(caio
silveira ramos)
Meus pais
juntaram suas economias e compraram um pequeno sítio em São Pedro. Talvez pretendessem plantar alguma coisa lá,
ter uma horta, um pomar. Quem sabe criar algumas galinhas, como fizeram durante
algum tempo no quintal de casa.
Me lembro de
alguma coisa do caminho: antes de entrar na estrada de areia, no fim da parte
asfaltada, um casal de poloneses vendia paçoquinha. Talvez servissem outras
coisas, café, chá, melado, pois tinham um pequeno caminhão velho. Mas eu só me
lembro da paçoquinha. E da areia que vinha logo a seguir pelo caminho.
No início, a
porteira era feita de troncos retorcidos e arame farpado. Quando sobraram mais
algumas economias, meu pai colocou uma porteira de verdade, de madeira, fechada
com corrente e cadeado. Para imitar os
meninos dos filmes, eu descia, abria a porteira, subia no mourão, balançava na
mão o chapéu de festa junina e gritava feliz “eeeia, eeeia, eeeia” para o carro
do meu pai.
O sítio tinha
uma parte plana e depois um longo declive, que terminava no lugar mais
misterioso do mundo: enclausurado pelas copas das árvores gigantes, que
impediam que o sol se intrometesse por ali, eternamente sombreado e fresco,
havia um terreno arenoso limitado ao fundo por uma elevação de terra e pedra de
onde brotavam fios grossos de água.
Era difícil
chegar até lá embaixo: o terreno era acidentado, a descida, forte, a trilha às
vezes se escondia debaixo do capim-gordura e era preciso ter cuidado por onde
pisar para não se estrepar num buraco de tatu ou de cobra. Mas o coração batia forte, quando, na metade
do caminho, dava para se ouvir o barulho da água correndo. E ele vinha para boca quando se entrava
naquela catedral alta e sombria. Entre o medo e o deslumbramento, sempre
acompanhado por alguém mais velho, eu caminhava com a respiração presa,
desviando das áreas mais úmidas, até chegar perto da “parede do fundo” onde a
mão em concha recolhia o jorro mais forte de água para refrescar a cabeça, a
garganta e a alma. Depois era encher os galões para levar aquele frescor também
para casa. Mas antes de preparar o
fôlego para a subida dura, eu olhava de canto para o maior dos meus medos ali:
um grande círculo de areia molhada que diziam ser movediça. E onde ninguém se atrevia pisar. Era como se
aquele lugar saísse de um filme de Tarzan para me tragar até o centro da Terra.
Era como se aquele círculo de areia brotasse de um sonho ruim para me levar
para outro mundo.
Mas já lá no
alto, eu me sentia a salvo de novo. Meu pai abria o porta-malas do carro e de
dentro da “geladeirinha” de isopor tirava uma garrafa de laranjada gelada e
sanduíches de presunto e queijo (ou de mortadela), tudo preparado pela minha
mãe. Passados a sede, a fome e uma
suave modorra (depois de um breve cochilo), meu pai pegava a enxada, e de
chapéu na cabeça, equilibrando de quando em vez os óculos que escorregavam no
suor do rosto, saía para carpir o terreno mais plano. E incansável, lá ia ele
também, combater a erosão na área inclinada, fincando, nos barrancos, sacos de
estopa cheios de areia ou cavando longos e intermináveis sulcos de terra com
bordas altas.
Algumas vezes,
eu me vestia de meu pai e, de chapéu de palha, camisa enxadrezada, calça
rancheira, bota de cano curto enlasticado e óculos se divertindo no suor do
rosto, pegava uma enxadinha para brincar de trabalhar e ajudar a construir
sulcos sem fim naquela terra com cara de areia dura.
Mas, diferente
de meu pai, eu não era menino criado na roça. Cansado da brincadeira, ia até o
carro, me sentava em frente ao volante e fingia dirigir aventurado no meio de
uma savana cheia de leões e rinocerontes sanguinários.
Ou então,
deixava meu olhar se perder pelo céu.
E me perdia
junto com ele.
***
Enquanto meu
pai, já sem camisa e empunhando apenas sua velha enxada, continuava a lutar
contra a erosão faminta que atacava nosso sítio sem nome, e minha mãe, de
coração botânico e dedo verde, enfrentava todos os perigos dos capões mais
traiçoeiros para recolher mudas novas e diferentes, eu subia pelo capô da
Variant cor de café com leite (e tempos depois, da Brasília branca) e chegava
até o teto do carro estacionado.
Eu era pequeno e
leve, mas mesmo assim me suavizava ainda mais para não ferir a lataria. Lá em
cima, me deitava de costas sobre o teto e, com as mãos sob a cabeça, grudava os
olhos no céu. E aí me esquecia do mundo.
Não ficava ali
para cochilar ou decifrar o formato das nuvens, mesmo porque o céu era tão
limpo que poucas vezes vi algumas delas passeando por lá. O meu prazer era me tontear naquele infinito
azulado até quase perder os sentidos: deixar os olhos mergulharem fundo, fundo,
para que pontos dourados e prateados começassem a dançar pisca-piscando. Então,
me dissolvia inteiro para me confundir com aquele céu.
Dali, mesmo
durante o dia, eu poderia atravessar a atmosfera e descobrir todos os mistérios
das galáxias mais distantes. Mas preferia ficar fragmentado e despossuído só
naquele azul, invertendo todos os sistemas copérnicos para me tornar o centro
do Sistema. O centro dissolvido do Universo.
Eu era além de mim e era tudo.
Pelo menos até o que azul se amarelasse nas beiradas do céu e meus pais
me chamassem de volta. Era hora de ir para casa.
Mas chegou o dia
em que da estrada de areia avistamos a cerca cortada e o sítio invadido por uma
boiada bem nutrida. Meu pai pastoreou o rebanho até a abertura da cerca, montou
no carro e seguiu no rastro da bicharada. Acostumada ao pasto alheio e ao
caminho de volta para a casa própria, mansamente a boiada pegou a estrada e
retornou para o ninho. Meu pai desceu do
carro e foi encarar quem arrebentava a porta do seu restaurante. “A culpa é da
sua cerca que é fraca”. Meu pai, filho
de roça matreiro, rebateu: “a culpa é da sua torquês que é forte para cortar o
arame e deixar a marca”. Virou-mexeu, os
donos do outro sítio acabaram pedindo desculpas e prometeram que a boiada
deixaria de comer fora de casa.
Se aqueles
prometeram, outros não. Em nova visita
ao sítio, a mesma história: cerca cortada, boiada se esbaldando no
capim-gordura, meu pai pastoreando a bicharada para fora, que mansamente também
sabia o caminho de casa. Só que dessa
vez teve jangunçaria mal-encarada, um sujeito que se distraía batendo com o
facão na própria coxa e intervenção da polícia. Tudo certo, tudo resolvido, mas
ficava claro que o sonho do sítio estava virando pesadelo.
Bois invasores,
capangas de gente graúda, árvores frutíferas vandalizadas, lutas inglórias
contra a erosão e a impossibilidade, para um casal de professores, de gerar
mais vida naquela terra fizeram meus pais venderem o sítio de São Pedro para
garantir o estudo dos filhos.
Aquele lugar,
onde eu avistava deus e o diabo numa catedral de cúpula copada. Aquele sítio, onde eu me entorpecia olhando o
céu e acabava misturado ao infinito, desprendeu-se do meu caminho para sempre e
foi parar num outro mundo. Ainda mais distante.
E hoje, nos dias
sem nuvem, quando tento olhar para o alto, eu me sufoco no azul-cinzento.
E boiando na
poeira, vou me desintegrar no céu desbotado.
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 14 e 28/2/2016
Publicado no Jornal de Piracicaba em 14 e 28/2/2016
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