sexta-feira, 29 de abril de 2016

O sítio do outro mundo

(caio silveira ramos)
  
Meus pais juntaram suas economias e compraram um pequeno sítio em São Pedro.  Talvez pretendessem plantar alguma coisa lá, ter uma horta, um pomar. Quem sabe criar algumas galinhas, como fizeram durante algum tempo no quintal de casa.
Me lembro de alguma coisa do caminho: antes de entrar na estrada de areia, no fim da parte asfaltada, um casal de poloneses vendia paçoquinha. Talvez servissem outras coisas, café, chá, melado, pois tinham um pequeno caminhão velho. Mas eu só me lembro da paçoquinha. E da areia que vinha logo a seguir pelo caminho.
No início, a porteira era feita de troncos retorcidos e arame farpado. Quando sobraram mais algumas economias, meu pai colocou uma porteira de verdade, de madeira, fechada com corrente e cadeado.  Para imitar os meninos dos filmes, eu descia, abria a porteira, subia no mourão, balançava na mão o chapéu de festa junina e gritava feliz “eeeia, eeeia, eeeia” para o carro do meu pai.
O sítio tinha uma parte plana e depois um longo declive, que terminava no lugar mais misterioso do mundo: enclausurado pelas copas das árvores gigantes, que impediam que o sol se intrometesse por ali, eternamente sombreado e fresco, havia um terreno arenoso limitado ao fundo por uma elevação de terra e pedra de onde brotavam fios grossos de água.
Era difícil chegar até lá embaixo: o terreno era acidentado, a descida, forte, a trilha às vezes se escondia debaixo do capim-gordura e era preciso ter cuidado por onde pisar para não se estrepar num buraco de tatu ou de cobra.  Mas o coração batia forte, quando, na metade do caminho, dava para se ouvir o barulho da água correndo.  E ele vinha para boca quando se entrava naquela catedral alta e sombria. Entre o medo e o deslumbramento, sempre acompanhado por alguém mais velho, eu caminhava com a respiração presa, desviando das áreas mais úmidas, até chegar perto da “parede do fundo” onde a mão em concha recolhia o jorro mais forte de água para refrescar a cabeça, a garganta e a alma. Depois era encher os galões para levar aquele frescor também para casa.  Mas antes de preparar o fôlego para a subida dura, eu olhava de canto para o maior dos meus medos ali: um grande círculo de areia molhada que diziam ser movediça.  E onde ninguém se atrevia pisar. Era como se aquele lugar saísse de um filme de Tarzan para me tragar até o centro da Terra. Era como se aquele círculo de areia brotasse de um sonho ruim para me levar para outro mundo.
Mas já lá no alto, eu me sentia a salvo de novo. Meu pai abria o porta-malas do carro e de dentro da “geladeirinha” de isopor tirava uma garrafa de laranjada gelada e sanduíches de presunto e queijo (ou de mortadela), tudo preparado pela minha mãe.   Passados a sede, a fome e uma suave modorra (depois de um breve cochilo), meu pai pegava a enxada, e de chapéu na cabeça, equilibrando de quando em vez os óculos que escorregavam no suor do rosto, saía para carpir o terreno mais plano. E incansável, lá ia ele também, combater a erosão na área inclinada, fincando, nos barrancos, sacos de estopa cheios de areia ou cavando longos e intermináveis sulcos de terra com bordas altas.
Algumas vezes, eu me vestia de meu pai e, de chapéu de palha, camisa enxadrezada, calça rancheira, bota de cano curto enlasticado e óculos se divertindo no suor do rosto, pegava uma enxadinha para brincar de trabalhar e ajudar a construir sulcos sem fim naquela terra com cara de areia dura.
Mas, diferente de meu pai, eu não era menino criado na roça. Cansado da brincadeira, ia até o carro, me sentava em frente ao volante e fingia dirigir aventurado no meio de uma savana cheia de leões e rinocerontes sanguinários.
Ou então, deixava meu olhar se perder pelo céu.
E me perdia junto com ele.


***
Enquanto meu pai, já sem camisa e empunhando apenas sua velha enxada, continuava a lutar contra a erosão faminta que atacava nosso sítio sem nome, e minha mãe, de coração botânico e dedo verde, enfrentava todos os perigos dos capões mais traiçoeiros para recolher mudas novas e diferentes, eu subia pelo capô da Variant cor de café com leite (e tempos depois, da Brasília branca) e chegava até o teto do carro estacionado.
Eu era pequeno e leve, mas mesmo assim me suavizava ainda mais para não ferir a lataria. Lá em cima, me deitava de costas sobre o teto e, com as mãos sob a cabeça, grudava os olhos no céu. E aí me esquecia do mundo.
Não ficava ali para cochilar ou decifrar o formato das nuvens, mesmo porque o céu era tão limpo que poucas vezes vi algumas delas passeando por lá.  O meu prazer era me tontear naquele infinito azulado até quase perder os sentidos: deixar os olhos mergulharem fundo, fundo, para que pontos dourados e prateados começassem a dançar pisca-piscando. Então, me dissolvia inteiro para me confundir com aquele céu.
Dali, mesmo durante o dia, eu poderia atravessar a atmosfera e descobrir todos os mistérios das galáxias mais distantes. Mas preferia ficar fragmentado e despossuído só naquele azul, invertendo todos os sistemas copérnicos para me tornar o centro do Sistema. O centro dissolvido do Universo.  Eu era além de mim e era tudo.  Pelo menos até o que azul se amarelasse nas beiradas do céu e meus pais me chamassem de volta. Era hora de ir para casa.
Mas chegou o dia em que da estrada de areia avistamos a cerca cortada e o sítio invadido por uma boiada bem nutrida. Meu pai pastoreou o rebanho até a abertura da cerca, montou no carro e seguiu no rastro da bicharada. Acostumada ao pasto alheio e ao caminho de volta para a casa própria, mansamente a boiada pegou a estrada e retornou para o ninho.  Meu pai desceu do carro e foi encarar quem arrebentava a porta do seu restaurante. “A culpa é da sua cerca que é fraca”.  Meu pai, filho de roça matreiro, rebateu: “a culpa é da sua torquês que é forte para cortar o arame e deixar a marca”.  Virou-mexeu, os donos do outro sítio acabaram pedindo desculpas e prometeram que a boiada deixaria de comer fora de casa.
Se aqueles prometeram, outros não.  Em nova visita ao sítio, a mesma história: cerca cortada, boiada se esbaldando no capim-gordura, meu pai pastoreando a bicharada para fora, que mansamente também sabia o caminho de casa.  Só que dessa vez teve jangunçaria mal-encarada, um sujeito que se distraía batendo com o facão na própria coxa e intervenção da polícia. Tudo certo, tudo resolvido, mas ficava claro que o sonho do sítio estava virando pesadelo. 
Bois invasores, capangas de gente graúda, árvores frutíferas vandalizadas, lutas inglórias contra a erosão e a impossibilidade, para um casal de professores, de gerar mais vida naquela terra fizeram meus pais venderem o sítio de São Pedro para garantir o estudo dos filhos. 
Aquele lugar, onde eu avistava deus e o diabo numa catedral de cúpula copada.  Aquele sítio, onde eu me entorpecia olhando o céu e acabava misturado ao infinito, desprendeu-se do meu caminho para sempre e foi parar num outro mundo. Ainda mais distante.
E hoje, nos dias sem nuvem, quando tento olhar para o alto, eu me sufoco no azul-cinzento.
E boiando na poeira, vou me desintegrar no céu desbotado.


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 14 e 28/2/2016

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