(caio silveira
ramos)
Não há quem
não reconheça: Dona Janda é uma mulher muito sábia. E todos igualmente
reconhecem que existem poucas pessoas no mundo com sua generosidade. E como essa não tem limites, Dona Janda se
supera a cada dia.
No aniversário
de quatro anos de seu neto mais novo, ela lhe deu de presente uma verdadeira
joia: um violão de verdade, mas pequenino, quase um cavaquinho, de cordas
macias, belíssimo tampo e com som de um sonho dentro de outro. O que ela talvez não saiba é que, mais que um
instrumento, ela entregou nas mãos de seu neto uma lâmpada mágica, capaz de
revelar mundos perdidos, conquistar reinos e desvendar os segredos do amor. Talvez ela não saiba. Mas eu sei.
Sei por que
ela já fizera algo semelhante. Há mais
de três décadas.
Eu tinha
acabado de completar sete anos e andava para cima e para baixo com um
violãozinho de plástico de cordas feitas de linha para pesca: lá ia eu,
apertando as cravelhas e dedilhando as linhas na tentativa de me integrar à
musicalidade que abençoava minha família.
Percebendo isso e além, minha mãe contou que uma aluna sua da Escola Dr.
Jorge Cury tinha começado a dar aulas de violão e que, se eu quisesse, poderia
aprender um pouco. No calor da hora,
disse entusiasmado que sim, mas depois fui construindo receios: e se a
professora fosse feia feita uma bruxa de pesadelo? E se eu tivesse que ficar
horas me exercitando em escalas sem fim, deixando a bola e o forte-apache
largados no quintal? Mais uma vez, notando
meu silêncio encabulado, a sabedoria de Dona Janda tentou me tranquilizar: as
aulas, pelo menos inicialmente, não seriam de “violão solo” (portanto as
temidas escalas ficariam para depois), mas de “acompanhamento”, uma base de
acordes e “batidas” para os meus cantares.
Quanto à professora, além de ser sua aluna, era filha de seu Waldir
Belluco, querido mestre de violino de minha irmã Ester, que por esses tempos já
começava a verter seu grandioso talento nas cordas da viola. Por fim, Beatriz (esse era o nome da
professora) era sobrinha de uma lenda do violão: Sérgio Belluco. Então me tranquilizei: não seria comigo que
a sabedoria de minha mãe iria falhar pela primeira vez. De qualquer forma, quando a campainha de
casa tocou na tarde daquela primeira aula, senti os antigos receios me
visitando de novo. Mas foi só a porta se
abrir para meu coração nunca mais ser o mesmo.
Do alto dos
meus sete anos, entre minhas poucas certezas, uma me parecia indiscutível: a
mais linda moça que eu conhecia (e, portanto, a mais bela do mundo) atendia
pelo nome de Lucy Abrahão. Ela era
amiga da minha irmã Ruth e frequentava nossa casa em dias, para mim, de
alegria, deslumbramento e de um encanto feito de olhos, sorrisos e de uma ternura
desconcertante: era como se Lucy tivesse bebido dois sóis no café da manhã e
saísse pelo mundo irradiando, através do mar, suas luzes multiplicadas.
Pois naquele
dia, ao abrir a porta para minha professora de violão, eu constatei que o sol
me chegava também pelo céu bordado de um azul novo: sorrindo pelos lábios e
pelos olhos, Bia Belluco de agora em diante faria companhia para Lucy e,
perante tanta beleza e doçura, na inocência dos meus sete anos, traçou-se o meu
destino: em minha vida, todas as minhas paixões nasceriam, todos os meus sentidos
seriam despertados, antes de tudo, pelos olhos e sorrisos das mulheres. Todo amor começaria por um olhar feminino
ensolarado.
Mas naquela
infância distante, a certeza de felicidade trazida por Bia Belluco simplesmente
fez meu coração flutuar sereno para a palma de sua mão. E foi a minha mão que ela contornou com a
caneta no meu caderno novo. Depois me
mostrou os dedos que tocariam as cordas.
E me ensinou como segurar o violão junto ao corpo, feito um abraço de
aconchego. E veio a primeira batida, uma
valsa, convite para o bailado da mão direita.
E foram chegando os primeiros acordes, lá, mi, ré, maiores tal qual a
voz que se derramava dela, doce, tranquila, voo sereno de um passarinho afinado
e livre.
E nas aulas
seguintes, as canções que eu desconhecia, além de escrevê-las em meus cadernos
guardados até hoje como cartas de amor, ela gravava numa fita cassete para
domar meus ouvidos. E não eram apenas
cantigas de roda. Sem medo, ela me trazia Paulinho da Viola, Chico Buarque,
Caetano, Vinicius, Tom: letras, palavras, temas e sons que eu aos poucos
passava a entender e a sentir. Lições de
amor e de amar para vida inteira.
Pois aquelas
aulas, mais do que de violão, eram aulas de amar, não só pelas músicas, que
falavam de paixões e saudade, mas pelo que eu aprendia e guardava no peito:
como tanger as cordas com firmeza e doçura, como dedilhar feito quem semeia a
terra ou toca o vento, como colocar a voz para que o amor das canções se
transformasse em matéria palpável. Como
enxergar através das palavras e descobrir meus próprios sentimentos.
As aulas
duraram quase dois anos e depois terminaram, talvez porque minha professora
tivesse que se dedicar a outros estudos e trabalhos. Eu, no entanto, repleto
dos fundamentos que ela me passara, podia seguir sozinho, descobrindo acordes e
tirando de ouvido novas canções que pudessem atender as minhas necessidades de
amor. Sem Bia, confesso que fiquei
indisciplinado, aprendi sozinho a tocar cavaquinho, mas cheio de falhas, um
tanto sem método, seguindo o ritmo que me batia no peito. Porém, para o que eu queria da vida, tudo já
cabia na ponta dos dedos: por causa do violão, lá na quarta série, Ana Paula, a
menina mais linda, veio falar comigo, e eu, tão tímido, mas protegido pelos
acordes do meu companheiro, entendi o sentido do amor. Através da música, fiz grandes e eternos
amigos, tentei abrandar, da minha mãe, a saudade, quando meu pai partiu para o
seu sonhar sem fim, desvendei segredos do samba e me tornei parceiro de alguns
dos meus mestres. Com meu violão
decifrei minhas paixões e aprendi a enganar a crueza da solidão, em noites
infinitas de amores inventados, queridos, doloridos. E em meio a tantas dores e desabrigos,
brotava do meu violão o olhar de Bia Belluco a me mirar com seu talento e sua ternura.
Lá vai meu
menino com o presente de sua avó.
Depois de experimentar o instrumento quase flamencamente, ele abraça seu
violão pequenino e, para meu espanto, começa a dedilhá-lo com a suavidade de um
carinho antigo. Suas mãos aprenderão o
caminho das cordas certas até se formarem pequenos sulcos na ponta de seus
dedos: neles se alojarão seus amores, serão afastadas suas tristezas, se
perderá a solidão.
Pois as lições
de amar de Bia Belluco entraram pelo meu sangue, moldaram meus afetos e agora adormecem
mansamente no coração e nas mãos do meu filho.
Agora e para
sempre.
Ilustração:
Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado
no Jornal de Piracicaba em 17/08/2012
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