(caio
silveira ramos)
O músico Fernando delPapa foi
para França aos dezenove anos com a cara, a coragem, o cavaquinho e o
talento. Depois de mais de uma década na
Europa, “Fernando do Cavaco” assumiu o sobrenome (embora artisticamente
modificado) e lançou neste segundo semestre de 2016 seu primeiro CD, “Eu
também”, um dos melhores discos dos últimos anos. Suas letras e melodias são tão inspiradas,
que o próprio Chico Buarque gravou um vídeo elogiando Fernando e seu CD. A palhetada do Fernando é tão espetacular que
o disco é ao mesmo tempo brasileiríssimo e universal.
Conheci o Fernando numa roda de
samba antes de sua viagem para Paris. Naquela época, sua destreza com o
instrumento, influenciada por Luciana Rabello, já mostrava “o que pode um
cavaquinho”. Além da paixão pelo samba,
eu, ele e seu pai (um fabuloso cantor chamado Sérgio Del Papa) tínhamos pelo
menos mais uma coisa em comum: nós três, assim como tantos outros, éramos
discípulos de João Borba. O que nos
ligava a esse grande artista piracicabano não era apenas o seu canto: era
também todo o espírito do samba que ele encarnava.
Depois que se aposentou do seu
serviço na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, finalmente João Borba
pôde cuidar melhor da carreira que já vinha desde os anos 1950 e que passava
pelo grupo de teatro, música e consciência negra de Solano Trindade, pelas
Escolas de Samba de São Paulo e pelas noites paulistanas. Aposentado, finalmente Borba conseguiu
gravar seus três CDs: “João Borba: Memória do Samba Paulista” (gravado em 2005
e lançado pelo Kolombolo em 2014), “João Borba Canta Jorge Costa” (2008) e “Eu
comigo e meus amigos” (2011). Aposentado, finalmente Borba pôde levar seu samba
e sua voz pelo mundo, principalmente para Paris, onde reencontrou Fernando e
seu cavaco.
No começo do segundo semestre de
2015, João Borba andava um pouco doente, mas estava animado com sua última
viagem. E já se preparava para ir à Cuba. Ele me procurou dizendo que em Paris,
Fernando delPapa tinha criado a palavra “Baoborba”, mistura dos nomes da mítica
árvore e do sambista. Fiquei entusiasmado com a ideia de Fernando, que definia tão
bem a força soberana de João Borba. Mas
meu amigo me procurava por outro motivo. Tivera a inspiração de fazer um samba,
não sobre si próprio, mas sobre a árvore que lhe emprestava o novo apelido. Ele ainda não sabia como seria, não tinha a
letra, nem a melodia, e por isso me provocava com sua doçura: “então, vamos
fazer um samba sobre o baobá?”. Aceitei na hora, comovido pelo convite e pelas
ideias que já me atropelavam com alegria e fúria.
Fiz a letra, esbocei a melodia e
mostrei para o Borba. Ele se empolgou e disse que iria completar a música. Mas
lentamente os males do corpo foram solapando a raiz daquele Baoborba que eu
julgava eterno: ele não foi para Cuba, começou a cancelar algumas apresentações
e não completou o samba. No dia 10 de
setembro de 2016, liguei para dar os parabéns pelos 82 anos. A querida Salete atendeu, percebi que ele
pigarreou para ajeitar a garganta e o corpo, e lá de longe eu ouvi a voz serena
do meu parceiro: “estou fazendo 18 anos!”. Para animá-lo, contei que a melodia
de “Baobá” estava pronta e acabada só esperando para ele gravar, quem sabe,
fazendo um dueto com o médico e baluarte Chico Aguiar. E que poderíamos, no
final do samba, preparar um duelo entre um violão 7 cordas e um violoncelo, e
ainda... Mas senti que, mesmo colocando o sorriso de sempre na voz serena, meu
amigo estava já cansado. E nos despedimos com o carinho de sempre.
No dia 20 de setembro de 2016,
dez dias depois, tombou para sempre o meu Baoborba. O Baoborba de Fernando
delPapa, Chicão, Pasquale Nigro, Wandi Doratiotto e de tantos outros parceiros,
amigos e sambistas. O Baoborba da Pérola Negra, do Império do Cambuci e de
tantas outras Escolas de Samba de São Paulo. O Baoborba da Vila Madalena, do
Centro, de Embu das Artes, de Piracicaba, de Paris e de onde mais o samba
chegou e chegará.
Nesses últimos vinte anos, meu
conterrâneo João Borba foi meu parceiro, meu intérprete e meu irmão. Para ele escrevi e atualizei seus “releases”,
fiz o texto de encarte de um dos seus CDs e ofertei sambas que ele gravou ou
apresentou em shows. Juntos, planejamos
inúmeros espetáculos (inclusive o que ele pretendia apresentar até o final de
2016: “João Borba: 60 anos de música e sonho”) e compusemos amizade,
fraternidade e música.
Nossa única parceria gravada fala
de um rio em que nós dois, quando meninos, mesmo em épocas tão distintas,
matamos a sede e nos espelhamos. Que a
água cristalina sonhada para nosso rio e para tantos outros sacie todas as
aflições. Que o samba, feito um baobá, ilumine todas as almas.
Viva sempre em nós, João Borba!
Para você, o samba sonhado:
Baobá
(Caio Silveira Ramos) – para João
Borba e Fernando delPapa
Amei
Acima
de qualquer pecado
Rasguei
Meu
coração encarcerado
Plantei
Uma
semente nessa terra
Que
espera, feito ela,
Renascer,
se libertar
E
do meu coração dilacerado
Brotou
Meu
samba novo, germinado
Cresceu
Embriagou-se
de tristeza
Recriou
a natureza
Se
agigantou
Tocou
o céu.
Baobá
A
força que vem do além
Do
além-mar
Além
deste tempo, deste lugar
Raiz
que ensina a caminhar
Baobá
Rompendo
qualquer grilhão
Baobá
Abraço
da multidão
Baobá
Sagrada
profanação
Baobá
Baobá
Meu
sangue já abrigou
Baobá
A
sede já saciou
Baobá
Meu
corpo multiplicou
Baobá
Publicado no Jornal de Piracicaba em 9/10/2016
Nenhum comentário:
Postar um comentário
INFINITE-SE: