segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Algemirando (3): sobre a arte de contar a história (e de coçar as costas)

(caio silveira ramos)

       Em 1986, quando o sociólogo e professor de História Geral Luis Fernando Amstalden terminou sua primeira aula para minha turma do 1º ano do ensino médio, no Colégio Luiz de Queiroz (CLQ), eu já o admirava. Até o final daquele ano, passaria a admirá-lo ainda mais, principalmente pela clareza de suas exposições, pelo estímulo à reflexão e pela maneira inovadora e crítica de abordar a História Antiga sempre com os pés mergulhados no presente e no futuro.  Mas quando ele entrou na sala para aquela aula inaugural, não posso negar que fiquei bastante contrariado.Durante os vinte e quatros anos em que convivi com meu pai, fui testemunha das inúmeras visitas de pessoas que o procuravam quase que diariamente para pedir orientações, conselhos ou simplesmente para conversar. Para aprender com ele.  Fosse nos intervalos das aulas – quantas vezes perdeu o almoço ou o jantar atendendo algum aluno –, ou nas tardes de sábado, ele recebia com toda atenção qualquer pessoa que o procurasse.  E a atenção era redobrada se tal pessoa tivesse fome de conhecimento.  Muitas e muitas vezes eu o vi preparar, graciosamente, estudantes para concursos ou para entrevistas de emprego. Outras tantas, estava ele lá, apresentando novos exemplos para lições mais difíceis a alunos com maiores dificuldades.
Quando eu disse “qualquer pessoa”, não estava exagerando: eram alunos, ex-alunos, parentes, colegas, amigos, vizinhos ou simplesmente alguém que conhecia sua generosidade, sua biblioteca e seu conhecimento.   Muitos eram carentes de recurso e até de afeto; alguns até com profundos problemas psicológicos, que ele recebia e ouvia com o mesmo respeito e a eterna paciência.   Me lembro que eu atendia à campainha, conduzia a pessoa até a porta do seu escritório, que ficava bem próximo da entrada de casa, e colocava uma cadeira ao lado de sua mesa de trabalho – em frente ficavam as estantes com seus livros –, para que o “convidado” se sentasse.   E lá ficava meu pai durante horas nas tardes de sábado: depois de cumprimentar a pessoa, deixava sua cadeira virada um pouco de lado, puxava a prancheta embutida sobre as gavetas para apoiar o braço esquerdo e, aninhado por sua escrivaninha, ouvia, explicava, argumentava, contrariava.  Conversava.
Daqueles que vinham simplesmente para uma longa e boa conversa, me lembro nitidamente de dois.   O primeiro era o hoje premiado repórter Roberto Cabrini, que frequentava o escritório do meu pai desde os tempos do colégio.   Durante anos, mesmo depois da fama, Cabrini sempre encontrava um jeito, em esporádicos finais de tarde de sábado, para conversar com seu antigo professor.   Na década de 1990, quando cobria o campeonato de Fórmula 1, Cabrini telefonou do escritório da Rede Globo, em Londres, para perguntar a opinião do seu velho mestre sobre uma frase que ele pretendia usar em uma reportagem. Meu pai deu uma resposta fundamentada, com a placidez de sempre, mas minutos depois ligou de volta, trazendo ao repórter as lições de autores que confirmavam a resposta inicial. E assim, em sua matéria no telejornal daquela noite, Roberto Cabrini pôde usar sua frase com tranquila segurança.
O segundo memorável frequentador das conversas do meu pai nas tardes de sábado era um menino que viria a ser aquele professor mencionado no início deste Mirante.    Por enquanto, porém, o tal garoto terá que esperar em alguma dobra do tempo para que eu, ainda mais menino que ele, desça as escadas de casa, abra a porta e o conduza até o antigo escritório.

***



Quando a campainha tocava em algumas tardes de sábado da minha infância, eu já desconfiava.   E se via a silhueta pela vidraça, engolia em seco.   Mas ao abrir a porta, recebia direitinho, encabulava e conduzia aquele adolescente falante e irrequieto (um pouco mais velho que minhas irmãs) para o escritório onde meu pai trabalhava em sua escrivaninha.   Eu abria a porta lateral e anunciava: “o Luis Fernando Amstalden chegou...”.     Enquanto eles se cumprimentavam, eu colocava uma cadeira ao lado da escrivaninha para a visita se sentar e depois saía quieto pela porta que dava para o quarto dos meus pais.  De lá, pela fresta, ficava espiando a conversa dos dois amigos.   Depois andava pela casa, brincava um pouco sozinho e voltava a espiar. Lia alguma coisa, assistia à TV e retornava para a fresta. E a conversa parecia não ter fim. Até que no começo da noite, meu rival partia. Mas aí já era tarde.
Naqueles sábados, eu queria meu pai só para mim.   Queria com ele bater bola no pátio, brincar de gol a gol, catar a danada de capotão fazendo pose de goleiro.   Queria jogar futebol de botão no campo improvisado no verso da lousa grande acomodada sobre a mesa da copa.  E se por acaso meu pai precisasse ficar no escritório, que não desse trela pra quem chegasse: ficasse lendo ou corrigindo provas, que eu também ficaria por lá com meus livros ou inventando histórias na minha escrivaninha miúda colocada ao lado da sua.
As tardes de sábado existiam para meu pai estourar pipoca pra gente saborear junto com café que ele fazia usando coador de pano.    As tardes de sábado eram feitas pra gente assistir futebol na TV ou simplesmente deitar na cama para ler histórias. Ou para ele cochilar enquanto eu despenteava seu cabelo com sua escova grande.    Ou para que, deitado de bruços, me desse orientações de como coçar suas costas – coincidentemente, orientações idênticas às que meu filho, mesmo sem ter conhecido o avô ou essas histórias, me dá carinhosamente antes de dormir: “mais pra esquerda, por favor? Mais pra direita, sobe, sobe, mais pra direita, desce muitomuitomuitomuitomuito pouco. Aí!” –, e que me fizeram desenvolver técnicas avançadíssimas de coçações dorsais, como “o chafariz infinito”,  “o ziguezague atômico” ou “as ondas aleatórias”.
Mas quando meu rival aparecia, as tardes de sábado se dissolviam e acabavam misturadas com o cheiro da cera passada no assoalho da sala ou com o do bolo de leite fervendo. E eu ficava lá, olhando pela fresta da porta, vendo meu pai conversar por horas com aquele rapaz que parecia falar pelos cotovelos. E o que é pior: meu pai parecia gostar daquelas conversas.
Assim, eu fiquei visivelmente contrariado quando, em 1986, reconheci meu antigo rival naquele sociólogo e professor de História Geral, que entrou para dar a primeira aula para a minha turma do 1º ano do ensino médio, no Colégio Luiz de Queiroz (CLQ).  
No entanto, já no final daquela aula (e durante o ano todo), eu entendi porque meu pai ficava feliz naquelas tardes de sábado de longas conversas.  Entendi também como elas tinham sido fundamentais para o jovem Luis Fernando Amstalden: assim como a professora Esther Silvestre tinha me inspirado com suas aulas de História do Brasil no ginásio, as aulas de Amstalden instigaram meu pensamento e me fizeram refletir sobre a História Antiga e todas as suas consequências.     Desvendando Egitos, Grécias e Romas – às vezes por meio de canções, como quando pediu a interpretação de “Mulheres de Atenas”, de Chico Buarque e Augusto Boal –, ele me fez entender o tempo em que eu vivia.  Me fez entender o mundo que se preparava para mim.
E assim, contando histórias, ele me devolveu aquelas antigas tardes de sábado.

Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicados no Jornal de Piracicaba em 31/5/2013 e 14/6/2013 


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