sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Alma de passarinho

(caio silveira ramos)

Quando nasci, ele já estava lá.    Deve ter sido presente da nossa querida Ledinha para minhas irmãs: consolação ou preparo para o nascimento do caçula? De qualquer forma, antes que eu me desse por mim, já iluminavam o sol da manhã todos os cantos do Papa-capim-coleirinha.
Meus pais foram os que mais se apegaram ao bichinho, que mesmo com os infinitos nomes imaginados pelas crianças, acabou chamado só assim: “o Passarinho”.  Ou “Tiquinho”, “Tico-tico”, “Papa-Capim”, “Coleirinha”. Ou qualquer nome carinhoso que aparecesse na hora em que meus pais cuidavam dele. Ou conversavam com ele.  E ele sempre respondia.
Como em casa a palavra “liberdade” era cultivada no quintal e na sala, foram várias as tentativas de deixar a gaiola aberta.  Alguém dizia: “o bichinho está acostumado, não vai sobreviver sozinho lá fora”.   Mas mesmo assim a gente insistia: alguém amarrava um pedaço de pano para que a mola da porta não fechasse sozinha e ficava espiando, torcendo para que o passarinho desse um passeio e voltasse logo.   No entanto, ele permanecia lá, olhando pro mundão lá fora sem sair da gaiola.
E assim ele foi ficando.  De manhã bem cedo, ao ouvir os primeiros pios do Passarinho, enquanto fervia a água do café, meu pai tirava a gaiola do corredor em frente ao banheiro e a apoiava na laje da casinha do bujão de gás. Lá, ele retirava devagarinho o pano (talvez um velho robe vermelho com detalhes em xadrez) que protegia o Passarinho da noite, do frio e da luz.  Depois, puxava a tábua da base de arame da gaiola, raspava toda sujeira, peneirava areia fina sobre a madeira, nivelava tudo com cuidado e, por fim, encaixava a tábua de volta.  Limpava o bebedouro e a banheirinha, e devolvia os dois com água fresca.   Então, ajeitava o poleiro mais alto – um galho macio esculpido com canivete –, retirava a gavetinha do alpiste, soprava amorosamente a palhinha seca e, se esvaziasse muito, pegava a velha lata de bolacha (que agora abrigava o alpiste) e enchia a gaveta até a boca.  E todo feliz, o Passarinho entoava um dos seus cantos. Pois o Coleirinha era assim: retirava do bico, infinitos cantos ensolarados.  E havia um cantar no banho, um cantar depois do bebedouro, um cantar no passear na areia, um cantar entre um alpiste e outro.
Nos finais de semana e feriados com sol, minha mãe prendia nos poleiros raminhos de capim em forma de ípsilon – que o Passarinho comia semente por semente, segurando com a patinha –, e meu pai pendurava a gaiola em um galho alto do pé de caqui.  No meio das folhas, o Papa-capim cantava outros cantos, chamando a natureza toda pra conversar com ele.
Foi então que apareceu um gato fora de si.
Mas espere um pouco mais: o Passarinho agora está inventando um canto novo.
***
Nos dias de sol doce, meu pai pendurava a gaiolinha no alto do caquizeiro.   E lá, o Papa-capim se refestelava e inventava vinte cantos novos. Todos eles feiticeiros.
E deve ter sido feitiço o que atraiu um gato.  Pois ouvimos o barulhão no quintal e fomos dar com a) a gaiola estraçalhada ao lado do pé de caqui; b) um gato fora de si saltando por cima do muro – nunca soubemos se o surto do gatuno era fruto de susto ou de dó pela perda da iguaria –, e c) o Passarinho arrepiado, paralisado de medo, com uma das perninhas quebrada, presa apenas por um fio quase invisível.
Meu pai abriu os arames da gaiola conversando, conversando baixinho, abrigando o Passarinho na concha das mãos.  E roçando a ponta do dedo na penugem da cabeça do Papa-capim, conseguiu fechar aqueles olhos aflitos e desacelerou o coração do bichinho.   Em volta, as crianças prendiam a respiração.  Só meu pai sussurrava.   E sussurrando pediu que um de nós trouxesse o esparadrapo e a tesoura.    Minha mãe recebeu o Passarinho na palma da mão, acarinhando, “calma, Tiquinho, calma”. Meu pai colocou a perninha no lugar. E com a delicadeza de um sonho bom, enrolou o esparadrapo.
O tempo caminhava desensolarado, com saudades do Passarinho, que continuava assustado, dormindo na caminha improvisada numa caixa de sapato.  Minha mãe dava, na ponta do dedo, alpiste por alpiste, gota por gota d’água.  Carinho por carinho.   Então, na gaiola nova, ele foi ensaiando uns passos medrosos, escorregando aqui e ali, se desmedando a cada dia, até que voou para o poleiro mais alto e soltou um canto novo.  Meu pai o pegou nas mãos de novo e milímetro por milímetro foi despregando o esparadrapo.  Foram longos minutos de silêncio na casa até que o milagre se fez: a perna se revelou toda. Inteira. Livre.
O tempo também se libertou e deu pra voar como o Passarinho. Parentes e vizinhos encantados com os cantares do bicho, deram pra lhe arranjar companhias.  E vieram canários, pintassilgos, bicos-de-lacre, periquitos e até um coleiro idêntico na figura, só que mal-humorado nos atos.  Mas só o velho Papa-capim ficou: a cabeça com algumas penugens embranquecidas, já passando dos admiráveis vinte anos. 
E tanto meu pai insistiu em abrir a gaiola, que ele começou a dar seus passeios curtos: saía, espiava, voltava logo.  Até que um dia demorou, passou a noite fora.  Nos consolamos com sua liberdade, mas na verdade estávamos desencantados.   Só no outro dia ele apareceu, entrou na gaiola aberta meio desconfiado e de lá não saiu nunca mais.   Logo depois voltou a assobiar contente. Devia contar suas proezas.
Em um final de semana de verão, viajei com meu pai para conhecer o Rio de Janeiro.  Não sei se por influência das aves livres de lá, quando voltamos, o Passarinho tinha morrido.   Minha mãe o encontrou deitado no chão da gaiola na manhã seguinte a nossa partida, mas só contou quando voltamos: não queria entristecer nossa viagem.   Meu pai quando soube, anuviou-se como eu quase nunca tinha visto: sentou-se num velho banco da cozinha, com os braços apoiados sobre as pernas entreabertas, os dedos entrelaçados, a cabeça baixa. E só dizia mansinho, “que pena, que pena”.
Quatro meses depois, meu pai também se foi.  Sua alma de passarinho foi ensinar a liberdade para o Papa-capim-coleirinha. Em troca, ele deve ter aprendido a voar e a inventar mil cantos novos.
Com a delicadeza de um sonho bom.


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 13 e 27/9/2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário

INFINITE-SE: