(caio
silveira ramos)
Eu ainda era
pequeno, muito pequeno, mas minha mãe logo percebeu que alguma coisa no meu
olhar não estava bem. Talvez eu também
até percebesse, mas como o mundo que se me apresentava era bom – e eu não tinha
outro olhar para comparar -, me pareceu que tudo deveria ser como já era. Mas para ela não: eu merecia conhecer o mundo
com todos os seus sentidos.
Ela procurou um
oftalmologista, depois outro, e outro, e outro. Foi até Campinas, mas a
resposta era a mesma: “isso é coisa de mãe. A senhora é que está enxergando
demais”.
Mas ela sabia
que não somente os médicos estavam enxergando menos do que deveriam: eu também
estava.
Foi então que
ela descobriu o jovem oftalmologista Francisco Komatsu. Já na primeira
consulta, enquanto me distraía com um coelho e uma coruja movidos à corda, ele
constatou que a visão da mãe estava certa e a do filho realmente errada. E o
que era pior: era grande o risco da vista se perder para sempre: “dificilmente
ele escapará de uma operação”. Minha mãe
perguntou se nenhum outro método poderia ser tentado antes de uma
cirurgia. Ele disse que poderíamos
experimentar algumas coisas, mas insistiu: “dificilmente ele escapará de uma
operação”.
Então começamos
a correr contra o tempo: passei a usar óculos, muitas vezes com tampões e
artifícios lúdicos para me distrair: para forçar a vista preguiçosa, tapava-se
uma das lentes com coisas curiosas - recurso que minha mãe chamava de
“televisãozinha” -, como um esparadrapo mágico, um durex invisível ou até quadrinhos de gibis da Turma da Mônica. Mas
eu devia me cansar daquela ginástica, porque várias vezes me pegaram com os
óculos virados de ponta-cabeça: eu queria deixar meu “olho melhor” livre para
ver o que o outro desperdiçava.
Além das
consultas periódicas com Dr. Komatsu, passei a frequentar também a sala de uma
técnica-ortóptica, uma moça muito doce chamada Walquíria, que me postava diante
de quadros com letras e figuras, e também de aparelhos curiosos que serviam
para exercitar meus olhos: em um deles, eu deveria, como se manejasse um
periscópio, colocar um leão desenhando em uma jaula. No outro, um soldadinho
tinha que ir para dentro do quartel. Minhas mãos tentavam dirigir aqueles
lemes, para frente e para trás, mas frequentemente as figuras iam para um lado
e a jaula ou o quartel para o outro. Eu não conseguia, não conseguia: era
traído pelos meus próprios olhos. Um dia cheguei a dizer que tinha acertado.
Mas logo contei a verdade: minha visão parecia querer o leão e o soldado livres
para sempre.
Em casa também
havia exercícios. Recortava-se de um jornal um artigo comprido. E eu, com uma
caneta hidrográfica vermelha, tinha que fazer um pontinho dentro de cada letra
que tivesse uma parte fechada, como um “a”, um “o”, um “g” ou um “p”. Outra
brincadeira interessante era colar um grande desenho (a figura do Cebolinha, por
exemplo) em uma placa de isopor fina e, com uma agulha – com a parte em que eu
segurava devidamente protegida por um esparadrapo cuidadosamente colocado por
minha mãe para não ferir meus dedos e meus olhos – furar todo o contorno da
figura: quanto mais juntos os furos melhor.
E havia também o
terrível colírio guardado na geladeira. Eu confesso que não me incomodavam as
gotas geladas caindo nos meus olhos.
O que me
intrigava, depois que minhas vistas se desembaçavam, eram as gotas que, quase
escondidas, teimavam em envidraçar os olhos de minha mãe.
***
Dr. Komatsu
endireitou-se na cadeira e me cumprimentou:
“Parabéns! Você
conseguiu!”
E virando-se
para minha mãe, completou:
“A senhora
salvou a vista dese menino.”
Depois de um ano
e meio de colírios gelados, consultas, exames, exercícios de ortóptica,
tampões, e de óculos e lentes que muitas vezes custaram os olhos da cara de
dois professores da rede pública, os meus próprios olhos escaparam de uma
operação que, no meio da década de 1970, deveria apresentar uma série de
riscos. Mas esses mesmos olhos contaram
com atalhos que facilitaram tal fuga: a ciência e a sagacidade do Dr. Komatsu,
a serena doçura de Walquíria - a especialista em Ortóptica -, o acolhimento de Dona
Rosa e de toda equipe do consultório, algumas poucas caixinhas de bonecos
“Playmobil” comprados (ainda sob o efeito embaçador de colírios para dilatar a
pupila) no “Ao Cardinali” (que maravilhosamente ficava no caminho de volta do
consultório), e principalmente os atalhos cavados pelos olhos de uma mulher que
viu o que vários médicos não viram. Que viu o que eu não conseguia ver. Que viu
que eu não poderia ver. Que viu por mim.
E mesmo com a
vista salva, várias sentenças rondaram (e ainda rondam) meus olhos:
1ª) “Nunca terás
cem por cento de visão. Aliás, estarás longe disso. A propósito, tua visão
ficará cada vez pior.”
2ª) “Deverás
sempre se sentar, enquanto na escola estiveres, bem na frente e bem no meio da
sala.”
E lá fui eu
“para o meio e para frente” em uma época em que não se associava a imagem de
meninos de óculos à descolada figura de um “nerd”. E mesmo sendo também uma época em que ninguém
usava ainda a palavra “bullying” – mas ele existia de todas as formas possíveis
– nunca sofri, em todos os meus anos na escola, qualquer tipo de gozação ou
aporrinhamento. Tive a sorte de ver
brotar amigos que me acompanharam pelas salas de aula e pelos pátios das
escolas, e que ainda, muitas vezes, vieram se sentar ao meu lado para que eu
não me sentisse sozinho.
No último ano de
colégio, quis me rebelar contra os meus olhos. Tentando fazer com que a colega
ao lado virasse seu olhar na minha direção, resolvi, durante uma semana de
aula, me sentar no meio, mas na terceira fileira. E ainda sem os óculos! Não enxerguei a lousa, nem as fórmulas das aulas
de Química. Não consegui ver (lógico), mas provavelmente a colega ao lado nem deve
ter reparado na minha mudança de lugar e de estilo. E na semana seguinte, lá
estava eu de novo, de óculos na cara e sentado na carteira do meio e da frente.
E nos caminhos
que fui trilhando (às vezes levando alguns tropeços e umas tantas topadas)
aprendi a remodelar meus outros sentidos, tentando enxergar além dos
olhos. Mas mesmo eles, ainda que mais
nebulosos a cada ano, nunca deixaram de me acompanhar nas leituras dos livros e
do mundo. E dessa forma, fui tentando
treinar meus olhos-de-pouco-enxergar para muito ver.
Assim como os
olhos que me foram emprestados na infância por uma mulher. Olhos que olharam
por mim.
E me permitiram
mirar os infinitos.
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 1º e 8/11/2015
Publicado no Jornal de Piracicaba em 1º e 8/11/2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário
INFINITE-SE: