos dias de tristeza e saudade, vindo da rua, a moça Zélia ligava o rádio e, enquanto o locutor narrava uma partida nervosa, ela aquietava o coração: parecia que o próprio pai vinha em seu consolo, tomando-a pela mão para abrigá-la no seu colo.
Assim, pela vida afora, quando os medos pareciam engolir o mundo, Dona Zélia escutava futebol pelo rádio para se serenar segura, como se ouvisse um breve acalanto para abrandar os dias de incertezas.
E até hoje, quando as amarguras do futuro e a violência da vida de fora parecem fazer tremer o mundo como o piso da velha casa que não existe mais, Dona Zélia deixa por um instante as netas brincando tranquilas na sala e liga o radinho na bancada da cozinha para ouvir um jogo de futebol qualquer.  Enquanto, em outros cantos da cidade, pessoas roem as unhas, gritam agitadas e explodem seus corações, Dona Zélia sente a calma invadindo a alma e o corpo. 
Quem sabe ela veja seu pai se achegando, apoiando o cotovelo na bancada, descansando o queixo numa das mãos para escutar o jogo com ela.  Mas já não importa a partida, o placar e o grito da torcida. Dona Zélia sorri para o pai sabendo que seu mundo, o mesmo mundo de suas filhas, de suas netas, de seu amado Formigão, está naquele momento protegido.
Então tudo fica em paz.


Ilustração de Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 19/8/2018



Mirtica


(caio silveira ramos)

Num domingo de julho deste 2018, recebi do tio Vavá a triste notícia de que ele acabara de retornar do enterro do Mirtica. 
Não cheguei a conhecer pessoalmente o Mirtica, mas há poucos meses, neste mesmo 2018, acabei transformando em personagem de uma das minhas crônicas esse grande amigo do tio Vavá que, como já disse, não é meu tio, mas considero como se fosse.
A crônica, singela como todas deste Mirante, revelava minha profunda simpatia pelo Mirtica, que eu conhecia apenas das deliciosas histórias contadas pelo tio Vavá, principalmente quando ele se encontrava com seu irmão Brancão e seu pai Domingos.   Nelas, o Mirtica se transformava em enredo, motivo, vírgula e alegria, já que todos tinham a maior consideração pelo nosso herói, que devia ser um amigo querido e profundamente divertido.
Quando minha crônica chegou às mãos do Mirtica, parece que ele se emocionou profundamente: deve ter se lembrado do seu Domingos, das conversas generosas regadas a vinho, da sabedoria daquele velho soberano que celebrava a vida recebendo os amigos na antiga garagem de sua casa em Santo André. Ou talvez Mirtica tenha enchido os olhos apenas por recordar a amizade de tantos anos com o quase irmão Vavá, a juventude guardada num canto cada vez mais distante e as pessoas queridas que partiram como o tempo.
No velório, a viúva, as filhas e um genro do Mirtica, entre abraços, agradeceram ao tio Vavá pela crônica. Disseram que durante aqueles poucos meses, mesmo depois de atingido pela forte pneumonia que acabaria por levá-lo, o Mirtica se sentia muito feliz, emocionando-se a cada nova leitura.  Revelaram ainda que tinha pedido para alguém tirar uma cópia da crônica, que ele guardava no bolso, relia de vez em quando ou mostrava para os amigos.
Me apanhei comovido e ao mesmo tempo preocupado: teria o Mirtica ficado ainda mais fragilizado pelo texto? Sentira tanta saudade de si e dos outros que afrouxara o cordel da vida?
Não. No fundo sei que minha crônica não teve esse poder.   Mirtica foi em paz consigo mesmo e com o mundo, com a certeza do dever cumprido e das amizades cultivadas.
Quanto a mim, que não conheci o Mirtica, fico com o conforto da crônica guardada no fundo do bolso de alguma calça esquecida e com a satisfação de continuar ouvindo seu nome espalhado pelas histórias do tio Vavá e do Brancão, ou pelas lembranças das eternas conversas com seu Domingos.   Pois o simples nome “Mirtica”, pronunciado com os “erres” piracicabanos ou andreenses, é palavra cheia de sabor que toma de alegria a boca de qualquer sujeito.
É só falar ou pensar no seu nome que já um riso escapa, ganha a calçada, dobra a esquina e se perde por aí.

Publicado no Jornal de Piracicaba em 5/8/2018



Pedro e os lobos

(caio silveira ramos)

Durante as transmissões dos jogos da Copa do Mundo de Futebol da Rússia, neste 2018, um importante jornalista esportivo, ao comentar a recorrente não marcação de falta pelos árbitros quando Neymar caía no gramado ao ser tocado pelos adversários, filosofou: “é a velha história de Pedro e o lobo: o menino vivia gritando que o lobo estava atacando.  Quando as pessoas chegavam para acudi-lo, ele ria, dizendo que era mentira. Tanto fez, tanto fez, que no dia que o lobo atacou de verdade, Pedro gritou por socorro, ninguém acreditou e ele morreu. Da mesma forma, Neymar vive se atirando no chão, simulando sofrer infrações: quando é derrubado, ninguém acredita mais, mesmo quando a falta é verdadeira”.
A comparação até que foi procedente, tanto que, terminada a participação do Brasil na Copa, parece que Neymar e suas quedas se tornaram motivo de piada no mundo todo. Embora sempre pense que fabulosos cientistas devessem (no mínimo) ganhar bem como grandes jogadores de futebol, acho a perseguição a Neymar um exagero: exceto por algum estrelismo quase infantil, ele é um craque verdadeiro, não tendo aparecido, para mim, nenhum jogador com sua qualidade técnica nos últimos seis, sete anos no País.  Embora não tenha vencido uma Copa, não podemos esquecer que Neymar foi um dos líderes do time que ganhou a até então inédita medalha de ouro no futebol, na Olimpíada de 2014.  Críticos irão dizer que a qualidade das seleções em uma competição olímpica é inferior à das Copas, mas jogadores brilhantes de outras gerações jamais conquistaram a medalha de ouro que Neymar pode pendurar no pescoço.
Mas voltando à comparação do jornalista esportivo (que admiro por seu conhecimento tático, sua memória incrível para relembrar placares de jogos e por seus comentários ponderados e justos): se ele acertou no motivo, trocou o enredo.  Ou no mínimo se enganou com os personagens: o “simulador” não era Pedro. E o lobo era outro.
A história a que o jornalista queria se referir é muito mais antiga que “Pedro e o lobo”.    Ela é uma das fábulas do grego Esopo, que teria vivido no século VI a.C.  Na belíssima edição “Esopo – fábulas completas”, da Cosac Naify, de 2013, com tradução de Maria Celeste C. Dezotti, ilustrações de Eduardo Berliner e apresentação de Adriane Duarte, encontramos a tal fábula sob o título de “O pastor brincalhão”.  O personagem – que não é um menino e tampouco se chama Pedro -, tinha como diversão gritar por socorro porque lobos estariam atacando suas ovelhas.  Por várias vezes enganou os aldeões que corriam para ajudá-lo. Quando, de fato, os lobos avançaram no seu rebanho, ninguém atendeu ao grito de socorro do pastor que acabou perdendo todas as suas ovelhas.
Já a história de “Pedro e o lobo” (provavelmente um antigo conto russo) foi utilizada por Sergei Prokofiev (nascido em 1891 em Sontsovka, localizada na atual Ucrânia) para compor uma peça musical infantil em que alguns instrumentos de uma orquestra são apresentados às crianças.    Assim, o tema do passarinho (Sasha, na versão brasileira adaptada pelos estúdios Disney) é tocado pela flauta; o do gato (Ivan, na versão Disney), pela clarineta; o do pato (para Disney, a pata Sônia), pelo oboé, e o do avô de Pedro, pelo fagote. Já o toque dos tímpanos representa os caçadores e seus tiros, o assustador tema do lobo é executado pelas trompas e o de Pedro, alegre e contagiante, é interpretado pelos instrumentos de corda.
O enredo é bem diferente do da fábula do pastor de Esopo: um grande e faminto lobo assusta a região onde Pedro mora.  Seu avô, preocupado, impede que o menino brinque na campina para que o pequeno não seja devorado. Mas ao perceber que seus amigos bichos estão sendo atacados pelo lobo, com a ajuda de uma corda e do passarinho, Pedro consegue capturar a fera e em seguida não deixa que os caçadores a matem. E triunfante, desfila ao som de sua música.
Se a fábula “mostra que os mentirosos só têm esse lucro: não merecem crédito nem quando dizem a verdade”, “Pedro e o lobo”, além da beleza e da alegria que as músicas de Prokofiev espalham pelo mundo, conta uma história de coragem, amizade e compaixão.  Coisas que faltam tanto a alguns jogadores de futebol quanto a muitos jornalistas esportivos.
Coisas que faltam, afinal, a muitos que andam por aí, sejam pastores de ovelhas, políticos ou mesmo aos cidadãos que os elegem.


Ilustração de Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 22/7/2018


sexta-feira, 13 de julho de 2018

As certezas absolutas


(caio silveira ramos)

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

(Os sapos – Manuel Bandeira)

Não sei, não, mas acho que vivemos no tempo das certezas absolutas.
Em redes sociais, entrevistas, artigos, livros ou palestras motivacionais, gurus, filósofos, artistas, astronautas, técnicos de futebol, esportistas, celebridades renascidas, influenciadores digitais e até sapos expõem com uma convicção inabalável a receita perfeita para o bem viver. Dissertam sobre a jogabilidade, o sentido da vida e a arte da guerra. Eles sabem o que é certo, eles não gaguejam, eles são vitoriosos e farão você alcançar o sucesso.
Você sempre esteve errado: eles indicarão o caminho.  Seus traumas? Em uma semana, um curso fará você emergir do lamaçal em que esteve perdido: tudo será revelado pelos sapos que coaxarão aos quatro cantos a trilha correta da sua liberdade. Da sua liderança. Da sua vitória.
Por que você pergunta? Por que você questiona? Eles afirmam que você deve questionar, mas repare: eles já têm as repostas.
Talvez eu precise fazer um curso desses. Ouvir uma palestra que arranque todas as minhas dúvidas e me afaste do fracasso. Ou quem sabe eu deva me inscrever em um canal do “Youtube” em que filósofos de palavra e terno justos me digam como criar meu filho, como enfrentar meu passado, como renascer para o futuro.  Pois eu vivo cheio de dúvidas.  Não me orgulho da minha ignorância, mas sei que ela é vasta. Minhas incertezas caminham comigo diariamente.  Mas os sapos coaxam suas certezas.
A auto-ajuda finalmente catapultou-se das gôndolas das livrarias e invadiu sua vida.   E eu nem sei o que almoçarei amanhã.  Mas eles sabem o que eu devo comer e a forma que devo me vestir e me portar. Como devo me posicionar a cada momento. Sabem até em quem eu devo votar.  Do uso do cúrcuma ao reuso de Nietzsche, os sapos dizem que você está fazendo tudo errado. Tudo foi feito sempre errado. Você sempre errou. O mundo errou. Mas eles estão certos.
A vida precisa de certezas.  Como seria possível sem elas construir prédios, desenvolver vacinas, voar sobre os oceanos, ir até a lua, ensinar matemática, executar leis, erradicar doenças, salvar vidas, plantar e colher alimentos, passar de geração para geração os conhecimentos adquiridos pelos povos por tantos séculos?  As certezas são fundamentais para o desenvolvimento humano.  Mas não essas certezas que critico: critico a arrogância dos novos gênios que dizem solucionar qualquer problema existencial por meio de fórmulas simples e discursos vazios. Critico os alardeadores da vida saudável baseados na “existência de vários estudos”.  Critico os que vendem a ilusão do caminho seguro para que sua vida adquira novos rumos e você seja um vencedor. Mas vencer o quê mesmo?
Paro por aqui, antes que eu me encha de certezas e me torne um novo sapo.  Eles que continuem fazendo sucesso, vencendo suas batalhas (seja quais elas forem) e ganhando seu dinheiro coaxando.
Quanto a mim, continuarei dando conselhos ao meu filho: ele precisa de certezas para crescer.
Mas deixarei sempre com ele o benefício da dúvida.

Publicado no Jornal de Piracicaba em 8/7/2018

A saudade que ficou


(caio silveira ramos)

Agora neste ano de 2018, o dia 4 de maio me pregou mais uma peça: faleceu o compositor Elzo Augusto. Exceto pelo também compositor e intérprete Luiz Ayrão, que publicou um belo texto sobre Elzo em uma rede social, não houve notícias em jornais, nem lamentos de outros artistas. 
Como acontece com a maioria dos compositores populares brasileiros, Elzo não era conhecido do grande público, mas suas músicas até hoje são tocadas em rodas de samba infinitas e até em intermináveis festas infantis. É dele, por exemplo, “A saudade que ficou (O lencinho)”, sucesso na voz do já citado Luiz Ayrão (que também assina o samba por meio de um de seus pseudônimos: Joãozinho da Rocinha). E é de Elzo Augusto a inconfundível versão em português de uma canção que na internet consta como de autoria de Honorio Herrero e Luis Gomez Escolar: “Comer, comer” (“comer, comer, comer, comer é o melhor para poder crescer”) que foi inicialmente gravada pelo grupo “Brazillian Genghis Khan”, se transformou num estrondoso sucesso, recebeu regravações de inúmeros outros artistas e conjuntos, e até hoje tem seu refrão cantado por milhares de crianças.
Elzo nasceu Elso (mas era para ser Nelson) em Jaboticabal, em 19 de setembro de 1930.  A partir da década de 1950 passou a ser gravado por intérpretes fabulosos como Ângela Maria, Jamelão, Gilberto Alves, Joel de Almeida, Demônios da Garoa, Francisco Egídio, Luiz Gonzaga, Dalva de Oliveira, Hebe Camargo, Pery Ribeiro, Isaurinha Garcia, Luiz Ayrão e Germano Mathias.  Como se não bastasse, os apresentadores Silvio Santos e Chacrinha também gravaram músicas compostas por Elzo com muito sucesso.  Isso sem falar nos inúmeros artistas de quem ele foi empresário.  Aliás, graças ao Elzo, pude conhecer o mítico Jamelão após um show memorável no SESC Ipiranga.
No livro “Sambexplícito: as vidas desvairadas de Germano Mathias”, me debrucei um pouco sobre a obra de Elzo Augusto e, em um capítulo a ele dedicado, apelidei-o de “A lanterna de Diógenes”. 
A imagem me veio quando descobri que Elzo, ao lado de José Saccomani e Jorge Martins, compusera o sucesso de Gilberto Alves “Lanterna na mão” (1960). Então, para ilustrar um período difícil na carreira de Germano, divaguei: “A partir da década de 1970, apenas carregando orgulhoso os farrapos do seu samba, Mathias, esmigalhado pelo reverso da fama e da fortuna, passou a perambular no pseudo-túmulo paulistano para vasculhar entre os mortos a música verdadeira. Foi então que Elzo se transfigurou na lanterna daquele diógenes, guiando-o por entre as ruelas, não deixando que ele tropeçasse nos corpos estendidos, sacando da escuridão palcos e síncopes para iluminar o seu caminho desesperado. E ainda hoje, mesmo aquecido pelo sol de Taipas, Diógenes, em seu tonel, mantém a lanterna acesa”.
Pois não era de Elzo a composição “Costela Predileta”, samba que me fez descobrir a figura espantosa de Germano Mathias cantando entusiasmada nas noites de sábado no programa “Festa Baile” da TV Cultura? Não era de Elzo o sincopado-manifesto “Samba da periferia”, declaração de princípios com que Germano abria apoteoticamente seus shows?  Não fora  Elzo quem compusera para a Escola de Samba “Flor da Penha” o samba-enredo em homenagem a Mathias “Esquentando a memória do povo”?  Não tinha sido o palmeirense Elzo quem criara o hoje clássico “Bandeira do Timão”, fazendo Germano voltar a um estúdio para gravar depois de décadas?  Não tinha sido Elzo quem, em 2002, compusera todas as faixas e produzira “Talento de Bamba”, primeiro CD solo de inéditas do “Catedrático do Samba”, que tinha gravado seu último LP lá em 1974?  Pois foi Elzo, poeta introspectivo que Mathias sempre admirou, quem nunca deixou de acreditar no talento de seu amigo bamba e, por ele, se transfigurou em lanterna e porto seguro.
Alguém poderá dizer que Elzo era um homem duro, seco, mas o conheci graças a sua humildade. Graças a sua generosidade. Um certo dia, recebi uma ligação e a voz rouca de Elzo Augusto se apresentou.  A seguir, disse que tinha apreciado muito dois sambas meus cantados por Germano e por isso gostaria de me encaminhar algumas de suas letras para que eu colocasse melodias.  Me envergonhei, não me senti capaz, mas disse que sim, ficava orgulhoso do convite, da confiança e da futura parceria.  Ele me enviou pelo correio dezenas de canções e sambas cuidadosamente datilografados e eu, muito sem jeito, coloquei minhas melodias encabuladas.  Elzo gravou algumas delas em CDs autorais que me enviou de presente assim que saíram do forno.
Quando soube apenas um mês depois que “Ela” – assim Elzo chamava a morte, inclusive num samba antológico gravado por Mathias – viera encontrá-lo após tantas escapadas, liguei para Germano que ficou estarrecido com a notícia. 
Para consolá-lo, lembramos de tantas gravações que ele fizera dos sambas de Elzo durante décadas.  Ele cantou alguns, mas depois se calou.  Precisava desligar o telefone.
Para me consolar, peguei o livro “Extensão de mim”, no qual Elzo conta um pouco de sua vida, lembra de suas composições e escreve sobre seus parceiros.  Na página 126 ele me dedicou um verso singelo: “Você, novo parceirinho, meu balaio está cheio de letras e temas pra ganhar seu cavaquinho”.
Por aí vou assobiando: uma melodia me chega, depois vem outra, e outra, e outra, mas já não há as letras de Elzo Augusto para que elas descansem e se abriguem.  Então as melodias se fazem esquecer, se emudecem, se perdem no ar.
Que um dia elas, livres de mim, possam nascer de novo no peito de outros poetas. 

Publicado no Jornal de Piracicaba em 24/6/2018

Memórias de um café


(caio silveira ramos)


O Meireles, além de amigo querido, é uma figura incrível: conhecedor de uma infinidade de assuntos, ele escreve bem como poucos e possui a incrível capacidade de compartilhar sua sabedoria com o mundo.   Generoso e humilde, ele não reconhece seu talento. E não é por falsa modéstia.
Pois o Meireles foi obrigado a usar suas férias para cuidar do pai, que faria uma delicada cirurgia no joelho.  Um dia antes da partida, o Meireles ficou até mais tarde na repartição, adiantando o serviço para não atrapalhar o colega que o substituiria durante as férias. E no dia seguinte bem cedo, lá foi ele para sua cidade natal no interior de São Paulo.
O pai do Meireles era um velho e querido cardiologista na tal cidade. Nos últimos tempos, por causa da saúde debilitada, tivera que abandonar suas atividades e seus pacientes, e por isso andava acabrunhado, como se a vida não precisasse mais dele. 
Feita a operação, já no quarto, o Meireles chegou perto do pai perguntando se tudo estava bem. O velho médico disse inicialmente que sim, mas num momento raro de desabafo, ele, quase sempre quieto, confessou envergonhado que sabia do incômodo que causava em todo mundo, que não servia pra mais nada, que virara um verdadeiro estorvo para a esposa e para os filhos.
O Meireles teve vontade de acarinhar a cabeça do pai, mas se conteve: os dois há muito não trocavam essas ternuras e o velho médico poderia se sentir mais envergonhado ainda.  Ficaram ali, se observando, o Meireles distraindo o pai com uma conversa qualquer sobre política ou algum parente distante.
No dia seguinte, a mãe do Meireles foi passar algumas horas com o marido no hospital para que o filho pudesse sair um pouco, tomar um banho. Espairecer. 
Como a cidade era pequena e a tarde ensolarada, o Meireles resolveu voltar a pé para a casa dos pais.  Foi andando, revendo as ruas da infância, as vitrines das lojas novas, o comércio popular se abrigando nas calçadas.  Pensou em comer alguma coisa e se lembrou do “Café Portinari”.  Na verdade, nem estava com fome: provavelmente pensara antes no lugar que no estômago.
O “Café Portinari” era o preferido ponto de encontro do pai com os velhos amigos.   Lá eles se reuniam no sábado ou mesmo durante a semana depois do expediente.  O grupo era formado principalmente por médicos, como o pai do Meireles. Mas também havia um advogado, dois engenheiros, além de um ou outro amigo que de vez em quando aparecia por lá também.  
Não, não, o “Café Portinari” não era nem um pouco majestoso: quem descia a rua de paralelepípedos reparava que a entrada era apenas um pequeno retângulo recortado na parede - provavelmente da parte mais alta do porão - da “Pousada Luz da Aurora”, um velho prédio que ocupava aquela esquina desde 1919.  Dentro, a suposição da pequenez do lugar se confirmava: o Café era quase um corredor com algumas poucas mesas. Não se sabe se pela arte do nome, pelo café, pelo atendimento, pelos amigos do pai ou pelo aconchego, mas o fato é que para o Meireles o lugar tinha um encanto indiscutível.
E atrás desse encanto ele veio caminhando tranquilo, respirando o ar da tarde para esquecer o do hospital.  Entrou na rua José Pires e, antes de atravessá-la, reparou no vaso de flores frescas bem próximo da centenária porta de folhas duplas da “Pousada Luz da Aurora”. Mas quando desceu a rua com os olhos, no lugar das mesinhas do Café despontando na calçada, ele deu de cara com o torso de uma manequim de plástico branco vestida com um “baby-doll” transparente.  E acima do toldo da conhecida entrada, em vez de “Café Portinari” ele se deparou com uma tabuleta oval onde se lia: “Tieta’s Lingerie”.
Estacou um instante, pensou estar na rua errada, mas não: na calçada oposta reinava ainda a “Pousada Luz da Aurora” que afastava qualquer engano.  Desceu um pouco mais, disfarçou, espichou os olhos para dentro da loja, viu outras peças de roupas íntimas penduradas em cabides. Perto da entrada, um cartaz escrito à mão avisava: “atacado e varejo”.
Meireles nem chegou a atravessar a rua: deu meia volta, começou a andar sem rumo e quando se deu conta estava na casa dos pais.   Entrou, rumou direto para o banho e embaixo do chuveiro pensou no porquê de tanto estupor.  Pois, muitas lojas que conhecera não haviam também dado lugar a outras?  Além disso, ele nada tinha contra roupas íntimas ou personagens de Jorge Amado.  Talvez alguma coisa que só Freud pudesse explicar: o lugar preferido do pai era agora uma loja de “lingerie”... 
Mas só quando voltou ao hospital, entrou no quarto e viu o velho ressonando no leito é que se deu conta de que o fechamento do “Café Portinari” encerrava um tempo. O tempo do pai.  Daquele antigo pai. Um pai diferente desse que estava ali agora indefeso, frágil, envergonhado do pus de suas feridas.
E sem perceber, ajeitou a coberta daquele pai, que abriu os olhos, sorriu manso e voltou a dormir tranquilo.

Ilustração de Maria Luziano - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 10/6/2018



Cheguei numa Sexta-Feira Santa


(caio silveira ramos)

Cheguei numa Sexta-Feira Santa.
Não ao mundo, que isso foi na Quarta-Feira.
Cheguei em casa (“em” mesmo, que chegar “a casa” seria muito pouco acolhedor) numa Sexta-Feira Santa.  A velha casa. A casa da mãe, do pai, das irmãs, da infância. Cheguei em casa que, no fundo, no fundo, é chegar ao mundo também.
Dizem que estavam as três meninas sentadas na escada de madeiras largas do saguão da entrada, lugar do mais alto pé direito da casa. Ali, entre a porta da rua e a do corredor que dá para a sala.
As três meninas, oito, seis e quatro anos.  As três irmãs sentadas no mesmo degrau, uma ao lado da outra.  Quel, a mais nova, devia estar com uma blusinha de manga comprida e uma calça confortável. Ruthinha, a do meio, de vestidinho branco de algodão bem macio. Teca, a mais velha, de blusa de frio com decote em “v” e calça de brim azul. As três quietas e tentando enxergar, através dos quadrados de vidro trabalhado da porta que dava para a rua, se alguém estava chegando.  Se alguém estava passando.  O trá-trá-trá do caminhão de lixo e o fluplam-flupam-flupam dos lixeiros em correria, jogando o conteúdo das latas quadradas de óleo no tal caminhão antes de devolvê-las às calçadas? O lefe-lefe da correspondência passada por baixo da porta pelo carteiro de boné amarelo-claro? O poque-poque do cavalinho da carroça do seu João Verdureiro? O troque-troque da roda do carrinho do seu Doceiro? “Não, não, Quel, hoje é feriado. Não tem lixeiro, carteiro, verdureiro, nem doceiro.”
“Eu queria só seu Doceiro. Tô com fome. Será que vai demorar ainda?”
“Olha, olha, acho que estão chegando... Não, foi só alguém andando até o ponto de ônibus”.
“Mas hoje não é feriado? Tem ônibus?”
“Claro que tem.”
“Tô com fome.”
“Eu quero conhecer logo meu irmãozinho...”
“Vocês querem fazer silêncio? Não pode ficar falando! Hoje é dia que Jesus morreu!”
“Jesus morreu hoje?”
“Não foi bem hoje, mas é como se fosse...”
“Ele morreu, então? Ah, não!”
“Parem de choramingar. Vocês são muito crianças mesmo! Não entendem nada.”
“E você não é criança também?”
“Olha, olha, olha, acho que chegaram...”
Mas era só mais alguém passando.
Às vezes penso que aquele momento ainda está ali: elas esperando, esperando até hoje, sentadinhas, fazendo psiu com os dedinhos indicadores na boca: silêncio porque é o dia que Jesus morreu.
Não me vejo chegando, a casa desperta, as três em volta da mãe espiando o bebê no colo e dizendo palavras enternuradas. Vejo-as ali na escada esperando.  Ou depois: as lembranças palpáveis daquele dia ou dos seguintes: o berço montado novamente com seu colchãozinho de palha. A pulseira de identificação do hospital. A cesta de plástico verde com bolinhas brancas para guardar produtos de higiene. Um sem fim de babadores coloridos dados por alunas, vizinhas e amigas da mãe.  Um quadrinho pintado por tia Clemência com um anjo alto abençoando um bebê loiro.
Não me vejo atravessando a porta, as meninas se encantando.
Mas disseram e eu acredito:
Cheguei numa Sexta-Feira da Paixão.










Ilustração de Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 20/5/2018

Três personagens e um quase autor


(caio silveira ramos)

Não há ninguém desinteressante.
No fundo da alma do ser aparentemente mais insosso, um mundo se revolve.  Mesmo quem atravessa a vida inteira no sossego e na pacatez, em algum momento perdido, um fato ou um ato acabam por deixar um sinal certeiro. E um romance todo pode ser escrito em vinte volumes.
Mas há aqueles que vão além: um simples apelido ou até um jeito peculiar de ser constroem personagens completos.  Prontos. Como são os casos de Galo Cego, Mirtica e Trevisan.
Quem me falou do Galo Cego foi o Zé Borges: eles moraram no mesmo bairro quando crianças.  Bom, talvez só o Zé fosse criança, porque o Galo Cego já usava barba rala, camisa aberta no peito castigado pelo sol e a corrente de metal barato no pescoço.  Pelo menos é assim que eu imagino o Galo Cego. Ou simplesmente o “Galo”, como diz o Zé Borges quando reconta as histórias perdidas do amigo.
Pois o Galo devia ser mais velho que sua turma. E acho que foi ele quem apresentou para a molecada do bairro os estabelecimentos comerciais mais fuleiros da cidade.
“Estabelecimentos comerciais”: assim o Zé Borges chama aqueles botecos com prateleiras altas, lotadas de cima a baixo com garrafas (milimetricamente arrumadas) da pinga mais sem-vergonha.  No balcão, sob o vidro já embaçado, deve ter um pratinho de azeitona ou de tremoços, um ovo colorido de 1943 e uma mosca já caduca.  Os mais sofisticados têm uma mesa de sinuca com tacos meio tortos e o pano, de um verde desbotado, cheio de marcas de giz.
Para mim, o Galo devia ser o rei daqueles estabelecimentos todos.  E das vielas, das esquinas, das noites espalhadas. Quando a meninada se deu conta, o Galo já tinha perdido uma vista. Imagino que fosse a vista esquerda, o que aprimorava sua mira, embora o Galo não usasse arma de fogo e preferisse acertar suas contas por meio de seu vernáculo burilado nas encruzilhadas.
Dizem as más línguas, que a vista se perdeu quando o Galo, trançando as pernas na madrugada, tropeçou na guia e feriu o olho num caco de garrafa. Mas para mim foi numa briga, defendendo uma moça que estava apanhando de um safado qualquer. O Galo chegou, intimou o sujeito, que largou o braço da garota e sorriu debochado, porque percebeu que um comparsa chegava pelas costas do herói com a navalha armada. O Galo ainda encheu a fuça do covarde, mas a navalha traíra riscou seu olho sem pena. Os bandidos apanharam, fugiram e nunca mais foram vistos. A moça se apaixonou pelo Galo que, pra tranquilizá-la, forjou no fundo da dor um “não foi nada, não foi nada”. Mas a vista se perdeu para sempre e o apelido arranhou sua alma como a navalha traiçoeira.
Galo Cego que, pelo que o Zé falou, “vivia de expedientes”, se meteu em muitas outras brigas. Por ele, pelos amigos, pelas mulheres. Mas foi ficando velho, a molecada pra quem ele ensinou a malandragem foi tomando rumo, arranjando emprego pra sobreviver, se aprumando, constituindo família, deixando o Galo sozinho nos estabelecimentos comerciais e nas brigas.
Muitas histórias contam do Galo. Algumas dizem que ele mesmo inventou, como aquela que vivia repetindo nos últimos tempos, se gabando: a de que tinha namorado, antes de ficar famosa, uma atriz da Globo nascida na cidade. O pessoal ria: “menos, Galo! Pega leve. Você não, né?”  É que quando o Galo começou a contar essa, a bebida vinha comendo bonito seu fígado e o sol castigando ainda mais sem dó sua pele enrugada.  Aliás, ele parecia mais velho do que de fato era.  Tossia, resmungava, tava ficando rabugento. Apanhando mais do que batendo.
Dizem que teve filhos, mas mesmo quando começou a capengar, parece que nenhum quis saber dele. Ele que, aliás, sempre morou com os pais.  Falaram que era bom filho, nunca os abandonou porque os dois tiveram ele tarde e sempre pareceram doentes.
A mãe enviuvou, o Galo deu uma sumida.  Num estabelecimento comercial qualquer, perguntaram dele durante uma conversa vadia. Alguém disse que tinha parado de beber, que tava cuidando da mãe e arranjara um emprego pesado para pagar os remédios dele e dela.
Mas o Zé Borges veio dizer outro dia “que soube por alguém que”, depois que a mãe partiu, o Galo degringolou de novo.  E agora tava, vai não vai, num hospital vagabundo qualquer, definhando, pele e osso.   No bairro, dizem até que ele já morreu.  “Coitado do Galo”, diz o Zé Borges. 
Zé Borges, que pensando bem, aqui entre nós, daria um personagem e tanto.

***

Quem conhece bem o Mirtica é o tio Vavá, que na verdade não é meu tio, mas é tratado como se fosse.  De qualquer forma, não tem uma história contada pelo tio Vavá, nem uma conversa entre ele e seu irmão Roberto, o Brancão, que lá pelas tantas o Mirtica não apareça.  E como nunca tive o prazer de conhecer o Mirtica, para mim ele é uma verdadeira lenda. Um mito.
De fato, a presença do Mirtica nas conversas tem diferentes funções, dependendo da situação e do estado de ânimo dos participantes.  Vejamos lá alguns casos:
Mirtica como indicador de tempo:
“(...) não, não foi nesse ano que você falou! Foi antes! A segunda filha do Mirtica nem tinha nascido ainda nessa época!”
Mirtica como índice de evolução patrimonial:
“(...) eh, eh. Olha essa foto! Quem tinha uma Brasília velha igual a essa era o Mirtica! As coisas mudaram... Hoje ele só anda de carrão!
Mirtica: uma referência na moda:
“Chique mesmo era aquela calça boca-de-sino do Mirtica!”
Mirtica: a verticalização das cidades e a mudança nos costumes:
“(...) concordo, pode até ser mais seguro. Mas morar em prédio é diferente de casa: magina se eu tenho amizade com meu vizinho do apartamento da frente que nem eu tinha com o Mirtica...”
Mirtica e o aquecimento global:
“(...) hoje, mesmo no frio, vê se o Mirtica ia conseguir usar aquele casacão dele...”
Mirtica e os programas de culinária gourmet:
“Picanha? Desse jeito? Muita frescura pro meu gosto! Picanha boa mesmo foi aquela que a gente comeu lá na casa do Mirtica!”
Mirtica: solução ou polêmica?
“Não, Brancão! Não tá comigo: a morsa grande o pai deu de presente pro Mirtica.  Você lembra como o pai gostava dele! Já a torquês, o Mirtica emprestou faz uns trezentos anos, mas devolveu quando o pai ainda tava vivo. E comigo também não tá!”
É verdade: seu Domingos, pai do tio Vavá e do seu Roberto, gostava mesmo do Mirtica. Pedreiro de mão cheia, grande e forte como um touro - capaz de derrotar no braço de ferro, e ao mesmo tempo, os dois filhos parrudos (e, se bobeasse, o Mirtica junto) –, seu Domingos era um trabalhador incansável, mas também um apreciador das boas coisas da vida. “Eh, é uma beleza tudo!!!” era uma de suas frases preferidas.
Seu Domingos, já aposentado, gostava de receber os parentes e amigos ali na entrada da casa (construída por ele), entre o portão e a porta da sala: em vez do carro (a idade não o deixava mais pegar no volante), ele colocou naquele espaço uma mesa de tampo quadrado e quatro cadeiras, todas de madeira rústica e provavelmente feitas também por ele.
Tal qual um rei, ele se sentava na cadeira voltada para o portão e, com as mãos apoiadas na bengala ou no tampo da mesa, botava os grandes olhos azuis na rua ou conversava longamente com quem o visitava. Enquanto isso, aquele soberano apreciava calmamente um copo de vinho ou cerveja. Eu, que conheci seu Domingos quando ele já tinha quase oitenta anos, sempre aparecia por lá para bater um papo ou simplesmente levar uma caixa de bombons ou alguma outra guloseima: ele amava doces. Eu, sua sabedoria.  “Eh, Piracicaba! Que beleza!”. 
Muitas vezes, enquanto estava por lá, vi chegar o tio Vavá com sua alegria. E seu Domingos, depois de ganhar na testa um beijo do filho, abria o sorriso e com a voz brotada lá em Laranjal Paulista (mas tecida pela vida toda de “lavoro” em Santo André) perguntava da nora, dos netos e, lógico, do Mirtica.
“Mandou um abraço pra mim, fio? Ah! Que amigo bom é o Mirtica! A vida é mesmo uma beleza!” – dizia seu Domingos.
Seu Domingos que, pensando bem, aqui entre nós, daria um personagem e tanto.

***

O Trevisan era um grosso. E não só os colegas do ponto de táxi diziam isso: a maioria dos passageiros – principalmente as senhorinhas (e o bairro era repleto delas) –, os porteiros dos prédios, o pessoal da padaria e os entregadores de pizza viviam reclamando dele para o Zé Carlos Alves, o coordenador do ponto, que vire e mexe tinha que perder uma tarde inteira no departamento de trânsito para livrar a cara do Trevisan.
Não que o sujeito fosse má pessoa. O problema era que ele vivia dizendo que tinha sido motorista do falecido humorista Costinha e por isso gostava de contar, para quem quisesse ou não ouvir, piadas que fariam o próprio comediante ruborizar de vergonha, tão escabrosas eram elas.  Pra completar o quadro, o Trevisan tinha uma boca murcha sem dentes (que o ajudava em caras e trejeitos que lembravam de fato o Costinha), usava normalmente camisas do tipo polo que não lhe cobriam totalmente a barriga e calçava diariamente vistosas sandálias de tiras claras e grossas.   Ninguém entendia como aquele senhor de cabelos totalmente brancos, que já devia ser até avô, pudesse falar tanta besteira por centímetro quadrado de frase. 
Marrento, vivia discutindo por qualquer bobagem com os colegas do ponto: dera um empurrão no Ivan (que ao cair esfolara o braço no muro), ameaçara puxar uma faca pro Mosquito e até o Carlão, que fala manso e normalmente é sereno como um monge, ele tirara do sério.   Uma vez, passei de ônibus em frente ao ponto e vi seu Valdir e o Trevisan parecendo duas crianças birrentas, sentados de braços cruzados, emburrados e mudos, cada qual em seu extremo do banco de madeira. Aliás, os dois viviam às turras, pregando quase todos os dias com fita adesiva, no telefone do ponto, bilhetinhos com frases altamente motivacionais como “é a sua inveja que faz meu carro acelerar” e outras tantas com um linguajar nem tão polido assim.
Adorava aterrorizar as velhinhas que desavisadas pegavam seu carro e acabavam ouvindo suas piadas indecentes. As que já conheciam o Trevisan (que reclamava uma barbaridade com elas quando a corrida era curta), ao perceberem que o carro dele estava em primeiro lugar no ponto, disfarçavam e faziam uma horinha na banca do João (vendo alguma revista ou comprando figurinhas para os netos) até que o Trevisan saísse para uma corrida.  Se ele percebesse antes, gritava: “ô dona fulana, pode vir, não tenha medo, não! Seu preferido não está aqui, mas eu faço um servicinho pra senhora!” Algumas continuavam fingindo na banca, mas muitas atravessavam a rua, falavam “seu descarado!” e entravam no carro seguinte.  Dizem que numa época em que ficou quase sem clientes, atendia ao telefone do ponto mudando a voz e dizendo seu primeiro nome, que quase ninguém conhecia. Ele saía para buscar a cliente no endereço informado, mas voltava logo: a passageira quando via que o tal “Antônio” era o Trevisan e não um novo taxista no ponto, recusava a corrida.
Ele gostava de dizer que tinha perdido um dos dedos da mão durante uma briga com um sujeito armado: no primeiro tiro, o dedo tinha voado longe. Mas quando o outro foi dar o segundo, Trevisan conseguiu desarmá-lo, acabando por matar o sujeito.  Dizia que tinha sido absolvido por legítima defesa, mas eu e o Zé Carlos Alves desconfiávamos que aquela história toda era mentira e o Trevisan tinha mesmo perdido o dedo fugindo de um marido traído.  Porque o cara podia ser feio como o capeta, mas era metido a namorador incorrigível.
Quase nenhuma empregada doméstica passava pelo ponto sem que o Trevisan se entusiasmasse.  Nessas horas, para conquistar, se fazia educado, “posso ajudá-la a carregar as sacolas?”  Se a moça caísse na conversa, ele ficava tão empolgado que dava presente, ajudava a família com cesta básica, fazia comidinhas nos encontros amorosos.  Quando se apaixonava de fato, perdia a cabeça, se metia em dívidas e comprava até celular para falar mais tempo com a escolhida.
Foi o que aconteceu com a moça da cicatriz.

***

Zé Carlos Alves, o coordenador do ponto de táxi em que trabalhava o Trevisan, era o oposto do colega: vivia para a família, se orgulhava da honestidade, respeitava de criança de colo a idoso com mais de cem anos, cumpria as promessas mesmo que baseadas somente no fio do seu bigode e, por um amigo ou cliente, era capaz de ir até o outro lado da Muralha da China com seu táxi.  Além da esposa e da neta - que por ter superado um grave problema de saúde, era seu grande orgulho, exemplo e paixão -, tinha quatro filhas, o que fazia com que tivesse a mais profunda consideração por todas as mulheres do mundo.
Família, nome, amigos e honra eram os grandes tesouros do Zé. E se alguém mexesse com qualquer um deles, ele virava bicho.    Foi o que aconteceu certa vez numa história do Zé Dançarino, também taxista do ponto.  Pois não é que o tal sujeito chegou num prédio e pediu pra chamar certo morador?  “Quem que eu devo anunciar?”, perguntou o porteiro.  E o outro: “José Carlos, taxista.”
O morador, que era cliente do ponto e sabia que o Zé não o procuraria por qualquer coisa, desceu voando.   Quando chegou na portaria, deu de cara com o Zé Dançarino, que teve a cara de pau de pedir cinquentinha “pra comprar um remédio pra mãe doente, coitada”.  O cliente, pego de surpresa, sacou a grana e deu.  Mas depois, se sentindo uma besta, contou tudo pro Carlão, que ficou furioso e repassou para o Zé Carlos Alves.  Que ficou mais furioso ainda e partiu pra cima do Zé Dançarino: “você usou meu nome, safado!” “Mas eu também me chamo José Carlos!” “Mas o cliente não sabia disso, malandro!”
O Zé Carlos Alves, além de enfrentar as artes do Zé Dançarino, tinha o maior trabalho com o Trevisan, tantas eram as reclamações do mau comportamento do sujeito.    Fosse lá por que motivo, eu gostava de provocar o Zé Carlos Alves dizendo que, no fundo, o Trevisan era um incompreendido.   E eu dava até exemplo disso.  Ele tratava mal os passageiros? Pois eu contava uma história acontecida comigo: num dia de chuva forte, estava eu de terno e gravata, sentado no banco do ponto, esperando que algum táxi aparecesse.   Eis que o Trevisan encostou o carro, abaixou o vidro e disse: “não posso levar você hoje: tenho uma corrida marcada pra daqui a cinco minutos. Mas sobe aí que eu vou encontrar um carro em algum outro ponto”.  Eu disse que não precisava, ele insistiu e lá fomos nós. Uns três quarteirões depois, encontramos um táxi num ponto, o Trevisan chamou o colega e quase ameaçando, recomendou: “leva o homem direitinho que é gente boa”.   No outro dia, contei a história e provoquei o Zé Carlos Alves: “não falei que o Trevisan é um incompreendido?”  E o Zé: “incompreendido? Vai nessa, vai...”
Mas o que eu gostava de dizer ao Zé Carlos é que o Trevisan, na verdade, era um romântico.  E, falando sério, até comecei a acreditar de fato nisso.
O Trevisan vivia contando sobre suas façanhas. No começo eu fingia que ouvia e pensava noutra coisa, achando que era papo de cafajeste.   Mas depois comecei a perceber que debaixo daquela papagaiada toda se revelava um ingênuo.   As mulheres faziam dele gato e sapato.   Teve até o marido de uma delas (que jurara pro Trevisan ser viúva) que um dia ligou para ele e chacoteou: “e aí, meu irmão? Não vai mais mandar cesta básica aqui pra casa?”.  Trevisan ficou doido, mas era assim mesmo: quando se apaixonava, dava presente, comprava leite especial se amada dizia que o filhinho tinha intolerância à lactose e por aí vai.  Celular então, já tinha comprado uns cinco para diferentes namoradas.
Numa das corridas, ele falou da conquista da vez.  A moça estava no ponto de ônibus, não era bonita, mas ele também não.  Trevisan puxou papo, conversaram, começaram a se ver. Um dia, ele a levou pra casinha dele. 
Quando me encontrou, veio satisfeito me contar. Disse que a moça tinha uma cicatriz na barriga: devia ter tido um corte profundo e alguém costurara tudo com má vontade e relaxo.   A pele ficara toda torta.   Ele riu e com a boca torcida tentou imitar a cicatriz da barriga de moça. Achei de mau gosto, me fechei.  Mas ele continuou. Não por minha causa. Parou de caçoar, falou “tadinha” e começou a se abrandar. Primeiro em dó, depois em ternura.   “Que terá sido aquilo: facada, tiro, perda de um rim? Aconteceu um troço violento ali...”  Chegou a falar que talvez um maldito tivesse tentado arrancar da barriga dela um filho à navalha.  Sofria a moça, sofria. 
Nas corridas seguintes, não parou mais de falar dela. Começava fingindo a caçoada, imitava a cicatriz torta. Mas depois se derramava. Aquela cicatriz o atraía mais que o corpo todo dela. Que o rosto. Que o mundo.   Aquela cicatriz a tornava tão miserável quanto ele. Estava apaixonado. Por ela, por aquela cicatriz.  Apaixonado. 
Talvez ela também.

***

Durante muitas corridas, o Trevisan falou de sua paixão pela moça da cicatriz.  Ele até emagreceu e parou de contar as piadas esdrúxulas, mas continuava bem-humorado. Diminuiu a bebida. Estava feliz. Assobiava até. 
Nessa mesma época conseguiu financiar um apartamento num conjunto habitacional que ficava bem longe. O lugar era barra pesada e ele vivia encontrando pelos corredores uma moçada mal-encarada usando droga.  No começo teve medo, mas depois já estava até dando conselhos pra rapaziada.   Apaixonado, aprendera uma receita para fazer uma carninha grelhada especial pra amada. E estava até pensando em guardar um dinheiro para arrumar a cicatriz dela. Embora achasse que sua eleita fosse linda de qualquer jeito.
Então teve o dia em que o Zé Carlos esperava em segundo no ponto - logo atrás do táxi do apaixonado -, quando chegou um casal com malas e filhos. Bom dia, bom dia, entraram no carro do Trevisan: o marido no banco da frente. A mulher e as crianças no banco de trás. Partiram. Um minuto depois, estavam de volta ao ponto. Furioso, o homem puxou a família pra fora do carro do Trevisan (que estava quieto e sem graça) e perguntou ao Zé se poderia levá-los ao aeroporto.  No caminho, todos instalados, o Zé perguntou o que tinha acontecido: era coordenador do ponto e qualquer reclamação ele poderia tomar providência. O tal homem falou então que, nem bem tinha começado a corrida, “o cafajeste do outro taxista – Trevisan o nome dele, não é? -, tinha mexido no retrovisor pra bisbilhotar sua esposa no banco de trás”.  Antes que o Zé pudesse falar qualquer coisa, o homem foi dizendo que não perderia tempo naquele momento. Mas na volta da viagem iria ele mesmo ao departamento de trânsito denunciar o Trevisan.
Se ele teve uma recaída ou fora sua fama que induzira o passageiro, não sem sabe.  Mas aquela nova reclamação e o receio dos outros taxistas expulsaram o Trevisan do ponto.  Depois de ficar um tempo sem trabalhar, voltou, mas num ponto três quarteirões pra baixo.  
Um dia o Zé me falou que o Trevisan tinha tido uma discussão com um pipoqueiro e levara uma pedrada na testa. Mas não deve ter sido coisa muito grave: uns dois meses depois, ele me viu andando na calçada, botou o bração pra fora do carro e chamou: “fala, compadre!”.
Depois disso o perdi de vista. De vez em quando perguntava para o Zé: “tem visto o Trevisan?”.  E o Zé: “às vezes esbarro com ele por aí. Mas quero distância...”.
Porém, houve um dia em que encontrei o Zé abatido.  Quase tremendo, tentou disfarçar: “ficou sabendo do seu amigo?”. “Seu amigo” ou “seu protegido” era como o Zé se referia ao Trevisan quando conversava comigo.  Mas naquele dia a coisa não parecia boa.  E não era: o Trevisan tinha sofrido um grave acidente: sozinho, estourara o carro na murada de uma avenida movimentada ali perto e morrera.  “Foi hoje?” “Faz umas duas semanas. Quem contou foram os colegas do ponto dele”. 
Ficamos os dois quietos.  O Zé se abalava muito quando algum colega morria de acidente ou assalto. Já eu fiquei imaginando como teria sido o velório e o enterro do Trevisan: alguns poucos colegas do ponto (mas não todos), quem sabe uma filha, talvez um vizinho.  Num canto, a moça da cicatriz.  Mas como os outros iriam saber? A cicatriz escondida como ela. Como a lágrima dela.  Depois foi embora, ninguém nem percebeu.  Ninguém nunca percebia mesmo.
Agora já era tarde, mas se eu soubesse, teria ido. O Zé Carlos Alves também.
Zé Carlos que, pensando bem, aqui entre nós, daria um personagem e tanto.



Publicado em série no Jornal de Piracicaba em 11/3, 25/3, 8/4, 22/4 e 6/5/2018