segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Breve acalanto para os dias de incertezas


(caio silveira ramos)

Imagine uma típica avozinha de livro de histórias: sorriso sereno, cabelinho curto e olhos doces embalados por óculos de aros dourados. Ela ainda tem que usar uma blusinha de lã com botões discretos, deve gostar de bichos e plantas, e ser apaixonada por suas netinhas, por suas duas filhas e por seu marido, que por gostar muito de doces (entre os quais ela se destaca), tem o carinhoso apelido de Formigão.  Pois se Dona Zélia se enquadra em todos esses requisitos, ela tem pelo menos uma característica que a diferencia de outras vovós de livros de história: Dona Zélia adora futebol.
Pois não é que ela sabe escalações, a tabela de jogos e, se bobear, discute até se é melhor o esquema 4-3-3 ou o 4-1-4-1?  E tudo isso com a serenidade de quem faz uma toalhinha de crochê durante a novela.
Dona Zélia cresceu, no meio de sua numerosa família, em uma grande casa com um assoalho de madeira que tremia quando a criançada corria pela sala.  E nessa sala, seu pai, sentado na sua poltrona, curvado, cotovelo apoiado num dos joelhos, mão no queixo, ouvido quase grudado no grande rádio, escutava os jogos do seu Palestra.  Sempre desse jeito, quieto, atento, pedindo com o olhar que as crianças fizessem silêncio durante as partidas.
A menina Zélia se perguntava por que o pai não colocava o rádio mais alto e se endireitava na poltrona para escutar as partidas com mais conforto. Mas, na verdade, era só o jeito dele, mania, simpatia ou simplesmente sua forma de se concentrar e torcer contido.
Mas por mais baixo que ele ouvisse, a voz do locutor, a tensão do pai e a empolgação da torcida invadiam a casa, e as crianças paravam de correr pela sala para o piso não tremer e atrapalhar o jogo. E ali perto, quietinha, sem se fazer perceber, a menina Zélia acompanhava a partida e vibrava para ver seu time ganhar e seu pai ficar mais feliz.
Um dia o pai se foi e a menina Zélia, durante muito tempo, nos dias de jogo, continuava entrando em casa pisando suave sobre o piso da sala. E por um segundo ela tinha a impressão de ver o pai junto ao rádio ouvindo mais uma partida do Palestra.
E nas noites tormentosas, com seus trovões, ventos e temores, ela procurava sentir a presença do pai, protegendo, de sua poltrona, a casa e a família.  Nos dias de tristeza e saudade, vindo da rua, a moça Zélia ligava o rádio e, enquanto o locutor narrava uma partida nervosa, ela aquietava o coração: parecia que o próprio pai vinha em seu consolo, tomando-a pela mão para abrigá-la no seu colo.
Assim, pela vida afora, quando os medos pareciam engolir o mundo, Dona Zélia escutava futebol pelo rádio para se serenar segura, como se ouvisse um breve acalanto para abrandar os dias de incertezas.
E até hoje, quando as amarguras do futuro e a violência da vida de fora parecem fazer tremer o mundo como o piso da velha casa que não existe mais, Dona Zélia deixa por um instante as netas brincando tranquilas na sala e liga o radinho na bancada da cozinha para ouvir um jogo de futebol qualquer.  Enquanto, em outros cantos da cidade, pessoas roem as unhas, gritam agitadas e explodem seus corações, Dona Zélia sente a calma invadindo a alma e o corpo. 
Quem sabe ela veja seu pai se achegando, apoiando o cotovelo na bancada, descansando o queixo numa das mãos para escutar o jogo com ela.  Mas já não importa a partida, o placar e o grito da torcida. Dona Zélia sorri para o pai sabendo que seu mundo, o mesmo mundo de suas filhas, de suas netas, de seu amado Formigão, está naquele momento protegido.
Então tudo fica em paz.


Ilustração de Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 19/8/2018



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