(caio
silveira ramos)
O menino anda
desconfiado: “como é que Papai Noel não se esquece de ninguém/seja rico, seja
pobre, o velhinho sempre vem”. “Sempre
vem? Não sei, não...” Mas tanto insistiram que o menino fez a carta: pediu “uma
mochila que dure no mínino quatro anos e brinquedos para todas as crianças”.
Terminada a carta, ele se lembrou: “vou passar o Natal com a tia Ester... Como
ele vai me achar?” Sugeri: “coloque um ‘P.S.’ no final e escreva: ‘vou passar o
Natal com a tia Ester’.” Ele retrucou:
“P.S., não. Ele vai precisar é de um GPS”.
Por essas e
outras é que o avô adora provocar o menino para ouvir suas respostas. Num dia desses, enquanto o garoto corria pela
sala contando que seu pai voltava muito tarde, às vezes de madrugada, o avô
cutucou:
“O que é que seu
pai faz, Pedrão?”
O pequeno já
tinha me feito a mesma pergunta. Mas
como ainda era muito cedo para explicar sobre a complexa atividade de suporte
ao processo legislativo, disse a ele que trabalhava com leis. E quando a pergunta hoje se repete, dou a
mesma resposta ou digo simplesmente: “sou um servidor público. Como seu avós
foram”. E digo com a certeza de quem encontra
no “servir” o sentido mais puro e republicano da palavra: servir como quem se
doa, sem interesses particulares, mesquinhos ou suspeitos.
“Então, Pedrão?
O que seu pai faz?”
“Samba. Meu pai
faz samba.”
Os sentidos
falaram mais alto. O menino se lembrou
do velho artista cantando, na TV, um samba apaixonado de seu pai. E o artista, antes de cantar, ainda falou sobre
o menino. E o artista, quando cantou,
deixou-se tomar pela música para que ela desse seu recado. E com a lembrança daquele dia, o menino
também foi tomado: as imagens da alegria arrebataram seus olhos, o samba
mergulhou nos seus ouvidos, na sua boca e dominou seus sentidos, seu corpo
todo:
“Samba. Meu pai
faz samba.” E logo o garoto começou a cantar e a dançar, imitando o velho
artista.
Estava certo o
menino: fazer samba, viver nele, também implica servir alguém. Mas não ser
servil, pois o samba não se verga.
Fazer samba,
viver nele, exige a altiva doação do sentimento. Compartilhar a alma, em forma de letra, ritmo
e melodia, sem interesse, para espalhar amores, lutas e denunciar injustiças.
Por essas e
outras, servidor que sou, continuo chegando tarde por causa do trabalho. Nas
madrugadas, feito um boêmio inveterado, giro a chave devagar, retiro os sapatos
dos pés e entro na escuridão da casa.
E muitas, muitas
vezes, escuto um teque-teque doce no chão da sala (feito um tamborim marcando o
compasso) e sinto o menino envolvendo minhas pernas com os braços. Depois,
malemolente, ele volta para seu quarto para dormir tranquilo. Ou eu o abrigo
num abraço e o carrego até a cama, onde um sonho bom o espera encantado.
E embalado pelo
sonho, meu samba acalenta a madrugada.
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 27/12/2015
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