sábado, 5 de março de 2016

Samba servidor

(caio silveira ramos)

O menino anda desconfiado: “como é que Papai Noel não se esquece de ninguém/seja rico, seja pobre, o velhinho sempre vem”.  “Sempre vem? Não sei, não...” Mas tanto insistiram que o menino fez a carta: pediu “uma mochila que dure no mínino quatro anos e brinquedos para todas as crianças”. Terminada a carta, ele se lembrou: “vou passar o Natal com a tia Ester... Como ele vai me achar?” Sugeri: “coloque um ‘P.S.’ no final e escreva: ‘vou passar o Natal com a tia Ester’.”  Ele retrucou: “P.S., não. Ele vai precisar é de um GPS”.
Por essas e outras é que o avô adora provocar o menino para ouvir suas respostas.  Num dia desses, enquanto o garoto corria pela sala contando que seu pai voltava muito tarde, às vezes de madrugada, o avô cutucou:
“O que é que seu pai faz, Pedrão?”
O pequeno já tinha me feito a mesma pergunta.  Mas como ainda era muito cedo para explicar sobre a complexa atividade de suporte ao processo legislativo, disse a ele que trabalhava com leis.  E quando a pergunta hoje se repete, dou a mesma resposta ou digo simplesmente: “sou um servidor público. Como seu avós foram”.  E digo com a certeza de quem encontra no “servir” o sentido mais puro e republicano da palavra: servir como quem se doa, sem interesses particulares, mesquinhos ou suspeitos.
“Então, Pedrão? O que seu pai faz?”
“Samba. Meu pai faz samba.”
Os sentidos falaram mais alto.  O menino se lembrou do velho artista cantando, na TV, um samba apaixonado de seu pai.  E o artista, antes de cantar, ainda falou sobre o menino.  E o artista, quando cantou, deixou-se tomar pela música para que ela desse seu recado.  E com a lembrança daquele dia, o menino também foi tomado: as imagens da alegria arrebataram seus olhos, o samba mergulhou nos seus ouvidos, na sua boca e dominou seus sentidos, seu corpo todo:
“Samba. Meu pai faz samba.” E logo o garoto começou a cantar e a dançar, imitando o velho artista.
Estava certo o menino: fazer samba, viver nele, também implica servir alguém. Mas não ser servil, pois o samba não se verga.
Fazer samba, viver nele, exige a altiva doação do sentimento.  Compartilhar a alma, em forma de letra, ritmo e melodia, sem interesse, para espalhar amores, lutas e denunciar injustiças.
Por essas e outras, servidor que sou, continuo chegando tarde por causa do trabalho. Nas madrugadas, feito um boêmio inveterado, giro a chave devagar, retiro os sapatos dos pés e entro na escuridão da casa.
E muitas, muitas vezes, escuto um teque-teque doce no chão da sala (feito um tamborim marcando o compasso) e sinto o menino envolvendo minhas pernas com os braços. Depois, malemolente, ele volta para seu quarto para dormir tranquilo. Ou eu o abrigo num abraço e o carrego até a cama, onde um sonho bom o espera encantado.
E embalado pelo sonho, meu samba acalenta a madrugada.


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 27/12/2015




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