(caio
silveira ramos)
Uma generosa
carta sobre este Mirante, escrita pela professora Helena Pereira Domitti, uma
das fadas cirandeiras de minha vida, foi publicada no Jornal de
Piracicaba. Diante dessa ternura, não
pude deixar de me lembrar de uma prima de meu pai, que chamávamos
carinhosamente de “tia Mocinha”.
Coincidência ou não – ternuras são transmissíveis –, tia Mocinha era
madrinha de Dona Helena.
Pois Dona
Brasília era famosa e respeitada professora de corte e costura em Itu, interior
de São Paulo, mas na família ela era conhecida como “Mocinha”. Acho que foi meu pai, que a vida inteira a
chamou de “Moça”, quem criou o apelido (ela era mais velha cerca de quinze
anos: para ele-menino, a prima já era “mocinha”), mas nós achávamos engraçado
que aquela senhora baixinha e rechonchuda, de cabelinho branco-azulado, tivesse
tal nome-brinquedo. Porém, não era só o
apelido que era motivo de graça: ela inteira inspirava todo sorriso.
Nas casas em
que morou, o capricho e o cuidado com a arrumação sempre foram suas
marcas. Feito ela, tudo miudinho:
cortinas, tapetes, toalhinhas. Por todo
canto, sinais de um tempo antigo: na parede da sala, um quadro do Sagrado
Coração de Jesus e outro do de Maria; na mesa de canto, um enfeite de metal, de
hastes finas e compridas, todas presas num mesmo ponto da base, que deixava as
crianças doidas para juntar as florezinhas com a mão e depois soltar, só para
ver o “brinquedo” pendulando; na cômoda do quarto, um pote de talco em formato
de maçã. Sobre a mesa arrumadíssima, o
sempre delicioso café da tarde: toda variedade de pãezinhos, bolos, geleias,
salgados, barras de manteiga vindas do sítio da irmã em Paraguaçu Paulista. De
repente, aparecia uma travessa de bolinhos de chuva feitos na hora. E aquele sorriso. E aquele abraço. E aquele
jeito ituaníssimo de usar o “de”: “casa de Miro”, “carro de Tacílio”. E aquele sacolejar de corpo ao rir, com as
mãozinhas na boca, após falar qualquer bobagenzinha deliciosa ou ao ouvir
anedotas de uma malícia tão suave que beiravam a inocência.
Seu marido era
um senhor sisudo, sempre perfumado, de camisa branca muito bem passada, as
mangas compridas de punhos eternamente fechados. Meu pai dizia que ele era um
brilhante alfaiate, perito em colocar mangas perfeitas em paletós, mas como
parecia fazer um terno por ano, era tia Mocinha quem “carregava o piano” da
casa. Ele não era doce como ela e, para
meus olhos de criança, nem com ela. E mesmo diante de certas arteirices dele, lá
vinha ela com seu bordão mais famoso: “Oh, pobre! Pobre de Paulo!”.
Muitos anos
antes da atriz e comediante Gorete Milagres popularizar o seu “ô coitado”, tia
Mocinha transformara o seu “Oh, pobre” (com o “oh” dito de maneira “fechada”)
em quase uma vírgula de suas falas. Ao
contrário da comediante, a fala de tia Mocinha não era histriônica, mas tecida
de uma brandura tão grande, que era impossível não achar graça. E ela também
achava. E acabava rindo também, chacoalhando o corpinho rechonchudo. Meu pai – que desde a precoce morte de sua
mãe, passara a morar com os primos, e tinha por ela, mais que um carinho de
irmão, um amor de filho (e por ela era assim amado) –, gostava de brincar: “Ô,
Moça, dizem que fulano de tal ganhou na loteria...” “Ah é? Oh, pobre dele”. Meu
pai ria e provocava docemente: “como pobre, Moça, ele ganhou na loteria, tá
rico, rico...”. E ela: “ih, não é que é mesmo? Ah, pobre!’ E ria, ria.
E nós também
ríamos.
Não um rir de
caçoar, mas um rir de querer tanto bem.
***
***
Acho que foi minha irmã Ruth quem perguntou inocentemente por que ela
sempre pontuava sua fala com a tal frase. E com a mesma inocência, e sem qualquer
mal-estar, Tia Mocinha contou que antes, muito tempo antes, ela não usava o
“oh, pobre”, mas sim, um outro bordão para qualquer assunto ou situação: “ah,
que galanteza!” Nascia uma criança: “ah, que galanteza!”; sua irmã
usava um vestido bonito: “ah, que galanteza!”; um passarinho aparecia no
quintal: “ah, que galanteza!”, e por aí as coisas andavam.
Pois num tal dia, lá estava ela atrasadíssima para suas aulas de corte e
costura, quando apareceu uma vizinha: “Dona Brasília, a senhora precisa me ouvir...”
e sem que Tia Mocinha pudesse dizer “a”, a mulher começou a se lamentar de
tudo. Tia Mocinha foi ficando cada vez mais aflita, zelosa que era com suas
aulas e alunos, e nem ouviu mais nada. E a vizinha no blá, blá, blá, até que,
lá pelas tantas, falou alguma coisa sobre o filho. Tentando se
desvencilhar, Tia Mocinha emendou seu “ah, que galanteza!” e viu a mulher ficar
enfurecida: “como, Dona Brasília, eu falo que meu filho tá doente e a senhora
diz ‘que galanteza’? A senhora não tem coração?!” E saiu espumando de raiva.
Tia Mocinha ficou se sentindo tão, mas tão culpada e triste, que dali para
frente, qualquer que fosse a situação, ruim ou boa, a frase seria para sempre:
“oh, pobre!”
Quando o marido ficou doente, ela cuidou dele com todo cuidado, sempre
dizendo: “pobre de Paulo.” E quando ele morreu, apesar de continuar repetindo
“oh, pobre”, ela comprou móveis bonitos e alugou uma casinha nova, que agora,
com mais liberdade, deixou ainda mais encantadora que as
anteriores. E gostou tanto da novidade, que passou a mudar de
casa constantemente, cada uma mais arrumadinha que a outra. E generosa
como era, a cada mudança, dava os móveis ainda muito novos para um parente ou
para quem mais precisasse. E se os quadros do Sagrado Coração a acompanhavam, e
o café da tarde continuava cheiroso como sempre, as cortinas, os tapetes e as
toalhinhas se renovavam com espantoso bom gosto.
No dia em que meu pai se foi, ela achegou-se a mim com os olhos fundos e
inundados, e disse bem baixinho seu “oh, pobre!” com uma dor, com uma
profundidade nunca reveladas antes. Um “pobre” que me abrigava. E abrigava meu
pai. E abrigava ela também. “Por que Deus não me levou, eu que sou velha
e doente? Foi levar meu menino, meu filho. Quero ir também”.
Não demorou muito tempo e ela ficou, de fato, gravemente doente. Fui com
minha mãe visitá-la num hospital em Campinas. Tia Mocinha estava magrinha, o
cabelinho ralo, a ternura embalada nos olhos tristes. Disse alguns
“pobre de fulano”, “pobre de sicrano”, ao falar dos parentes. Mas quando
mostramos a foto dos meus sobrinhos, ela sussurrou: “ah, que galanteza!”
Em um famoso “Becão” incrustado no centro de Itu, talvez ainda se possa
ouvir os ecos do meu pai-menino, na folga de seus adorados estudos, voando num
carrinho de rolimã. De uma janela aberta para o infinito, Tia
Mocinha arrisca um “oh, pobre!”, mas logo, logo se corrige sem culpa: “ah, que
galanteza!”.
E depois sorri feliz, orgulhosa de seu menino.
Ilustração: Erasmo Spadotto –
cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de
Piracicaba em 8/3/2013 e 22/3/2013
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