segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Ensinando passarinhos

(caio silveira ramos)

Não era da calçada.
Ele primeiro abria a porta que dava para rua e entrava no saguão de entrada com seus quase seis metros de pé direito.  Depois o pai subia a escada de piso de madeira e chegava à plataforma de cima, onde outras portas (uma logo à frente, outra à direita), antigas, de batente largo, folhas duplas, bandeiras de três vidros quadrados (e altas como dois gigantes zelosos com os braços cruzados nas costas – afinal, eram trancadas por dentro), protegiam as pessoas da casa.  
Então vinha o assobio do pai.
Sempre o mesmo ritmo. Sempre a mesma melodia.
E o saguão recebia toda aquela sonoridade e a amplificava, inundando o dia de sorriso e chegança.  
Não tinha nada de senhorial o tal canto: assobio pra chamar meninos? Nada, nada.  Era uma forma de enganar a campainha, era o som do pai vindo, rindo: o assobio daquela melodia em tom maior só podia trazer alegria e não o mando.
E o som recheado pelos quase seis metros de pé direito, entrava pelas frestas das portas, pelos buracos das fechaduras, pelos vãos do assoalho e das vigas.
E invadia a casa.
E fazia dueto com o piano da mãe.  Com a folia das crianças. Com a fumaça das panelas, com os cheiros das comidas, das pessoas, dos bichos, das paredes.
E se enroscava no forro entreliçado da cozinha, nas árvores do quintal, ensinando os passarinhos espalhados pelo pátio, pelos arames da antena da TV. E os sons, os cheiros, as conversas, os cantos juntavam todas as suas pernas e corriam para abrir as portas para o pai.
Quando o filho se deu por gente, passou a tentar imitar o tal assobio.   Voltando de um passeio, chegando da rua, o pai deixava o menino tentar primeiro.  E lá vinha o assobiozinho, copiando a melodia do canto do pai, tentando driblar a dureza das portas.   Mas mesmo afinado, direitinho, o assobio (quase um suspiro) só arranhava a tintura das madeiras.  Então o pai, não por deboche, mas por peraltagem, alçava no ar do saguão o sopro enganchado no sorriso gaiato, que enfeitiçava os gigantes e abria as portas do mundo.
O pai se foi e o assobio foi com ele.    Nas ruas, nos dias de sol; em casa, debaixo do chuveiro: o filho tenta, no comungar do tempo, reproduzir o feitiço do pai.
Mas seja sussurrada ou apenas no oco do pensamento, a melodia, aquela melodia, teima em sair apenas triste, débil.  E sempre em tom menor.
Só que às vezes, vindo da rua madrugadeira ou de um sonho perdido, o assobio do pai parece chegar pelo canto de um passarinho vadio.
E o dia clareia, abrindo todas as suas portas.

Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 11 de julho de 2014 

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