quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O olhar do violão

(caio silveira ramos)

Não há quem não reconheça: Dona Janda é uma mulher muito sábia. E todos igualmente reconhecem que existem poucas pessoas no mundo com sua generosidade.  E como essa não tem limites, Dona Janda se supera a cada dia.
No aniversário de quatro anos de seu neto mais novo, ela lhe deu de presente uma verdadeira joia: um violão de verdade, mas pequenino, quase um cavaquinho, de cordas macias, belíssimo tampo e com som de um sonho dentro de outro.  O que ela talvez não saiba é que, mais que um instrumento, ela entregou nas mãos de seu neto uma lâmpada mágica, capaz de revelar mundos perdidos, conquistar reinos e desvendar os segredos do amor. Talvez ela não saiba.  Mas eu sei.
Sei por que ela já fizera algo semelhante.  Há mais de três décadas.
Eu tinha acabado de completar sete anos e andava para cima e para baixo com um violãozinho de plástico de cordas feitas de linha para pesca: lá ia eu, apertando as cravelhas e dedilhando as linhas na tentativa de me integrar à musicalidade que abençoava minha família.  Percebendo isso e além, minha mãe contou que uma aluna sua da Escola Dr. Jorge Cury tinha começado a dar aulas de violão e que, se eu quisesse, poderia aprender um pouco.   No calor da hora, disse entusiasmado que sim, mas depois fui construindo receios: e se a professora fosse feia feita uma bruxa de pesadelo? E se eu tivesse que ficar horas me exercitando em escalas sem fim, deixando a bola e o forte-apache largados no quintal?  Mais uma vez, notando meu silêncio encabulado, a sabedoria de Dona Janda tentou me tranquilizar: as aulas, pelo menos inicialmente, não seriam de “violão solo” (portanto as temidas escalas ficariam para depois), mas de “acompanhamento”, uma base de acordes e “batidas” para os meus cantares.  Quanto à professora, além de ser sua aluna, era filha de seu Waldir Belluco, querido mestre de violino de minha irmã Ester, que por esses tempos já começava a verter seu grandioso talento nas cordas da viola.  Por fim, Beatriz (esse era o nome da professora) era sobrinha de uma lenda do violão: Sérgio Belluco.   Então me tranquilizei: não seria comigo que a sabedoria de minha mãe iria falhar pela primeira vez.   De qualquer forma, quando a campainha de casa tocou na tarde daquela primeira aula, senti os antigos receios me visitando de novo.  Mas foi só a porta se abrir para meu coração nunca mais ser o mesmo.
Do alto dos meus sete anos, entre minhas poucas certezas, uma me parecia indiscutível: a mais linda moça que eu conhecia (e, portanto, a mais bela do mundo) atendia pelo nome de Lucy Abrahão.   Ela era amiga da minha irmã Ruth e frequentava nossa casa em dias, para mim, de alegria, deslumbramento e de um encanto feito de olhos, sorrisos e de uma ternura desconcertante: era como se Lucy tivesse bebido dois sóis no café da manhã e saísse pelo mundo irradiando, através do mar, suas luzes multiplicadas.  
Pois naquele dia, ao abrir a porta para minha professora de violão, eu constatei que o sol me chegava também pelo céu bordado de um azul novo: sorrindo pelos lábios e pelos olhos, Bia Belluco de agora em diante faria companhia para Lucy e, perante tanta beleza e doçura, na inocência dos meus sete anos, traçou-se o meu destino: em minha vida, todas as minhas paixões nasceriam, todos os meus sentidos seriam despertados, antes de tudo, pelos olhos e sorrisos das mulheres.  Todo amor começaria por um olhar feminino ensolarado.
Mas naquela infância distante, a certeza de felicidade trazida por Bia Belluco simplesmente fez meu coração flutuar sereno para a palma de sua mão.   E foi a minha mão que ela contornou com a caneta no meu caderno novo.  Depois me mostrou os dedos que tocariam as cordas.  E me ensinou como segurar o violão junto ao corpo, feito um abraço de aconchego.  E veio a primeira batida, uma valsa, convite para o bailado da mão direita.   E foram chegando os primeiros acordes, lá, mi, ré, maiores tal qual a voz que se derramava dela, doce, tranquila, voo sereno de um passarinho afinado e livre.
E nas aulas seguintes, as canções que eu desconhecia, além de escrevê-las em meus cadernos guardados até hoje como cartas de amor, ela gravava numa fita cassete para domar meus ouvidos.  E não eram apenas cantigas de roda. Sem medo, ela me trazia Paulinho da Viola, Chico Buarque, Caetano, Vinicius, Tom: letras, palavras, temas e sons que eu aos poucos passava a entender e a sentir.  Lições de amor e de amar para vida inteira.
Pois aquelas aulas, mais do que de violão, eram aulas de amar, não só pelas músicas, que falavam de paixões e saudade, mas pelo que eu aprendia e guardava no peito: como tanger as cordas com firmeza e doçura, como dedilhar feito quem semeia a terra ou toca o vento, como colocar a voz para que o amor das canções se transformasse em matéria palpável.  Como enxergar através das palavras e descobrir meus próprios sentimentos.
As aulas duraram quase dois anos e depois terminaram, talvez porque minha professora tivesse que se dedicar a outros estudos e trabalhos. Eu, no entanto, repleto dos fundamentos que ela me passara, podia seguir sozinho, descobrindo acordes e tirando de ouvido novas canções que pudessem atender as minhas necessidades de amor.   Sem Bia, confesso que fiquei indisciplinado, aprendi sozinho a tocar cavaquinho, mas cheio de falhas, um tanto sem método, seguindo o ritmo que me batia no peito.   Porém, para o que eu queria da vida, tudo já cabia na ponta dos dedos: por causa do violão, lá na quarta série, Ana Paula, a menina mais linda, veio falar comigo, e eu, tão tímido, mas protegido pelos acordes do meu companheiro, entendi o sentido do amor.   Através da música, fiz grandes e eternos amigos, tentei abrandar, da minha mãe, a saudade, quando meu pai partiu para o seu sonhar sem fim, desvendei segredos do samba e me tornei parceiro de alguns dos meus mestres.  Com meu violão decifrei minhas paixões e aprendi a enganar a crueza da solidão, em noites infinitas de amores inventados, queridos, doloridos.  E em meio a tantas dores e desabrigos, brotava do meu violão o olhar de Bia Belluco a me mirar com seu talento e sua ternura.
Lá vai meu menino com o presente de sua avó.   Depois de experimentar o instrumento quase flamencamente, ele abraça seu violão pequenino e, para meu espanto, começa a dedilhá-lo com a suavidade de um carinho antigo.   Suas mãos aprenderão o caminho das cordas certas até se formarem pequenos sulcos na ponta de seus dedos: neles se alojarão seus amores, serão afastadas suas tristezas, se perderá a solidão. 
Pois as lições de amar de Bia Belluco entraram pelo meu sangue, moldaram meus afetos e agora adormecem mansamente no coração e nas mãos do meu filho. 
Agora e para sempre.

                                                                                                             Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
                                                                                                                                 Publicado no Jornal de Piracicaba em 17/08/2012

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