(caio silveira
ramos)
Cheguei
numa Sexta-Feira Santa.
Não ao
mundo, que isso foi na Quarta-Feira.
Cheguei
em casa (“em” mesmo, que chegar “a casa” seria muito pouco acolhedor) numa
Sexta-Feira Santa. A velha casa. A casa
da mãe, do pai, das irmãs, da infância. Cheguei em casa que, no fundo, no
fundo, é chegar ao mundo também.
Dizem
que estavam as três meninas sentadas na escada de madeiras largas do saguão da
entrada, lugar do mais alto pé direito da casa. Ali, entre a porta da rua e a
do corredor que dá para a sala.
As três
meninas, oito, seis e quatro anos. As
três irmãs sentadas no mesmo degrau, uma ao lado da outra. Quel, a mais nova, devia estar com uma
blusinha de manga comprida e uma calça confortável. Ruthinha, a do meio, de
vestidinho branco de algodão bem macio. Teca, a mais velha, de blusa de frio
com decote em “v” e calça de brim azul. As três quietas e tentando enxergar,
através dos quadrados de vidro trabalhado da porta que dava para a rua, se
alguém estava chegando. Se alguém estava
passando. O trá-trá-trá do caminhão de
lixo e o fluplam-flupam-flupam dos lixeiros em correria, jogando o conteúdo das
latas quadradas de óleo no tal caminhão antes de devolvê-las às calçadas? O
lefe-lefe da correspondência passada por baixo da porta pelo carteiro de boné
amarelo-claro? O poque-poque do cavalinho da carroça do seu João Verdureiro? O
troque-troque da roda do carrinho do seu Doceiro? “Não, não, Quel, hoje é
feriado. Não tem lixeiro, carteiro, verdureiro, nem doceiro.”
“Eu
queria só seu Doceiro. Tô com fome. Será que vai demorar ainda?”
“Olha,
olha, acho que estão chegando... Não, foi só alguém andando até o ponto de
ônibus”.
“Mas
hoje não é feriado? Tem ônibus?”
“Claro
que tem.”
“Tô com
fome.”
“Eu
quero conhecer logo meu irmãozinho...”
“Vocês
querem fazer silêncio? Não pode ficar falando! Hoje é dia que Jesus morreu!”
“Jesus
morreu hoje?”
“Não foi
bem hoje, mas é como se fosse...”
“Ele
morreu, então? Ah, não!”
“Parem
de choramingar. Vocês são muito crianças mesmo! Não entendem nada.”
“E você
não é criança também?”
“Olha,
olha, olha, acho que chegaram...”
Mas era
só mais alguém passando.
Às vezes
penso que aquele momento ainda está ali: elas esperando, esperando até hoje,
sentadinhas, fazendo psiu com os dedinhos indicadores na boca: silêncio porque
é o dia que Jesus morreu.
Não me
vejo chegando, a casa desperta, as três em volta da mãe espiando o bebê no colo
e dizendo palavras enternuradas. Vejo-as ali na escada esperando. Ou depois: as lembranças palpáveis daquele
dia ou dos seguintes: o berço montado novamente com seu colchãozinho de palha.
A pulseira de identificação do hospital. A cesta de plástico verde com bolinhas
brancas para guardar produtos de higiene. Um sem fim de babadores coloridos
dados por alunas, vizinhas e amigas da mãe.
Um quadrinho pintado por tia Clemência com um anjo alto abençoando um
bebê loiro.
Não me
vejo atravessando a porta, as meninas se encantando.
Mas
disseram e eu acredito:
Cheguei
numa Sexta-Feira da Paixão.
Ilustração de Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 20/5/2018
Publicado no Jornal de Piracicaba em 20/5/2018
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