(caio silveira
ramos)
O
Meireles, além de amigo querido, é uma figura incrível: conhecedor de uma infinidade
de assuntos, ele escreve bem como poucos e possui a incrível capacidade de
compartilhar sua sabedoria com o mundo.
Generoso e humilde, ele não reconhece seu talento. E não é por falsa
modéstia.
Pois o
Meireles foi obrigado a usar suas férias para cuidar do pai, que faria uma
delicada cirurgia no joelho. Um dia
antes da partida, o Meireles ficou até mais tarde na repartição, adiantando o
serviço para não atrapalhar o colega que o substituiria durante as férias. E no
dia seguinte bem cedo, lá foi ele para sua cidade natal no interior de São
Paulo.
O pai do
Meireles era um velho e querido cardiologista na tal cidade. Nos últimos
tempos, por causa da saúde debilitada, tivera que abandonar suas atividades e
seus pacientes, e por isso andava acabrunhado, como se a vida não precisasse
mais dele.
Feita a
operação, já no quarto, o Meireles chegou perto do pai perguntando se tudo
estava bem. O velho médico disse inicialmente que sim, mas num momento raro de
desabafo, ele, quase sempre quieto, confessou envergonhado que sabia do
incômodo que causava em todo mundo, que não servia pra mais nada, que virara um
verdadeiro estorvo para a esposa e para os filhos.
O
Meireles teve vontade de acarinhar a cabeça do pai, mas se conteve: os dois há
muito não trocavam essas ternuras e o velho médico poderia se sentir mais envergonhado
ainda. Ficaram ali, se observando, o
Meireles distraindo o pai com uma conversa qualquer sobre política ou algum
parente distante.
No dia
seguinte, a mãe do Meireles foi passar algumas horas com o marido no hospital
para que o filho pudesse sair um pouco, tomar um banho. Espairecer.
Como a
cidade era pequena e a tarde ensolarada, o Meireles resolveu voltar a pé para a
casa dos pais. Foi andando, revendo as
ruas da infância, as vitrines das lojas novas, o comércio popular se abrigando
nas calçadas. Pensou em comer alguma
coisa e se lembrou do “Café Portinari”.
Na verdade, nem estava com fome: provavelmente pensara antes no lugar
que no estômago.
O “Café
Portinari” era o preferido ponto de encontro do pai com os velhos amigos. Lá eles se reuniam no sábado ou mesmo
durante a semana depois do expediente. O
grupo era formado principalmente por médicos, como o pai do Meireles. Mas
também havia um advogado, dois engenheiros, além de um ou outro amigo que de
vez em quando aparecia por lá também.
Não,
não, o “Café Portinari” não era nem um pouco majestoso: quem descia a rua de
paralelepípedos reparava que a entrada era apenas um pequeno retângulo
recortado na parede - provavelmente da parte mais alta do porão - da “Pousada
Luz da Aurora”, um velho prédio que ocupava aquela esquina desde 1919. Dentro, a suposição da pequenez do lugar se
confirmava: o Café era quase um corredor com algumas poucas mesas. Não se sabe
se pela arte do nome, pelo café, pelo atendimento, pelos amigos do pai ou pelo
aconchego, mas o fato é que para o Meireles o lugar tinha um encanto
indiscutível.
E atrás
desse encanto ele veio caminhando tranquilo, respirando o ar da tarde para
esquecer o do hospital. Entrou na rua
José Pires e, antes de atravessá-la, reparou no vaso de flores frescas bem
próximo da centenária porta de folhas duplas da “Pousada Luz da Aurora”. Mas
quando desceu a rua com os olhos, no lugar das mesinhas do Café despontando na
calçada, ele deu de cara com o torso de uma manequim de plástico branco vestida
com um “baby-doll” transparente. E acima
do toldo da conhecida entrada, em vez de “Café Portinari” ele se deparou com
uma tabuleta oval onde se lia: “Tieta’s Lingerie”.
Estacou um
instante, pensou estar na rua errada, mas não: na calçada oposta reinava ainda
a “Pousada Luz da Aurora” que afastava qualquer engano. Desceu um pouco mais, disfarçou, espichou os
olhos para dentro da loja, viu outras peças de roupas íntimas penduradas em
cabides. Perto da entrada, um cartaz escrito à mão avisava: “atacado e varejo”.
Meireles
nem chegou a atravessar a rua: deu meia volta, começou a andar sem rumo e
quando se deu conta estava na casa dos pais.
Entrou, rumou direto para o banho e embaixo do chuveiro pensou no porquê
de tanto estupor. Pois, muitas lojas que
conhecera não haviam também dado lugar a outras? Além disso, ele nada tinha contra roupas
íntimas ou personagens de Jorge Amado.
Talvez alguma coisa que só Freud pudesse explicar: o lugar preferido do
pai era agora uma loja de “lingerie”...
Mas só
quando voltou ao hospital, entrou no quarto e viu o velho ressonando no leito é
que se deu conta de que o fechamento do “Café Portinari” encerrava um tempo. O
tempo do pai. Daquele antigo pai. Um pai
diferente desse que estava ali agora indefeso, frágil, envergonhado do pus de
suas feridas.
E sem
perceber, ajeitou a coberta daquele pai, que abriu os olhos, sorriu manso e
voltou a dormir tranquilo.
Ilustração de Maria Luziano - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 10/6/2018
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