(caio silveira ramos)
Dez de janeiro é dia de reverenciar a alegria. A
alegria da união infinita entre seu Miro e dona Janda. E a alegria do
nascimento de uma mulher que além dos tempos me estende a mão e me empresta sua
força assim que meu pensamento se volta para ela (embora sua força esteja em
mim até quando me esqueço de quem eu mesmo sou).
Nascida em São Pedro e batizada “Adelina” (mas para mim, para o
mundo, para sempre, Délia, dona Délia, Donadélia), ela era filha de italianos,
o que moldou sua maneira de enxergar o mundo. Ou o seu pequeno mundo: privada
da instrução formal, ela desconhecia o sentido das letras escritas e da
largueza do planeta. Para ela, a Itália deveria ser ali pertinho de São Pedro,
um sítio ideal onde adormeciam suas raízes e as dores mais sentidas davam lugar
à beleza plena. Se algo era bom ou bonito só poderia ser italiano:
o belo jardim da revista, o céu mais azul no quadro, o galã da TV? Todos
italianos, tinham que ser.
Da infância sofrida, dura, gostava de se lembrar do pão com
banana, do trabalho na terra, de alguma outra história já quase
esquecida. No mais, sua vida era ali, no presente, nos filhos e nas águas
que o tempo ia minando nos seus olhos. Dores, dores fundas que ela esquecia
trabalhando, trabalhando muito, sempre incansável e destemida.
Ela lavava roupa e assim entrou na nossa vida. Depois foi
trabalhar numa casa como empregada, mas sempre recebia nossa visita no
sitiozinho em que morava com o segundo marido. Viúva de novo, já beirando
os setenta anos e com águas doloridas inundando seus olhos, voltou a trabalhar
lá em casa, primeiro dois, três dias. Depois ficou de vez: queria, precisava de
“lavoro” para o corpo, para mente. Para as águas dos olhos adormecerem um
tanto.
Mas se a dor era muita e ela a deixava fugir de quando em vez
por trás dos óculos de aros escuros e quadrados, no dia a dia o que eu via era
o sorriso de dentes perdidos e (talvez até por isso) sem freios ou
mágoas. Para mim ela reservava aquele sorriso e sua força. E eu me
encantava com aquela mulher tão forte.
Não muito alta, de cabelos brancos curtos e encaracolados, ela
tinha braços poderosos forjados no tanque, no ferro de passar e na polenta
perfeita, mexida e remexida sem tréguas com a colher de pau na panela de ferro
grande. Os frangos entregavam candidamente os pescoços ao seu laço
vermelho, no galinheiro pequeno. O chão de madeira da sala se
transformava em espelho depois da enceradeira vigorosa. Sua força era tamanha e
me impressionava tanto, que numa redação do primário revelei para meu próprio
espanto que ela, do alto dos seus setenta e tantos anos, pulava uma janela de
casa para limpar uma área de ventilação, cuja porta tinha sido obstruída por um
antigo guarda-roupa.
Talvez, entre aquela porta trancada e aquele guarda-roupa, ela
escondesse todas as suas dores para que eu não visse suas águas tantas.
Para mim ela só reservava a alegria.
***
Mas nem todas as dores do mundo foram capazes de diminuir a
força daquela mulher: lavadeira (dessas que equilibravam pesadas trouxas de
roupa na cabeça com a naturalidade de quem assobia distraído), passadeira,
faxineira, cozinheira (sempre e em tudo de mão-cheia),
mãe-valente-coração-de-leão, ela fazia jus ao apelido “Délia” (afinal, assim
também era chamada a destemida deusa grega Ártemis).
Isso, porém, não tem a mínima importância, porque dona Délia não
se preocupava muito com gregos e troianos (e talvez nem soubesse que um dia
tivessem existido). Para ela, tudo que era querido só podia ser
“oriundi”, apenas com algumas exceções: mesmo que eu não tivesse um pingo de
sangue italiano na veia, comigo ela se fazia “nonna” carinhosa, de fazer pipoca
e bolinho de chuva mesmo nas tarde de sol. Talvez ela atribuísse a
mim certa italianidade por eu ser, como ela dizia, “palmerista” ou por gostar
de macarrão. Ou quem sabe, previsse o futuro e já soubesse que meu filho teria,
além do meu, o sobrenome Laurenti.
E mesmo que a “nonna” Délia escondesse do meu olhar o olhar de
suas águas tormentosas, eu sabia secretamente de suas dores. As dores da
infância difícil, da dupla viuvez, das ingratidões alheias e das infinitas
preocupações com filhos, netos e bisnetos. A dor de amar demais
(coincidentemente ou biblicamente?) o filho mais pródigo, que ela dizia ter sido
na infância tão parecido comigo. E lá ia ela trabalhar, trabalhar
incansavelmente para que na água do tanque as suas águas escoassem junto.
Um dia apareceu em casa sua neta Márcia, filha da filha
Adelaide: ela vinha para ajudar a vó que não queria parar de trabalhar de jeito
nenhum. Quase da mesma idade da minha irmã Ruth, Márcia era tão bonita
quanto uma manhã de abril e, feito a “nonna”, reservava para mim a doçura maior
do seu sorriso (além de uma sacrificada parte do seu sustento que magicamente
ela transformava em carrinhos de ferro ou discos de histórias musicadas).
Tempos depois, Márcia se foi, me deixando sem sua beleza e seu
sorriso: ela precisava iluminar de abril o olhar de seus próprios
filhos. Não demorou muito, minha “nonna” também foi se aninhar na
casa de sua filha Virginia – que tal como dona Délia se fez
mãe-valente-coração-de-leão – e no colo dos netos de sangue. A
idade já era muita, as dores do corpo maiores e as da alma já pesavam demais no
olhar cansado que começava a perder a vontade de enxergar o mundo.
Principalmente depois que o filho Sebastião se foi para sempre.
E na varanda da casa de Virginia, ela passava as tardes com os
olhos voltados para rua, mas já quase nada via. Da última vez que a
encontrei, me descobriu pela voz e pelo abraço, e me revelou todas as suas
águas: eu já estava grande, quase “doutor”, não havia mais motivo para ela
esconder de mim suas dores e as dores do mundo. Talvez quisesse que seus rios
abrigassem os meus.
Pouco depois ela se foi, inundando todo um mirante com suas
águas.
As águas
dela, Délia.
As águas
dela, nossas.
Ilustração: Erasmo Spadotto –
cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba
em 10 e 24/1/2014
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