sexta-feira, 13 de julho de 2018

Memórias de um café


(caio silveira ramos)


O Meireles, além de amigo querido, é uma figura incrível: conhecedor de uma infinidade de assuntos, ele escreve bem como poucos e possui a incrível capacidade de compartilhar sua sabedoria com o mundo.   Generoso e humilde, ele não reconhece seu talento. E não é por falsa modéstia.
Pois o Meireles foi obrigado a usar suas férias para cuidar do pai, que faria uma delicada cirurgia no joelho.  Um dia antes da partida, o Meireles ficou até mais tarde na repartição, adiantando o serviço para não atrapalhar o colega que o substituiria durante as férias. E no dia seguinte bem cedo, lá foi ele para sua cidade natal no interior de São Paulo.
O pai do Meireles era um velho e querido cardiologista na tal cidade. Nos últimos tempos, por causa da saúde debilitada, tivera que abandonar suas atividades e seus pacientes, e por isso andava acabrunhado, como se a vida não precisasse mais dele. 
Feita a operação, já no quarto, o Meireles chegou perto do pai perguntando se tudo estava bem. O velho médico disse inicialmente que sim, mas num momento raro de desabafo, ele, quase sempre quieto, confessou envergonhado que sabia do incômodo que causava em todo mundo, que não servia pra mais nada, que virara um verdadeiro estorvo para a esposa e para os filhos.
O Meireles teve vontade de acarinhar a cabeça do pai, mas se conteve: os dois há muito não trocavam essas ternuras e o velho médico poderia se sentir mais envergonhado ainda.  Ficaram ali, se observando, o Meireles distraindo o pai com uma conversa qualquer sobre política ou algum parente distante.
No dia seguinte, a mãe do Meireles foi passar algumas horas com o marido no hospital para que o filho pudesse sair um pouco, tomar um banho. Espairecer. 
Como a cidade era pequena e a tarde ensolarada, o Meireles resolveu voltar a pé para a casa dos pais.  Foi andando, revendo as ruas da infância, as vitrines das lojas novas, o comércio popular se abrigando nas calçadas.  Pensou em comer alguma coisa e se lembrou do “Café Portinari”.  Na verdade, nem estava com fome: provavelmente pensara antes no lugar que no estômago.
O “Café Portinari” era o preferido ponto de encontro do pai com os velhos amigos.   Lá eles se reuniam no sábado ou mesmo durante a semana depois do expediente.  O grupo era formado principalmente por médicos, como o pai do Meireles. Mas também havia um advogado, dois engenheiros, além de um ou outro amigo que de vez em quando aparecia por lá também.  
Não, não, o “Café Portinari” não era nem um pouco majestoso: quem descia a rua de paralelepípedos reparava que a entrada era apenas um pequeno retângulo recortado na parede - provavelmente da parte mais alta do porão - da “Pousada Luz da Aurora”, um velho prédio que ocupava aquela esquina desde 1919.  Dentro, a suposição da pequenez do lugar se confirmava: o Café era quase um corredor com algumas poucas mesas. Não se sabe se pela arte do nome, pelo café, pelo atendimento, pelos amigos do pai ou pelo aconchego, mas o fato é que para o Meireles o lugar tinha um encanto indiscutível.
E atrás desse encanto ele veio caminhando tranquilo, respirando o ar da tarde para esquecer o do hospital.  Entrou na rua José Pires e, antes de atravessá-la, reparou no vaso de flores frescas bem próximo da centenária porta de folhas duplas da “Pousada Luz da Aurora”. Mas quando desceu a rua com os olhos, no lugar das mesinhas do Café despontando na calçada, ele deu de cara com o torso de uma manequim de plástico branco vestida com um “baby-doll” transparente.  E acima do toldo da conhecida entrada, em vez de “Café Portinari” ele se deparou com uma tabuleta oval onde se lia: “Tieta’s Lingerie”.
Estacou um instante, pensou estar na rua errada, mas não: na calçada oposta reinava ainda a “Pousada Luz da Aurora” que afastava qualquer engano.  Desceu um pouco mais, disfarçou, espichou os olhos para dentro da loja, viu outras peças de roupas íntimas penduradas em cabides. Perto da entrada, um cartaz escrito à mão avisava: “atacado e varejo”.
Meireles nem chegou a atravessar a rua: deu meia volta, começou a andar sem rumo e quando se deu conta estava na casa dos pais.   Entrou, rumou direto para o banho e embaixo do chuveiro pensou no porquê de tanto estupor.  Pois, muitas lojas que conhecera não haviam também dado lugar a outras?  Além disso, ele nada tinha contra roupas íntimas ou personagens de Jorge Amado.  Talvez alguma coisa que só Freud pudesse explicar: o lugar preferido do pai era agora uma loja de “lingerie”... 
Mas só quando voltou ao hospital, entrou no quarto e viu o velho ressonando no leito é que se deu conta de que o fechamento do “Café Portinari” encerrava um tempo. O tempo do pai.  Daquele antigo pai. Um pai diferente desse que estava ali agora indefeso, frágil, envergonhado do pus de suas feridas.
E sem perceber, ajeitou a coberta daquele pai, que abriu os olhos, sorriu manso e voltou a dormir tranquilo.

Ilustração de Maria Luziano - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 10/6/2018



Nenhum comentário:

Postar um comentário

INFINITE-SE: