(caio silveira
ramos)
(para Alexandre
Barbosa Teixeira)
Geralmente no
começo da noite. Elas chegavam. Multidões delas, vorazes, infinitas. Voando, atravessando a casa, aleluias
procurando a luz.
A luz do grande
lustre da sala.
O lustre:
suspenso do forro de madeira por quase três metros de corrente, ele parecia um
leme rodeado por cinco cachimbos que abrigavam as lâmpadas. Embaixo, o meio-globo de vidro fosco revelava
mais um pouco de luz. E era por causa
dela que algumas aleluias morriam dentro daquele meio-globo gravado por
desenhos que lembravam às vezes uma flor, às vezes um sol. Um sol de raios
petalados de triângulos. E era dentro
daquele sol que se amontoavam as asas e os corpos das aleluias que se deixavam
fascinar pela luz. Mas muitas escapavam.
E se atiravam com fome em sofás, mesas, livros, instrumentos musicais, portas e
brinquedos. Reduzindo tudo a pó.
Para mim,
naquela época, não eram aleluias, siriris. Nada disso. Aquele pesadelo atendia
por um só nome:
Cupim.
Tentávamos
fechar as janelas, apagar as luzes, mas aquele bando selvagem persistia,
abandonando as asas, se acasalando, se esgueirando nas frestas para derrubar a
casa. Acho que era esse meu medo maior:
que um dia a casa caísse. Metáfora da
vida, do fim da infância? Nada importava. Eu temia que o céu desabasse
literalmente sobre nossas cabeças, por Tutatis!
Me lembro de
desesperos: eu arrancando a camisa e girando o braço feito um helicóptero para
espantar os monstros. Minha irmã chorando, com medo que atravessassem a capa de
couro e destruíssem o som de seu amado violoncelo, comprado a duras penas. Diante daquilo, comecei a temer também por
meu violão: a capa tinha aberturas laterais, que eu passei a encher de panos
para que os bichos não entrassem.
O piano parecia
resistir. As vigas do teto, o madeirame
do piso e os batentes das portas de mais de oitenta anos se faziam mais amargos
na sua emperobice só para afastar a multidão faminta. Mas o resto parecia entregue à sanha daquele
exército arrasador.
Durante o dia,
jogando futebol de botão, bolinha de gude ou “cinco marias” (para nós,
“porquinho”), alguém ia parar embaixo de algum móvel e cheio de assombro dava o
alarme: “tem pozinho de cupim no chão! Aquele resto de madeira significava para
nós alguma perda futura e inevitável, além de deixar a sensação terrível de que
a qualquer momento sentiríamos o dedo afundando em algum móvel transformado em
palha seca. O som de areia vindo de
dentro de um objeto feito de madeira (tal qual um “pau de chuva”) denunciava
que debaixo da casca de tinta a óleo o mundo se desmanchava.
No inventário da
destruição, total ou parcial, apareciam (ou desapareciam?): um armário de
cozinha e um outro, de banheiro (para remédios); um sofá-cama vermelho; uma escrivaninha grande; uma escrivaninha menor,
dessas para datilografia; uma cuia de chimarrão pequena, própria para crianças;
o madeiramento de um forte-apache; um
pássaro-móbile que mexia as asas com o vento ou com uma cordinha puxada na
barriga; uma mesa de jantar para seis lugares;
um sermão inteiro do Padre Antonio Vieira; duzentas e cinquenta e sete declarações de
amor de um romance Romântico e a revelação de um conto de mistério de Edgar
Allan Poe.
Mas quando os
cupins furaram a capa dura de um livro da coleção de Lima Barreto e por
caminhos tortuosos devoraram sem trégua dezenas de palavras e frases, eu
finalmente entendi aquela legião de famintos.
Eu finalmente
compreendi aquela fome.
***
Seu Silvio
Luciano deve ser um bruxo.
Pelas salas e
corredores do serviço, vejo seu caminhar sincopado-lento, quase pausado. Andar
de quem não tem pressa, mas que sempre chega no tempo certo aonde quer
chegar. E ele vem ainda com aquele olhar
atrás dos óculos quadrados: olhar gaiato, ladino, que também sempre chega aonde
quer chegar.
Dizem que já
teve uma das mais incríveis lojas de discos lá para os lados da Avenida
Paulista. Dizem que sabe tudo sobre a
Segunda Guerra Mundial. E rock. E jazz. E blues. E também sobre aparelhos de
TV, de som, de rádio. E revistas em quadrinhos.
Dizem que ganhou
concurso culinário. E imediatamente
posso vê-lo de chapéu de bruxo, mexendo num caldeirão e rodeado pelos discípulos
misteriosos de uma sociedade secreta, com suas vestimentas próprias, seus
rituais e seus temperos exóticos.
Assim, não me
surpreendi quando ele me explicou como os cupins parecem comer o concreto. De acordo com o bruxo Silvio Luciano, na
feitura das caixas de lajes era usado muito entulho: madeira velha, papelão. O
que viesse. Depois de pronto o prédio,
a cupinzada se aproveitava (e ainda se aproveita) das frestas do concreto para
encontrar aquele banquete todo. Então,
fazem a festa. Ou festas. Festas de
comilanças e de construção de ninhos.
Resultado: as revoadas das aleluias hoje parecem brotar das paredes.
Quanto aos
livros, o bruxo disse o seguinte: o papel geralmente é muito áspero. Para torná-lo mais sedoso, os fabricantes
passam uma camada de algo parecido com amido de milho. Se os cupins já adoram o papel puro, imaginem
só com um amaciante de maisena? Qualquer
livro do Paulo Coelho vira manjar delicioso.
Eu não conhecia
Silvio Luciano quando me deparei com os primeiros furos e rastros nos livros de
casa. Achei até que aquilo era trabalho
de traça de desenho animado. Mas depois
me dei conta que os cupins atacavam, sem distinção, D’Artagnan, Padre Amaro,
o Patinho Feio e Anna Karienina.
Mas foi só
recentemente, folheando a coleção de Lima Barreto, que me esvaziei dos temores
que sentia dos cupins. Que me
desenrosquei da raiva que eu sentia das aleluais.
Aqueles livros
foram invadidos sem medo por simples furos nas capas duras. Furos que se
transformaram em rios cavados nas páginas macias. Rios que engoliram letras, palavras,
ideias e personagens. Famintos, os
cupins pareciam buscar quem os compreendesse na fome e na ânsia.
E se foram
buscar, encontraram. Encontraram
miseráveis, bêbados, desesperados, fracassados, humilhados, loucos. Velhos e jovens, quase todos trôpegos pelo
preconceito que continuou sulcando suas carnes.
E esse encontro
de famintos revelou não apenas o apetite pelo amido das folhas. Desnudou todas as outras fomes. As fomes que atormentaram os sonos e as
vigílias daquele autor de alma tão corroída quanto as almas de seus
personagens.
A legião de
famintos cupins conseguiu destruir algumas palavras. Mas unida aos desvalidos e enjeitados encontrados
naqueles caminhos, danou-se a esburacar minha cabeça com as ideias engolidas
sem piedade.
E meus miolos
sulcados, feito carne enchibatada, agora se contorcem de desespero e
humanidade.
Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 26/9 e 10/10/2014
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