(caio silveira
ramos)
Lá vai meu filho, do alto dos seus quatro anos, se divertir com
um tablet: o pequeno, que brinca de brincar com os números e com os
movimentos das peças do xadrez, tem na ponta dos dedos – ágeis como seus olhos
–, as coisas que gosta. Logicamente não é sua única diversão: ele
se esbalda com os amigos da escola, desenha, faz suas artes e entre turras e
ternuras com sua inseparável amiga Fezoca, tenta decifrar as mulheres. E também
joga bola, brinca com seus carrinhos, joga bola com seus carrinhos – inventou
um curioso jogo em que substitui os “botões” pelos pequenos possantes –, corre
por seus mundos imaginários, vê desenho e futebol pela TV, canta (e improvisa)
como se sua vida tivesse um fundo musical e lê seus primeiros livros de pano,
borracha e papel. Mas a tranquilidade com que esse menino,
fascinado pelo tempo revelado pelos relógios, transita entre as letras
impressas e as eletrônicas, aponta para o meu futuro inevitável.
Ler na tela do computador nunca me pareceu muito confortável,
mas com a chegada dos tablets, a
situação começa a melhorar: além de se poder aproximá-los dos olhos – uma
oftalmologista, comentando sobre minha visão, me consolou: “Deus te deu outros
dons, meu filho” –, também (e com facilidade) já é possível virar páginas em
suas telas sensíveis ao toque, colocar marcadores de leitura, localizar trechos
específicos e poupar árvores e vastos espaços em nossas estantes.
Os aparelhos exclusivos para leitura de livros digitais (os e-Readers) têm uma
vantagem sobre a maioria dos tablets
com telas de cristal líquido: eles não têm iluminação interna, o que torna
a compulsação (e porque não, a compulsão) confortável até debaixo do sol. Por
outro lado, o acesso a outras mídias por meio dos tablets convencionais ainda inibe a venda
dos e-Readers. De qualquer forma, se o número de livros eletrônicos em Língua
Portuguesa ainda é tímido (até pelo seu preço abusivo), a leitura de jornais e
revistas por meio dos tablets já ganha espaço e não assusta
quase mais ninguém. A não ser, também, pelo seu (ainda) alto preço.
“Os livros são objetos transcendentes/Mas podemos amá-los do
amor táctil/Que votamos aos maços de cigarro”: certo, você pode detestar
cigarros, maços e até o autor do verso, Caetano Veloso, mas é impossível
ignorar sua iluminação poética ao nos expor esse amor tátil (e em alguns casos
até olfativo) que o tal objeto transcendente chamado livro tem.
Minha vida é repleta de livros desde a infância: o escritório do
meu pai com suas prateleiras de metal e madeira (algumas ampliadas
artesanalmente por ele próprio) cheias de livros ao alcance da mão como cachos
de uvas; as estantes abarrotadas de Direito e fantasia que lotavam meu quarto
de estudante; as paredes do fundo da minha sala recheadas com tantos volumes
que chego a pensar que, enquanto durmo, eles se reproduzem e começam a contar
suas próprias e inéditas histórias. Porém, apesar de tantos
livros gravitando em minha vida, não sou um bibliófilo, tecnicamente falando,
isto é, um colecionador de livros raros e preciosos. Se sou um
amante de livros, meu amor é moldado muito mais pelo encanto de seus conteúdos,
de suas histórias e sons, que pelo prazer tátil, olfativo e
contemplativo. Por isso, em meu futuro inevitável eu prevejo os livros
eletrônicos sem desprazer e medo: mais valem mil histórias voando que uma rara
primeira edição na mão.
Porém, quando vejo meu filho, com as mãozinhas postas para trás,
diante das paredes do fundo da sala, com suas estantes de alto a baixo repletas
dos sonhos de seu avô, dos meus (muitas vezes morando também dentro daqueles
sonhos) e dos seus próprios sonhos (esses despretensiosamente brincando nas
prateleiras mais baixas, afinal, as uvas, para continuar alimentando, precisam
permanecer ao alcance das mãos), entendo que os livros de papel resistirão por
muito tempo. Fascinado pelos velhos livros da estante, meu filho sabe que
os sonhos de seu avô e de seu pai estão ali esperando seus olhos e seu
abraço.
Esperando que os sonhos do menino cresçam a tal ponto que não
apenas consigam engolir os sonhos mais velhos e tomá-los como seus. Mas
que possam também se multiplicar tanto, tanto, que consigam criar novos sonhos
em almas alheias.
***
Claro que estantes repletas,
organizadas ou não, ainda nos fascinam e nos convidam prazerosamente às
delícias da leitura, mas de nada adiantam prateleiras onde os livros ficam
quietos, engaiolados como aves raras: os livros precisam voar pelas almas,
invadir mentes. Sejam eletrônicos, flutuando pela rede, ou de
papel, circulando por mãos e olhos, os livros carecem viver e gerar vida.
Ainda que muitos livros caminhem para
o papel em aparências e cores cada vez mais convidativas, se obras novas vierem
em formato eletrônico, que se instalem: quero conteúdos. Se obras
antigas forem acessíveis pela rede, que sejam cada vez mais
enredadas. Não tenho pretensões de colecionador: quero o livro
consumido, lido, circulando. No transgressor “A reforma da
natureza”, o gênio de Monteiro Lobato fez sua Emília tornar os livros
comestíveis: o “livro-pão” mataria as duas fomes do ser humano e ainda
economizaria espaço. Metáfora ou não, o fato é que o Marquês de Rabicó
acaba por deglutir uma obra querida de Dona Benta, o que nos faz pensar que, se
não todas, algumas obras de papel se revestem não só do amor tátil cantado por
Caetano Veloso, mas do amor olfativo, contemplativo. Sentimental.
Assim, embora eu admita que alguns
livros saiam de minha estante e ganhem o mundo, há outros que imagino tê-los ao
alcance das mãos e dos olhos por minha vida afora. Não pela
raridade, mas pelos sentidos. São livros velhos, comprados em
sebos, cheios de histórias próprias e recheados com os rastros de seus donos
anteriores. Ou são livros já desgastados, mas presentes de infância que trazem
a aventura do enredo e o carinho de dedicatórias amorosas: um Júlio Verne com a
inscrição afetuosa do pai, lembranças das nossas viagens pelo centro de São
Paulo; um Rudyard Kipling com beijos da mãe: ponte entre a infância dela e a
minha ou simplesmente um prêmio por uma conquista perdida no tempo.
No meu aniversário, ganhei do meu
compadre Carlos Loureiro – um dos maiores e corajosos Defensores Públicos do
Brasil – uma linda antologia (“Poesia até agora“ – 1948 – Livraria José Olympio
Editora), de Carlos Drummond de Andrade. Para meu espanto, o livro traz a
assinatura original do poeta. Não sabe, talvez, meu amigo,
que o que torna o presente valioso para mim, mais que a letra do escritor, são
os próprios poemas avassaladores criados por Drummond aliados à busca
trabalhosa e delicadamente fraterna que o padrinho do meu filho deve ter feito
para me colocar tal presente nas mãos e no sorriso. O que me prende ao
livro não é sua raridade, mas a poesia plena feita por dois Carlos que têm seus
corações maiores que o mundo.
***
E dessa forma segue minha estante:
cheia de poesia e estórias (como gostava de grafar Guimarães Rosa) em cada
lombada, em cada página, em cada capa.
Até que esbarro em uma coleção antiga de
nove volumes: uma coleção de Machado de Assis, da Editora Cultrix, organizada e
anotada por Massaud Moisés. Retiro o volume que apresenta uma
coletânea de contos do Bruxo (ah! Como os bruxos desaprenderam a arte da
escrita...): passeio com a mão pela capa verde-rugosa e sinto na ponta dos
dedos a pena gravada em dourado no canto direito inferior. A paz se aproxima
e eu abro o livro: primeiro vem o aroma, o aroma inconfundível, antigo, que me
traz uma sensação que mistura serenidade e proteção. Em qualquer lugar do mundo
conseguiria distinguir aquele cheiro. Em qualquer momento da
vida acho que serei capaz de recriá-lo na memória. Na palma da mão,
as páginas; no fundo dos olhos, as letras cheias de sentidos. Vou para o
começo: a assinatura de meu pai e a data em que leu o livro pela primeira vez
quando morava em São Carlos. E logo abaixo, a dedicatória feita anos depois:
“para o Caio em Piracicaba – 07/04/83 (12 anos)”. Uma dedicatória
simples, séria, diferente das cheias de graça que ele costumava fazer.
Mas é que, além de ter sido repetida nos nove volumes, ela representava um rito
de passagem: naquele momento, me dando de presente sua amada e antiga coleção
de Machado, meu pai me ofertava a chave da maturidade da vida e das letras: eu
agora podia ler o mundo todo, sem fronteiras ou censuras.
Em outros volumes da coleção,
reencontro a letra miúda de meu pai nas margens das páginas: comentários,
anotações de frases, pequenos caminhos que gosto de percorrer como se
conversasse com ele novamente. Mas essa lembrança de conversa, de vozes,
me faz voltar aos contos. Lembro-me da tarde de férias em que, deitados em sua
cama, ele me leu “Miss Dollar”, “A Cartomante”, “Uns braços” e “Conto de
escola”. Antes de cada leitura, ele me chamava a atenção para beleza
daquilo, das construções dos personagens, das frases, dos sentidos.
Depois lia, lia: sua voz grave acariciava o texto e o meu espanto de menino
encantado.
É curioso que nos momentos de
angústia, tristeza ou medo eu procure aquela coleção para me pacificar.
Intriga-me que a dita ironia pessimista de Machado de Assis tenha o dom de me
trazer à tona. Nas mãos sinto a capa verde-rugosa, a pena gravada em
dourado, as páginas amareladas. A letra miúda de meu pai. A dedicatória dele
esperando que eu um dia faça idêntica inscrição para meu filho naqueles mesmos
volumes: novas pontes. Vou buscar o cheiro, o cheiro eterno.
O cheiro das páginas, o cheiro do tempo, o cheiro das palavras: vou buscar, no
talento do bruxo, a beleza dos sentidos, e esses sentidos me fazem voltar para
casa seguro. Começo a ler e ouço o que ninguém em nossos dias pode
ouvir: a voz de Machado.
A voz de Machado é a voz do meu pai
naquela tarde de férias. Ele me lê um conto, dois, um romance inteiro.
Até que, novamente sereno, eu
adormeço em seu ombro.
Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 9/11/2012 e 23/11/2012
Publicado no Jornal de Piracicaba em 9/11/2012 e 23/11/2012
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