(caio
silveira ramos)
Minha
mãe organizou um almoço para comemorar o aniversário da tia Teresa, que andava
amuada desde a morte do tio Estrela.
Do
primeiro casamento do vô Otávio nasceram sete filhos. Depois que ficou viúvo, ele se casou com a vó
Luiza com quem teve mais quatro crianças. Na época do almoço de aniversário,
meu pai e tio Henrique já tinham partido, mas tio Augusto, depois de muitos e
muitos anos, reviu tia Teresa. No início, não reconheceu a irmã e me cutucou:
“quem é essa carioca?” “É a tia Teresa, tio...”
“Teresa,
é você mesmo? Não tinha reconhecido!! Também, onde já se viu uma caipira criada
em Itu com esse sotaque?”
Tia
Teresa riu e abraçou o irmão. Ela morava
no Rio de Janeiro há muito tempo e um tanto pelo costume e outro tanto pelo
charme (alguém diria “esnobismo”), carregava nos “erres” e “esses” cariocas.
De
qualquer forma, eu estava feliz por rever tanta gente que não encontrava fazia
tempo, inclusive a própria tia Teresa. Estavam
lá, tia Myrthes, Heloísa e Daniel, viúva e filhos do tio Henrique. E também
todo pessoal do tio Augusto, vindos lá de Jundiaí: tia Carminha, Maria Luiza
(com o marido e os filhos), Fátima, Helena e Tavinho.
Passei
boa parte da festa olhando para aqueles meus parentes, buscando meu pai em cada
traço e em cada palavra. Mas ele era
muito diferente dos irmãos e sobrinhos: talvez os olhos da minha prima Heloísa
lembrassem um pouco os dele, com aquele verde profundo e atento. Mas de resto,
meu pai parecia ser de outra família: tia Augusto, tia Teresa e a lembrança do
tio Henrique tinham o mesmo formato de rosto e de nariz. O mesmo olhar. E quase
os mesmos caminhos do tempo na pele.
Meu pai,
mesmo com toda aspereza da vida, tinha o desenho do rosto menos brusco, os
cabelos ondulados e negros penteados para trás, o olhar curioso de quem queria
engolir o mundo e as letras para descobrir os mistérios do tempo, do espaço e
do mais esquecido dos seres. Ele era muito diferente dos irmãos. Até no nome:
era o único que tinha o “Coelho” antes do “Ramos”: será que o Miro teria puxado
mais o lado materno, diferentemente dos irmãos?
Talvez
as dessemelhanças fossem fruto do tempo e da separação causada pela morte
prematura de uma jovem mãe de quatro crianças, que tinham na época entre 5 e 11
anos. Meu pai, por exemplo, mais por amor ao estudo que por vocação, foi para o
Seminário Menor em Pirapora do Bom Jesus, só voltando para casa em Itu - na
verdade a casa de seus primos e tios Maria e Benedito -, no período das férias
escolares. Quanto a seus irmãos e irmã,
cada um foi para um lado.
De
qualquer forma, constatei que não seria naquele almoço que eu conseguiria
reencontrar o olhar do meu pai.
Mas de
repente, de longe, justamente eu que sempre fora traído pela miopia, consegui
desvendar todo um mistério: na cabeceira da mesa, meu tio Augusto almoçava em
silêncio. Percebi mais uma vez que seu olhar, suas orelhas, seus cabelos e a
pele enluarada do seu rosto não me traziam a imagem de quem eu procurava. Mas se suas mãos eram diferentes das do meu
pai, a forma de segurar o garfo era a mesma. Se sua boca e seu queixo não
refletiam meu pai, sua mastigação tinha exatamente as mesmas ondulações. Assim
como eram iguais aos do meu pai o seu abrir e fechar das pálpebras, mesmo sendo
tão diferentes os olhos de um e do outro.
Meu pai
estava ali, naqueles movimentos do corpo. Separados pelo mundo, pelas dores e
pela morte, eles se encontravam talvez no embalar de um antigo colo perdido,
nas brincadeiras de pés descalços na terra batida, no riso solto espalhado no
ar há tantos anos.
Meu pai
estava ali.
Nos
movimentos do tempo.
Publicado
no Jornal de Piracicaba em 2/9/2018
Quanta lindeza e ternura!
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