quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Sapatos e papéis

(caio silveira ramos)

Quando descobri que meu pai, para ganhar alguns trocados lá na sua infância na cidade de Itu, tinha engraxado sapatos e carregado malas na estação, resolvi botar a mão na massa também.
Só que ele mesmo me explicou que os tempos eram outros: o mundo começava a entender que obrigação de criança era brincar e estudar.  Na infância difícil, ele tinha trabalhado não só para comprar umas poucas bolinhas de gude ou as tais balas que vinham com figurinhas, mas principalmente para ajudar com as despesas da casa dos tios, onde ele morava com os primos e a irmã mais nova.   Lendo pensamentos, meu pai disse que se eu quisesse comprar alguma coisa para mim, ele poderia ajudar. Desde que a tal coisa não fosse muito cara.
Eu sabia que o cinto em casa andava permanentemente apertado e que loja de brinquedo era um lugar de passeio e de sonho, não propriamente de compras.  De qualquer forma, o que eu queria, nem brinquedo era. E mesmo se tivesse coragem de pedir um presente, a ideia era adquirir meu objeto de desejo sozinho. Com meu próprio dinheiro.
Meu pai me disse que, se fosse em casa, eu poderia trabalhar um pouquinho: seria bom aprender coisas novas, desde que não atrapalhasse os estudos e as leituras. Eu até poderia encarar o “serviço” como uma boa brincadeira, mas para ganhar algumas moedas, a brincadeira teria que ser séria e bem feita.  Ah! Arrumação da própria cama e enxugamento de louça do almoço de domingo já eram obrigações e não seriam remuneradas de jeito nenhum.
Já que não havia malas pra carregar, escolhi engraxar sapatos. Meu pai arranjou uma escova de dente usada, duas latas novas de graxa (uma preta e outra marrom), três flanelas limpas, uma caixinha simples de madeira e uma escova grande. Nem bem me deu as instruções básicas e eu já saí pela casa à caça de fregueses e de sapatos.  Virei, mexi e arranjei uns seis pares, sendo que quatro eram dele: ali, na minha mão, aqueles seus sapatos surrados, todos com o formato inconfundível de seus pés desconcertados por horas e horas de aulas e sofrimentos passados tantos.
Sapatos e bailarino calejados pelas mil voltas de uma vida tormentosa.

***

Eu já tinha engraxado todos os sapatos da casa e nem assim conseguira juntar o dinheiro que queria para iniciar meu projeto secreto.  Com muito jeito, fui até meu pai e me ofereci para fechar o portão da garagem toda vez que ele saísse com o carro. Quando percebi que ele ia rir gostosamente, me adiantei e expus todas as dificuldades que a tarefa exigiria de mim:
Para que alguém do meu tamanho pudesse fechar a garagem seria preciso dar um salto e se pendurar na grade inferior do pesado portão de ferro. Depois, esse mesmo alguém deveria fazer força para baixo usando todo o corpo: só assim a parte superior do tal portão poderia correr pelo trilho preso no teto ao mesmo tempo em que um complexo sistema de cabos e roldanas levantaria, junto à parede, um gigantesco paralelepípedo de madeira que servia de contrapeso. Mas não era só isso: depois de fechada a garagem, seriam necessárias muita técnica e intrincada ciência para erguer um pouco e com muito jeito a base do portão, o que faria a lingueta da tranca se encaixar no local devido. Aí, e somente aí, se poderia girar a chave e a garagem ficaria trancada com segurança.
“Hum...Além de força, técnica e ciência, essa tarefa parece exigir uma grande responsabilidade...” , tentou não rir meu pai.
“Uma grande responsabilidade!”, confirmei muito sério.
E naquela mesma tarde, assim que meu pai saiu com o carro, fechei solenemente a garagem com a tal “grande responsabilidade”, segurei com força a moeda recebida por aquele serviço, apalpei o bolsinho do short que guardava as minhas economias amarrotadas e atravessei a rua.
Com o coração lá na frente, dobrei a esquina que dava para o Largo Santa Cruz, cumprimentei rápido seu Chalita, que atendia alguém no balcão da sua loja, e entrei na porta vizinha, a da Papelaria Rossi.
Minutos depois, ao lado da grande mesa do escritório-biblioteca de meu pai, abri o sonhado pacote de 250 folhas de papel sulfite comprado graças a alguns pares de sapato e ao portão da garagem.
E sobre a antiga escrivaninha de datilografia do meu avô, agora transformada na minha mesa de estudos, retirei dez folhas do pacote, ajeitei-as meticulosamente e, emocionado, mergulhei naquele mundo branco, imprevisível e incontrolável.
E deliciosamente sem limites.

***

Minha mãe sempre soube o feitiço certo para anzolar criança na leitura.
Não se sabe como ela descobriu uns livros grandes e finos, de bordas onduladas e capas instigantes: dentro de cada um deles, gravuras coloridas e curiosas (sempre socorridas por frases curtas escritas com letras também grandes e em negrito) contavam histórias que eram lidas uma, duas, dez milhões de vezes. Como aquela do porquinho e do coelho que entravam em um castelo assombrado por um fantasma, que no final se revelava um lobo escondido sob um lençol. Ou a do posto de gasolina que na última página ia pelos ares por causa da imprudência de um senhor porco – de anéis no dedo e metido a sebo – que acendia um charuto enquanto abastecia seu carro conversível.
E se não eram esses livros, eram os fascículos (comprados em banca de jornal e depois encadernados) que traziam os contos clássicos da Disney em quadrinhos ou as incríveis histórias da Revista Recreio, cujo lema no início da década de 1970 era “Leia e pinte. Recorte e brinque”.  Editados pela editora Abril, cada número da Recreio trazia um ou dois contos, geralmente escritos por feras como Sonia Robatto, Ruth Rocha, Ana Maria Machado e Joel Rufino dos Santos, acompanhados pelas ilustrações de desenhistas geniais como Waldyr Igayara, Izomar Camargo Guilherme, Renato Canini e Brasílio da Luz.
Da Revista Recreio se aproveitava tudo: as folhas centrais que depois de recortes, dobras e colagens se transformavam em incríveis brinquedos de papel; o brinde encartado no fascículo (que podia ser um brinquedinho singelo de plástico ou até sementes para plantar no vaso); as páginas com ilustrações sem colorido feitas para o próprio leitor pintar como quisesse, e até as abas de cada folha, que apresentavam as mais diversas atividades. E, claro, as sensacionais histórias que incendiaram a imaginação das crianças da década de 1970 e as tornaram muito mais felizes. Aliás, não só daquela década, porque muitas dessas histórias, que naquela época eram vendidas em bancas de jornal por alguns cruzeiros, hoje podem ser compradas em livrarias por uns tantos reais, mas por menos pessoas.  Se atualmente tais histórias se revelam em papel de altíssima qualidade, com projetos editoriais ricamente elaborados e ilustrações que até parecem obras de arte, garanto que a apresentação gráfica simples, o papel comum e os desenhos cheios de cor, mas sem rebuscamentos (feitos justamente para ajudar a contar aquelas histórias) cumpriam muito bem sua missão de instigar, divertir e iluminar almas novas e sedentas de vida e de sonho.
Assim, quando eu me via diante do mundo branco de sulfite, meu coração se acelerava: com minhas canetinhas coloridas eu fazia desenhos em cada página e depois voltava colocando os textos que acabariam por formar pequenos livros de histórias.  Histórias que eu sonhava que fossem como as da Revista Recreio ou as dos livros finos de letras grandes e pretas. Mas nem que não fossem: o importante era contar histórias, brincar de Deus, criar do nada ou recriar o imperfeito.
Cada vez que retirava meu pacote precioso de dentro da gaveta e me emocionava com as folhas em branco, eu podia me espalhar pelo mundo conhecido ou até mesmo fazer outros. Novos. Remundos.
Cada vez que as canetas coloridas rabiscavam minhas histórias desvairadas com seus desenhos encapengados, sentia que de alguma forma eu podia rearranjar os caminhos sofridamente tortuosos de meu pai, para que seus pés libertos nunca mais deformassem seus sapatos.
Para que meus pés libertos encontrassem caminhos nunca imaginados.

Ilustrações: Erasmo Spadotto e Maria Luziano – cedidas pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 16 e 20/11 e 4/12/16


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