quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Aleluias

(caio silveira ramos)

(para Alexandre Barbosa Teixeira)



Geralmente no começo da noite. Elas chegavam. Multidões delas, vorazes, infinitas.  Voando, atravessando a casa, aleluias procurando a luz.
A luz do grande lustre da sala.  
O lustre: suspenso do forro de madeira por quase três metros de corrente, ele parecia um leme rodeado por cinco cachimbos que abrigavam as lâmpadas.   Embaixo, o meio-globo de vidro fosco revelava mais um pouco de luz.   E era por causa dela que algumas aleluias morriam dentro daquele meio-globo gravado por desenhos que lembravam às vezes uma flor, às vezes um sol. Um sol de raios petalados de triângulos.   E era dentro daquele sol que se amontoavam as asas e os corpos das aleluias que se deixavam fascinar pela luz.  Mas muitas escapavam. E se atiravam com fome em sofás, mesas, livros, instrumentos musicais, portas e brinquedos.   Reduzindo tudo a pó.
Para mim, naquela época, não eram aleluias, siriris. Nada disso. Aquele pesadelo atendia por um só nome:
Cupim.
Tentávamos fechar as janelas, apagar as luzes, mas aquele bando selvagem persistia, abandonando as asas, se acasalando, se esgueirando nas frestas para derrubar a casa.   Acho que era esse meu medo maior: que um dia a casa caísse.   Metáfora da vida, do fim da infância? Nada importava. Eu temia que o céu desabasse literalmente sobre nossas cabeças, por Tutatis!
Me lembro de desesperos: eu arrancando a camisa e girando o braço feito um helicóptero para espantar os monstros. Minha irmã chorando, com medo que atravessassem a capa de couro e destruíssem o som de seu amado violoncelo, comprado a duras penas.   Diante daquilo, comecei a temer também por meu violão: a capa tinha aberturas laterais, que eu passei a encher de panos para que os bichos não entrassem.    
O piano parecia resistir.  As vigas do teto, o madeirame do piso e os batentes das portas de mais de oitenta anos se faziam mais amargos na sua emperobice só para afastar a multidão faminta.   Mas o resto parecia entregue à sanha daquele exército arrasador.
Durante o dia, jogando futebol de botão, bolinha de gude ou “cinco marias” (para nós, “porquinho”), alguém ia parar embaixo de algum móvel e cheio de assombro dava o alarme: “tem pozinho de cupim no chão! Aquele resto de madeira significava para nós alguma perda futura e inevitável, além de deixar a sensação terrível de que a qualquer momento sentiríamos o dedo afundando em algum móvel transformado em palha seca.  O som de areia vindo de dentro de um objeto feito de madeira (tal qual um “pau de chuva”) denunciava que debaixo da casca de tinta a óleo o mundo se desmanchava.
No inventário da destruição, total ou parcial, apareciam (ou desapareciam?): um armário de cozinha e um outro, de banheiro (para remédios);  um sofá-cama vermelho;  uma escrivaninha grande; uma escrivaninha menor, dessas para datilografia; uma cuia de chimarrão pequena, própria para crianças; o madeiramento de um forte-apache;  um pássaro-móbile que mexia as asas com o vento ou com uma cordinha puxada na barriga; uma mesa de jantar para seis lugares;  um sermão inteiro do Padre Antonio Vieira;  duzentas e cinquenta e sete declarações de amor de um romance Romântico e a revelação de um conto de mistério de Edgar Allan Poe.
Mas quando os cupins furaram a capa dura de um livro da coleção de Lima Barreto e por caminhos tortuosos devoraram sem trégua dezenas de palavras e frases, eu finalmente entendi aquela legião de famintos.
Eu finalmente compreendi aquela fome.

***

Seu Silvio Luciano deve ser um bruxo. 
Pelas salas e corredores do serviço, vejo seu caminhar sincopado-lento, quase pausado. Andar de quem não tem pressa, mas que sempre chega no tempo certo aonde quer chegar.  E ele vem ainda com aquele olhar atrás dos óculos quadrados: olhar gaiato, ladino, que também sempre chega aonde quer chegar.   
Dizem que já teve uma das mais incríveis lojas de discos lá para os lados da Avenida Paulista.  Dizem que sabe tudo sobre a Segunda Guerra Mundial. E rock. E jazz. E blues. E também sobre aparelhos de TV, de som, de rádio.   E revistas em quadrinhos.
Dizem que ganhou concurso culinário.  E imediatamente posso vê-lo de chapéu de bruxo, mexendo num caldeirão e rodeado pelos discípulos misteriosos de uma sociedade secreta, com suas vestimentas próprias, seus rituais e seus temperos exóticos. 
Assim, não me surpreendi quando ele me explicou como os cupins parecem comer o concreto.  De acordo com o bruxo Silvio Luciano, na feitura das caixas de lajes era usado muito entulho: madeira velha, papelão. O que viesse.   Depois de pronto o prédio, a cupinzada se aproveitava (e ainda se aproveita) das frestas do concreto para encontrar aquele banquete todo.  Então, fazem a festa.  Ou festas. Festas de comilanças e de construção de ninhos.  Resultado: as revoadas das aleluias hoje parecem brotar das paredes.
Quanto aos livros, o bruxo disse o seguinte: o papel geralmente é muito áspero.  Para torná-lo mais sedoso, os fabricantes passam uma camada de algo parecido com amido de milho.  Se os cupins já adoram o papel puro, imaginem só com um amaciante de maisena?  Qualquer livro do Paulo Coelho vira manjar delicioso.
Eu não conhecia Silvio Luciano quando me deparei com os primeiros furos e rastros nos livros de casa.  Achei até que aquilo era trabalho de traça de desenho animado.  Mas depois me dei conta que os cupins atacavam, sem distinção, D’Artagnan,  Padre Amaro,  o Patinho Feio e Anna Karienina.
Mas foi só recentemente, folheando a coleção de Lima Barreto, que me esvaziei dos temores que sentia dos cupins.  Que me desenrosquei da raiva que eu sentia das aleluais.

Aqueles livros foram invadidos sem medo por simples furos nas capas duras. Furos que se transformaram em rios cavados nas páginas macias. Rios que engoliram letras, palavras, ideias e personagens.   Famintos, os cupins pareciam buscar quem os compreendesse na fome e na ânsia. 
E se foram buscar, encontraram.  Encontraram miseráveis, bêbados, desesperados, fracassados, humilhados, loucos.  Velhos e jovens, quase todos trôpegos pelo preconceito que continuou sulcando suas carnes.  
E esse encontro de famintos revelou não apenas o apetite pelo amido das folhas.   Desnudou todas as outras fomes.  As fomes que atormentaram os sonos e as vigílias daquele autor de alma tão corroída quanto as almas de seus personagens.
A legião de famintos cupins conseguiu destruir algumas palavras.   Mas unida aos desvalidos e enjeitados encontrados naqueles caminhos, danou-se a esburacar minha cabeça com as ideias engolidas sem piedade.
E meus miolos sulcados, feito carne enchibatada, agora se contorcem de desespero e humanidade.

Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 26/9 e 10/10/2014

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