segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Dessemelhanças


(caio silveira ramos)

Minha mãe organizou um almoço para comemorar o aniversário da tia Teresa, que andava amuada desde a morte do tio Estrela.
Do primeiro casamento do vô Otávio nasceram sete filhos.  Depois que ficou viúvo, ele se casou com a vó Luiza com quem teve mais quatro crianças. Na época do almoço de aniversário, meu pai e tio Henrique já tinham partido, mas tio Augusto, depois de muitos e muitos anos, reviu tia Teresa. No início, não reconheceu a irmã e me cutucou: “quem é essa carioca?” “É a tia Teresa, tio...”
“Teresa, é você mesmo? Não tinha reconhecido!! Também, onde já se viu uma caipira criada em Itu com esse sotaque?”
Tia Teresa riu e abraçou o irmão.  Ela morava no Rio de Janeiro há muito tempo e um tanto pelo costume e outro tanto pelo charme (alguém diria “esnobismo”), carregava nos “erres” e “esses” cariocas.
De qualquer forma, eu estava feliz por rever tanta gente que não encontrava fazia tempo, inclusive a própria tia Teresa.   Estavam lá, tia Myrthes, Heloísa e Daniel, viúva e filhos do tio Henrique. E também todo pessoal do tio Augusto, vindos lá de Jundiaí: tia Carminha, Maria Luiza (com o marido e os filhos), Fátima, Helena e Tavinho.
Passei boa parte da festa olhando para aqueles meus parentes, buscando meu pai em cada traço e em cada palavra.  Mas ele era muito diferente dos irmãos e sobrinhos: talvez os olhos da minha prima Heloísa lembrassem um pouco os dele, com aquele verde profundo e atento. Mas de resto, meu pai parecia ser de outra família: tia Augusto, tia Teresa e a lembrança do tio Henrique tinham o mesmo formato de rosto e de nariz. O mesmo olhar. E quase os mesmos caminhos do tempo na pele.
Meu pai, mesmo com toda aspereza da vida, tinha o desenho do rosto menos brusco, os cabelos ondulados e negros penteados para trás, o olhar curioso de quem queria engolir o mundo e as letras para descobrir os mistérios do tempo, do espaço e do mais esquecido dos seres. Ele era muito diferente dos irmãos. Até no nome: era o único que tinha o “Coelho” antes do “Ramos”: será que o Miro teria puxado mais o lado materno, diferentemente dos irmãos?
Talvez as dessemelhanças fossem fruto do tempo e da separação causada pela morte prematura de uma jovem mãe de quatro crianças, que tinham na época entre 5 e 11 anos. Meu pai, por exemplo, mais por amor ao estudo que por vocação, foi para o Seminário Menor em Pirapora do Bom Jesus, só voltando para casa em Itu - na verdade a casa de seus primos e tios Maria e Benedito -, no período das férias escolares.  Quanto a seus irmãos e irmã, cada um foi para um lado.
De qualquer forma, constatei que não seria naquele almoço que eu conseguiria reencontrar o olhar do meu pai.
Mas de repente, de longe, justamente eu que sempre fora traído pela miopia, consegui desvendar todo um mistério: na cabeceira da mesa, meu tio Augusto almoçava em silêncio. Percebi mais uma vez que seu olhar, suas orelhas, seus cabelos e a pele enluarada do seu rosto não me traziam a imagem de quem eu procurava.   Mas se suas mãos eram diferentes das do meu pai, a forma de segurar o garfo era a mesma. Se sua boca e seu queixo não refletiam meu pai, sua mastigação tinha exatamente as mesmas ondulações. Assim como eram iguais aos do meu pai o seu abrir e fechar das pálpebras, mesmo sendo tão diferentes os olhos de um e do outro.
Meu pai estava ali, naqueles movimentos do corpo. Separados pelo mundo, pelas dores e pela morte, eles se encontravam talvez no embalar de um antigo colo perdido, nas brincadeiras de pés descalços na terra batida, no riso solto espalhado no ar há tantos anos.
Meu pai estava ali.
Nos movimentos do tempo.

Publicado no Jornal de Piracicaba em 2/9/2018

Um comentário:

INFINITE-SE: