(caio
silveira ramos)
Entre o
final de março e o início de abril de 1971, poucos dias antes do meu
nascimento, meus pais decidiram qual seria meu nome.
Ele,
talvez marotamente, sugeriu, se nascesse um menino, o nome do sogro. Minha mãe, conhecedora dos sentidos mais
profundos das palavras de meu pai, deu a deixa para que ele pudesse revelar as
ideias que realmente estava ruminando:
“Hum...
‘Sylvio’... Seria muito bom, mas aqui vão chamar o pequeno de Sirvo,
Sirvinho... Acho muita maldade fazer isso com nosso nenê”.
“É, não
é mesmo? Você tem toda razão... Então, estive pensando... O que você acha do
nome ‘Anísio’, em homenagem ao Anísio Teixeira?...”
“Ah,
não... Um bebezinho chamado ‘Anísio’? Acho que não combina muito...”
“É
mesmo... Um nome antigo... Parece nome pra gente mais velha... Pensei também em
‘Caio’. Em homenagem ao Caio Prado Júnior...”.
“‘Caio’...
É bonito. Então está certo: vamos dar ao nenê o nome ‘Caio’!”
Meu pai
sorriu. Mas se eu pudesse assistir
àquele momento “ao vivo” não entenderia todas as razões do sorriso do pai.
Anos
depois eu soube que o educador baiano Anísio Teixeira era um dos ídolos
dele. Anísio foi, no Brasil, o grande
ideólogo da educação pública e um dos maiores símbolos na luta pelo ensino
gratuito (e de qualidade) para todos. Para ele, a educação não era privilégio:
era um direito. Toda sua vida foi devotada à ela. E por ela foi criticado e perseguido. Mas
pela educação ele lutou até o fim de sua vida.
Caio
Prado Júnior foi um dos grandes pensadores do Brasil. Até os que o criticam e
discordam de suas ideias (e de algumas de suas injustificadas omissões)
reconhecem que suas obras são fundamentais para entendimento da História do
País. Livros como “Formação do Brasil Contemporâneo” e “História Econômica do
Brasil” são leituras obrigatórias para quem deseja conhecer o País a
fundo. Sobre a obra de Caio Prado Júnior
não cabe falar a frase ignorante: “não li e não gostei”. Pode-se até abominar suas ideias. Mas elas
devem figurar em qualquer biblioteca que se preze.
Assim,
na intenção do nome “Anísio” – que mesmo não efetivada esteve sempre presente
em cada passo da minha vida – e na concretização do nome “Caio”, as paixões de
meu pai e as bênçãos generosas de minha mãe nada impuseram a uma criança, mas
nela gravaram as ideias que eles tanto lutavam e colocavam em prática todos os
dias: a salvação e a transformação de vidas pela educação gratuita de qualidade
e a diminuição das profundas desigualdades sociais de um país.
Mas só
há pouco tempo descobri que meus pais foram além. Menos de um mês da escolha do meu nome e do
meu nascimento, Anísio Teixeira, depois de dias desaparecido, foi encontrado
morto no fosso de um elevador. Naquela época já se suspeitava o que as atuais
investigações indicam: Anísio não sofreu um acidente como foi oficialmente
alardeado: pelas posições de seu corpo e de sua pasta (ambos encontrados numa
parte do fosso incompatível com uma queda), pelo local e condições em que foram
encontrados seus óculos, e principalmente pelas lesões sofridas pode-se
concluir que Anísio foi brutalmente assassinado e depois teve seu corpo, sua
pasta e seus óculos “arrumados” no fosso.
Coincidência ou não, após a morte de Anísio Teixeira o governo deu o
pontapé inicial no desmonte da educação pública brasileira de qualidade.
Educação pública que hoje agoniza impedindo que várias vidas sejam
transformadas.
Quanto a
Caio Prado Júnior, quando “recebi” seu nome, estava ele preso já há algum
tempo. E assim continuaria até agosto
daquele 1971. Preso não por desvio de
dinheiro público, caixa-dois, corrupção ou qualquer desses crimes tão comuns na
vida política brasileira: da mesma forma que fora preso durante a Ditadura
Vargas, Caio estava novamente encarcerado, agora pela Ditadura Militar,
simplesmente por suas ideias e livros.
Assim,
com um simples nome dado a um bebê, meus pais de uma forma corajosa
transgrediram a brutalidade de um Regime que atravessava justamente seu momento
mais covarde e perigoso. Por meio do
nome de uma criança (com todas as suas variantes e intenções) estavam ofertadas
as esperanças de um Brasil mais justo e humano.
E aqui
sigo eu, prova viva de um período que não se apaga. Nos nomes e sobrenomes que carrego na alma e
no corpo está gravada para sempre a certeza de que a educação transforma vidas.
E que as
ideias de um País menos desigual jamais, jamais devem ser novamente torturadas,
mortas ou encarceradas.
Publicado no Jornal de Piracicaba em duas partes: 24/1 e 27/2/2019
Aplausos infinitos!
ResponderExcluirQue texto atual! Muito bom.
ResponderExcluirCaio estou encanta com seus textos. Bjs
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