(caio
silveira ramos)
Não era da
calçada.
Ele primeiro
abria a porta que dava para rua e entrava no saguão de entrada com seus quase
seis metros de pé direito. Depois o pai
subia a escada de piso de madeira e chegava à plataforma de cima, onde outras
portas (uma logo à frente, outra à direita), antigas, de batente largo, folhas
duplas, bandeiras de três vidros quadrados (e altas como dois gigantes zelosos
com os braços cruzados nas costas – afinal, eram trancadas por dentro),
protegiam as pessoas da casa.
Então vinha o
assobio do pai.
Sempre o mesmo
ritmo. Sempre a mesma melodia.
E o saguão
recebia toda aquela sonoridade e a amplificava, inundando o dia de sorriso e
chegança.
Não tinha nada
de senhorial o tal canto: assobio pra chamar meninos? Nada, nada. Era uma forma de enganar a campainha, era o
som do pai vindo, rindo: o assobio daquela melodia em tom maior só podia trazer
alegria e não o mando.
E o som recheado
pelos quase seis metros de pé direito, entrava pelas frestas das portas, pelos
buracos das fechaduras, pelos vãos do assoalho e das vigas.
E invadia a
casa.
E fazia dueto
com o piano da mãe. Com a folia das
crianças. Com a fumaça das panelas, com os cheiros das comidas, das pessoas,
dos bichos, das paredes.
E se enroscava
no forro entreliçado da cozinha, nas árvores do quintal, ensinando os
passarinhos espalhados pelo pátio, pelos arames da antena da TV. E os sons, os cheiros,
as conversas, os cantos juntavam todas as suas pernas e corriam para abrir as
portas para o pai.
Quando o filho
se deu por gente, passou a tentar imitar o tal assobio. Voltando de um passeio, chegando da rua, o
pai deixava o menino tentar primeiro. E
lá vinha o assobiozinho, copiando a melodia do canto do pai, tentando driblar a
dureza das portas. Mas mesmo afinado,
direitinho, o assobio (quase um suspiro) só arranhava a tintura das
madeiras. Então o pai, não por deboche,
mas por peraltagem, alçava no ar do saguão o sopro enganchado no sorriso
gaiato, que enfeitiçava os gigantes e abria as portas do mundo.
O pai se foi e o
assobio foi com ele. Nas ruas, nos
dias de sol; em casa, debaixo do chuveiro: o filho tenta, no comungar do tempo,
reproduzir o feitiço do pai.
Mas seja
sussurrada ou apenas no oco do pensamento, a melodia, aquela melodia, teima em
sair apenas triste, débil. E sempre em
tom menor.
Só que às vezes,
vindo da rua madrugadeira ou de um sonho perdido, o assobio do pai parece
chegar pelo canto de um passarinho vadio.
E o dia clareia,
abrindo todas as suas portas.
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 11 de julho de 2014
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