(caio silveira
ramos)
Ah,
todo o cais é uma saudade de pedra!
(Ode
Marítima - Álvaro de Campos)
Passeando por esses mares exaustivamente navegados da internet, me deparei com um
fórum de discussão (provavelmente sobre questões ambientais) em que meu
caríssimo primo Roberto, ao fazer um comentário, se apresenta como “afilhado e
sobrinho preferido da Maria da Glória Silveira Mello”.
Logicamente que, se afilhado de fato é, 99% dos familiares – a não unanimidade
serve apenas para confirmar preventivamente a máxima rodriguiana –, discordam
da segunda parte da apresentação, incluído aí, provavelmente, o próprio
Roberto, amigo que é de gaiatices.
Não é que a modéstia me impeça de dizer o que 99% dos familiares
pensam de fato a respeito, mas a verdade é que acredito realmente que a alma de
Dona Maria da Glória vai muito além das preferências pessoais: se filhos não
teve, dezenas e dezenas buscaram voluntariamente se abrigar em seu coração, que
só pode ser reconhecido e nomeado como materno. E nele, todos foram
acolhidos e aninhados.
Sobrinhos, parentes, amigos, alunos sabem que haverá lugar para
quem mais chegar. E muitos ainda virão para se aconchegar na sua alma, feito
quem se esquece numa rede em dia deleitoso.
Se para os sobrinhos mais velhos, filhos dos irmãos João Batista
e Lia, ela é Maria ou Glória, para nós, sobrinhos mais novos – ou seja, os
filhos das irmãs Jandyra e Josette –, ela é simplesmente “Tita”, mistura doce
de tia, maria e todas as suas glórias. Quem mais uma vez se arvora em
deter o título de criador do apelido é o primo Roberto, mas como ele é o mais
velho dos sobrinhos mais novos, essa criação fica claramente sob suspeita,
ainda mais porque ele, talvez para não se confundir com os pequenos, passou a
chamá-la também de Maria ou Glória.
Há alguns anos fui atrás da verdadeira história do apelido
carinhoso: perambulando por uma das regiões mais nostálgicas da cidade, com
seus moradores de ontem, seu sotaque eterno, seus cheiros morando no final do
século XIX e suas ruas que se derramam feito cachoeiras à procura do rio,
encontrei sentado em um banco de jardim, próximo à Igreja São Benedito, seu
Nozinho Constâncio, piracicabano antigo, desses que ainda usam chapéu de feltro
e sorriso permanente na boca. Eis a versão que seu Nozinho me
contou numa tarde, como ele próprio disse, “com um sor de torrá a mamona”:
“Dona Grorinha? Conheci quando era ainda gente descarsa, já
coaqueles zóio verde que despois fizero muito moço perdê a cabeça. Mas isso foi
despois. Antes, eles morava na Prudente, seu Sirvio, dona Jandyra e a criançada
toda. Ocê é fio da Jandyrinha, não? Desde menina, que doçura de moça! Memo nome
da mãe, mema feição, memo coração. Além de tocá piano que nem um anjo. Conheci,
conheci todos eles: João Batista, estoriento que só ele. Lia, das mais linda
moça que passou por aqui. Sirvinho, otro parecido coa mãe, coração de oro,
alegre, amigo de todo mundo, sinto uma farta dele... Jandyrinha, que já falei,
mas nunca é demais, inté hoje me ajuda. Josette, espírito bão, alegre, dissero
que é professora de mão cheia. E a Grorinha, artera, mas boa menina, outra que
me ajuda tamem. Hoje tá essa moça valente, briguenta pelas coisa certa. Chamá
de Tita? Fui eu que chamei da primeira vez. Tinha na Rua 13, uma costureira,
verdadeira artista que fazia as ropa pras francesa rica e tudo mais. Chamava
dona Zinha. Despois seu Sirvio e dona Janda foram morá no lado dela, mas antes,
bem antes, na época da rua Prudente, já se conheciam. A menina Grorinha adorava
ver dona Zinha co as costura dela. E dona Zinha tinha uma irmã, dona Tica. Uma
vez, acho que eu tavo meio fora dos cabo, chamei dona Tica de dona Tita, e
Grorinha, que tava ali perto, riu gostoso, de virá cambota no chão. Comecei
então, só pra ver aquele sorrisão bonito ensolará pra mim, chamá a menina de
Tita. Quando ela virou Diretora de escola em Analândia e a sobrinhada começou
com Tita prá cá, Tita prá lá, achei que era farta de respeito e comecei a chamá
de “dona Grorinha”. Fica mais nas cerimônia. O quê? O fio da Josette fala que
foi ele que inventou o apelido? Brincaião que nem a mãe. Bom, já que tá que
fique. Num quero pagá língua”.
Quem achar que essa história é gaiatice minha, pode confirmar,
ali, no jardinzinho perto da Igreja São Benedito. Não, não, seu
Nozinho morreu, coitado, foi no começo deste ano.
Mas o banco em que nós conversamos ainda deve estar por lá,
debaixo de um sor de torrá a mamona.
***
Agora preciso mergulhar no rio, me confundir com as pedras e
sangrar um tanto a alma.
Nelson Rodrigues dizia que sem paixão não se pode chupar nem um
Chicabon, nem bater um arremesso lateral no futebol. Pois Maria da Glória não
amarraria nem os cadarços de um par de tênis sem paixão.
Com paixão ela construiu sua vida de educadora, sempre
preocupada com o ensino das escolas que dirigiu em diversos municípios. Aliás,
ouvi pela primeira vez a expressão “meio ambiente” (e seu profundo sentido),
quando ela foi diretora da Escola Gustavo Teixeira, em São Pedro, onde, entre milhões
de ideias e atos, chegou até a desenhar o logotipo do uniforme das crianças.
Da escola, ela partiu para o mundo: com a consciência ecológica
adquirida e imediatamente ofertada a professores e alunos, Dona Glória passou a
estudar com avidez e a utilizar, novamente com paixão, todo seu conhecimento
para além das hortas e lixos reciclados da escola. Em Piracicaba,
esteve à frente de entidades ligadas ao meio ambiente e ao direito ambiental,
combatendo a degradação dos rios piracicabanos e a ameaça de
lixões. Também foi com paixão que lutou pela preservação do
patrimônio histórico e artístico da cidade até se tornar verdadeira caçadora do
acervo do Museu Histórico e Pedagógico Prudente de Moraes. Barbara
Graner, militante pelos Direitos Humanos, transgressora das imposições dos
preconceitos e decifradora da poesia nascente nos marulhos, estudou na Escola
Gustavo Teixeira nos tempos da direção de Maria da Glória e pode afirmar: “ela
sempre foi uma mulher à frente de seu tempo”.
Esse “estar à frente do seu tempo” me faz lembrar um mito que
ronda dona Glória: o de que ela tem o condão de antever eventos futuros. Lenda
ou não, o fato é que ela busca descobrir-se, entender-se e, mais uma vez,
sempre de forma apaixonada. Polêmicas à
parte, quando estou com a alma incomodada ou o corpo doente, ainda que para
ninguém tenha contado, quase sempre recebo um telefonema: é ela perguntando se
tudo está bem.
Mas para entender sua paixão mais profunda é preciso voltar os
olhos deste Mirante para trás: desde as partidas de meus avós, dona Maria da
Glória se tornou a brava guardiã de seus livros, objetos e móveis. Ainda
nos tempos da deliciosa casa na rua Santa Cruz – no quarteirão mais amado da
cidade, mesmo que a tal casa tenha sido demolida para dar lugar a um lava
rápido –, um desses móveis sempre se apresentou para mim envolto em profundos
mistérios. Trata-se de uma penteadeira antiga, dessas com um grande
espelho no centro, em cuja moldura, presos por dobradiças, se encontram dois
outros espelhos menores, feito duas orelhas, uma de cada lado (como, aliás, as
orelhas devem se comportar). Quem se senta diante da penteadeira, ao
movimentar os espelhos laterais até ficarem frente a frente, pode ver multiplicada
infinitamente sua imagem, tanto de um lado, quanto do
outro. Desde pequeno sou avesso a vaidades, mas já
sentindo a necessidade de mirar infinitos, brincava com os espelhos daquele
móvel, talvez para enxergar além da minha alma.
Vasculhando aqueles abismos de perigosos universos paralelos, se
pode encontrar agora o céu de Lisboa espelhado, tal como ele o é também pelo
mar português de um outro Pessoa. Sob aquele céu, rodeada por
saltimbancos festivos, segue sentada em uma carroça de ouro, feito rainha, dona
Maria da Glória, de coroa de flores na cabeça, olhos fechados e braços
estendidos para o alto. A paixão que a envolve não se vê, é apenas
poesia falada, não concreta. É poesia feita de doce muralha, que não prende,
nada impede, apenas se desmancha pelo ar, rodopia, flutua e pousa com
delicadeza no peito cheio de Glória.
Infinitamente.
Apaixonadamente.
Ilustração:
Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em
14/9/12 e 21/9/2012
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuito legal querido amigo.
ResponderExcluirEspero que veicule as poesias que li há mais de 20 anos e ainda me tocam.
Bjs.
André Cardoso