sábado, 20 de setembro de 2014

Glória

(caio silveira ramos)
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
(Ode Marítima - Álvaro de Campos) 

Passeando por esses mares exaustivamente navegados da internet, me deparei com um fórum de discussão (provavelmente sobre questões ambientais) em que meu caríssimo primo Roberto, ao fazer um comentário, se apresenta como “afilhado e sobrinho preferido da Maria da Glória Silveira Mello”.    Logicamente que, se afilhado de fato é, 99% dos familiares – a não unanimidade serve apenas para confirmar preventivamente a máxima rodriguiana –, discordam da segunda parte da apresentação, incluído aí, provavelmente, o próprio Roberto, amigo que é de gaiatices.  
Não é que a modéstia me impeça de dizer o que 99% dos familiares pensam de fato a respeito, mas a verdade é que acredito realmente que a alma de Dona Maria da Glória vai muito além das preferências pessoais: se filhos não teve, dezenas e dezenas buscaram voluntariamente se abrigar em seu coração, que só pode ser reconhecido e nomeado como materno.  E nele, todos foram acolhidos e aninhados.
Sobrinhos, parentes, amigos, alunos sabem que haverá lugar para quem mais chegar. E muitos ainda virão para se aconchegar na sua alma, feito quem se esquece numa rede em dia deleitoso.
Se para os sobrinhos mais velhos, filhos dos irmãos João Batista e Lia, ela é Maria ou Glória, para nós, sobrinhos mais novos – ou seja, os filhos das irmãs Jandyra e Josette –, ela é simplesmente “Tita”, mistura doce de tia, maria e todas as suas glórias.  Quem mais uma vez se arvora em deter o título de criador do apelido é o primo Roberto, mas como ele é o mais velho dos sobrinhos mais novos, essa criação fica claramente sob suspeita, ainda mais porque ele, talvez para não se confundir com os pequenos, passou a chamá-la também de Maria ou Glória.
Há alguns anos fui atrás da verdadeira história do apelido carinhoso: perambulando por uma das regiões mais nostálgicas da cidade, com seus moradores de ontem, seu sotaque eterno, seus cheiros morando no final do século XIX e suas ruas que se derramam feito cachoeiras à procura do rio, encontrei sentado em um banco de jardim, próximo à Igreja São Benedito, seu Nozinho Constâncio, piracicabano antigo, desses que ainda usam chapéu de feltro e sorriso permanente na boca.   Eis a versão que seu Nozinho me contou numa tarde, como ele próprio disse, “com um sor de torrá a mamona”:
“Dona Grorinha? Conheci quando era ainda gente descarsa, já coaqueles zóio verde que despois fizero muito moço perdê a cabeça. Mas isso foi despois. Antes, eles morava na Prudente, seu Sirvio, dona Jandyra e a criançada toda. Ocê é fio da Jandyrinha, não? Desde menina, que doçura de moça! Memo nome da mãe, mema feição, memo coração. Além de tocá piano que nem um anjo. Conheci, conheci todos eles: João Batista, estoriento que só ele. Lia, das mais linda moça que passou por aqui. Sirvinho, otro parecido coa mãe, coração de oro, alegre, amigo de todo mundo, sinto uma farta dele... Jandyrinha, que já falei, mas nunca é demais, inté hoje me ajuda. Josette, espírito bão, alegre, dissero que é professora de mão cheia. E a Grorinha, artera, mas boa menina, outra que me ajuda tamem. Hoje tá essa moça valente, briguenta pelas coisa certa. Chamá de Tita? Fui eu que chamei da primeira vez. Tinha na Rua 13, uma costureira, verdadeira artista que fazia as ropa pras francesa rica e tudo mais. Chamava dona Zinha. Despois seu Sirvio e dona Janda foram morá no lado dela, mas antes, bem antes, na época da rua Prudente, já se conheciam. A menina Grorinha adorava ver dona Zinha co as costura dela. E dona Zinha tinha uma irmã, dona Tica. Uma vez, acho que eu tavo meio fora dos cabo, chamei dona Tica de dona Tita, e Grorinha, que tava ali perto, riu gostoso, de virá cambota no chão. Comecei então, só pra ver aquele sorrisão bonito ensolará pra mim, chamá a menina de Tita. Quando ela virou Diretora de escola em Analândia e a sobrinhada começou com Tita prá cá, Tita prá lá, achei que era farta de respeito e comecei a chamá de “dona Grorinha”. Fica mais nas cerimônia. O quê? O fio da Josette fala que foi ele que inventou o apelido? Brincaião que nem a mãe. Bom, já que tá que fique. Num quero pagá língua”.
Quem achar que essa história é gaiatice minha, pode confirmar, ali, no jardinzinho perto da Igreja São Benedito.   Não, não, seu Nozinho morreu, coitado, foi no começo deste ano.
Mas o banco em que nós conversamos ainda deve estar por lá, debaixo de um sor de torrá a mamona.

                                                            ***


Agora preciso mergulhar no rio, me confundir com as pedras e sangrar um tanto a alma.
Nelson Rodrigues dizia que sem paixão não se pode chupar nem um Chicabon, nem bater um arremesso lateral no futebol. Pois Maria da Glória não amarraria nem os cadarços de um par de tênis sem paixão.
Com paixão ela construiu sua vida de educadora, sempre preocupada com o ensino das escolas que dirigiu em diversos municípios. Aliás, ouvi pela primeira vez a expressão “meio ambiente” (e seu profundo sentido), quando ela foi diretora da Escola Gustavo Teixeira, em São Pedro, onde, entre milhões de ideias e atos, chegou até a desenhar o logotipo do uniforme das crianças.
Da escola, ela partiu para o mundo: com a consciência ecológica adquirida e imediatamente ofertada a professores e alunos, Dona Glória passou a estudar com avidez e a utilizar, novamente com paixão, todo seu conhecimento para além das hortas e lixos reciclados da escola.   Em Piracicaba, esteve à frente de entidades ligadas ao meio ambiente e ao direito ambiental, combatendo a degradação dos rios piracicabanos e a ameaça de lixões.   Também foi com paixão que lutou pela preservação do patrimônio histórico e artístico da cidade até se tornar verdadeira caçadora do acervo do Museu Histórico e Pedagógico Prudente de Moraes.   Barbara Graner, militante pelos Direitos Humanos, transgressora das imposições dos preconceitos e decifradora da poesia nascente nos marulhos, estudou na Escola Gustavo Teixeira nos tempos da direção de Maria da Glória e pode afirmar: “ela sempre foi uma mulher à frente de seu tempo”.
Esse “estar à frente do seu tempo” me faz lembrar um mito que ronda dona Glória: o de que ela tem o condão de antever eventos futuros. Lenda ou não, o fato é que ela busca descobrir-se, entender-se e, mais uma vez, sempre de forma apaixonada.  Polêmicas à parte, quando estou com a alma incomodada ou o corpo doente, ainda que para ninguém tenha contado, quase sempre recebo um telefonema: é ela perguntando se tudo está bem.
Mas para entender sua paixão mais profunda é preciso voltar os olhos deste Mirante para trás: desde as partidas de meus avós, dona Maria da Glória se tornou a brava guardiã de seus livros, objetos e móveis.  Ainda nos tempos da deliciosa casa na rua Santa Cruz – no quarteirão mais amado da cidade, mesmo que a tal casa tenha sido demolida para dar lugar a um lava rápido –, um desses móveis sempre se apresentou para mim envolto em profundos mistérios.   Trata-se de uma penteadeira antiga, dessas com um grande espelho no centro, em cuja moldura, presos por dobradiças, se encontram dois outros espelhos menores, feito duas orelhas, uma de cada lado (como, aliás, as orelhas devem se comportar).  Quem se senta diante da penteadeira, ao movimentar os espelhos laterais até ficarem frente a frente, pode ver multiplicada infinitamente sua imagem, tanto de um lado, quanto do outro.     Desde pequeno sou avesso a vaidades, mas já sentindo a necessidade de mirar infinitos, brincava com os espelhos daquele móvel, talvez para enxergar além da minha alma.  
Vasculhando aqueles abismos de perigosos universos paralelos, se pode encontrar agora o céu de Lisboa espelhado, tal como ele o é também pelo mar português de um outro Pessoa.   Sob aquele céu, rodeada por saltimbancos festivos, segue sentada em uma carroça de ouro, feito rainha, dona Maria da Glória, de coroa de flores na cabeça, olhos fechados e braços estendidos para o alto.   A paixão que a envolve não se vê, é apenas poesia falada, não concreta. É poesia feita de doce muralha, que não prende, nada impede, apenas se desmancha pelo ar, rodopia, flutua e pousa com delicadeza no peito cheio de Glória.
Infinitamente.
Apaixonadamente.

                                   Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
                                             Publicado no Jornal de Piracicaba em 14/9/12 e 21/9/2012

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Muito legal querido amigo.
    Espero que veicule as poesias que li há mais de 20 anos e ainda me tocam.
    Bjs.
    André Cardoso

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