sexta-feira, 13 de julho de 2018

Cheguei numa Sexta-Feira Santa


(caio silveira ramos)

Cheguei numa Sexta-Feira Santa.
Não ao mundo, que isso foi na Quarta-Feira.
Cheguei em casa (“em” mesmo, que chegar “a casa” seria muito pouco acolhedor) numa Sexta-Feira Santa.  A velha casa. A casa da mãe, do pai, das irmãs, da infância. Cheguei em casa que, no fundo, no fundo, é chegar ao mundo também.
Dizem que estavam as três meninas sentadas na escada de madeiras largas do saguão da entrada, lugar do mais alto pé direito da casa. Ali, entre a porta da rua e a do corredor que dá para a sala.
As três meninas, oito, seis e quatro anos.  As três irmãs sentadas no mesmo degrau, uma ao lado da outra.  Quel, a mais nova, devia estar com uma blusinha de manga comprida e uma calça confortável. Ruthinha, a do meio, de vestidinho branco de algodão bem macio. Teca, a mais velha, de blusa de frio com decote em “v” e calça de brim azul. As três quietas e tentando enxergar, através dos quadrados de vidro trabalhado da porta que dava para a rua, se alguém estava chegando.  Se alguém estava passando.  O trá-trá-trá do caminhão de lixo e o fluplam-flupam-flupam dos lixeiros em correria, jogando o conteúdo das latas quadradas de óleo no tal caminhão antes de devolvê-las às calçadas? O lefe-lefe da correspondência passada por baixo da porta pelo carteiro de boné amarelo-claro? O poque-poque do cavalinho da carroça do seu João Verdureiro? O troque-troque da roda do carrinho do seu Doceiro? “Não, não, Quel, hoje é feriado. Não tem lixeiro, carteiro, verdureiro, nem doceiro.”
“Eu queria só seu Doceiro. Tô com fome. Será que vai demorar ainda?”
“Olha, olha, acho que estão chegando... Não, foi só alguém andando até o ponto de ônibus”.
“Mas hoje não é feriado? Tem ônibus?”
“Claro que tem.”
“Tô com fome.”
“Eu quero conhecer logo meu irmãozinho...”
“Vocês querem fazer silêncio? Não pode ficar falando! Hoje é dia que Jesus morreu!”
“Jesus morreu hoje?”
“Não foi bem hoje, mas é como se fosse...”
“Ele morreu, então? Ah, não!”
“Parem de choramingar. Vocês são muito crianças mesmo! Não entendem nada.”
“E você não é criança também?”
“Olha, olha, olha, acho que chegaram...”
Mas era só mais alguém passando.
Às vezes penso que aquele momento ainda está ali: elas esperando, esperando até hoje, sentadinhas, fazendo psiu com os dedinhos indicadores na boca: silêncio porque é o dia que Jesus morreu.
Não me vejo chegando, a casa desperta, as três em volta da mãe espiando o bebê no colo e dizendo palavras enternuradas. Vejo-as ali na escada esperando.  Ou depois: as lembranças palpáveis daquele dia ou dos seguintes: o berço montado novamente com seu colchãozinho de palha. A pulseira de identificação do hospital. A cesta de plástico verde com bolinhas brancas para guardar produtos de higiene. Um sem fim de babadores coloridos dados por alunas, vizinhas e amigas da mãe.  Um quadrinho pintado por tia Clemência com um anjo alto abençoando um bebê loiro.
Não me vejo atravessando a porta, as meninas se encantando.
Mas disseram e eu acredito:
Cheguei numa Sexta-Feira da Paixão.










Ilustração de Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 20/5/2018

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