(caio silveira ramos)
Não há
ninguém desinteressante.
No fundo
da alma do ser aparentemente mais insosso, um mundo se revolve. Mesmo quem atravessa a vida inteira no
sossego e na pacatez, em algum momento perdido, um fato ou um ato acabam por
deixar um sinal certeiro. E um romance todo pode ser escrito em vinte volumes.
Mas há
aqueles que vão além: um simples apelido ou até um jeito peculiar de ser
constroem personagens completos.
Prontos. Como são os casos de Galo Cego, Mirtica e Trevisan.
Quem me
falou do Galo Cego foi o Zé Borges: eles moraram no mesmo bairro quando
crianças. Bom, talvez só o Zé fosse
criança, porque o Galo Cego já usava barba rala, camisa aberta no peito
castigado pelo sol e a corrente de metal barato no pescoço. Pelo menos é assim que eu imagino o Galo
Cego. Ou simplesmente o “Galo”, como diz o Zé Borges quando reconta as histórias
perdidas do amigo.
Pois o
Galo devia ser mais velho que sua turma. E acho que foi ele quem apresentou
para a molecada do bairro os estabelecimentos comerciais mais fuleiros da
cidade.
“Estabelecimentos
comerciais”: assim o Zé Borges chama aqueles botecos com prateleiras altas,
lotadas de cima a baixo com garrafas (milimetricamente arrumadas) da pinga mais
sem-vergonha. No balcão, sob o vidro já
embaçado, deve ter um pratinho de azeitona ou de tremoços, um ovo colorido de
1943 e uma mosca já caduca. Os mais
sofisticados têm uma mesa de sinuca com tacos meio tortos e o pano, de um verde
desbotado, cheio de marcas de giz.
Para
mim, o Galo devia ser o rei daqueles estabelecimentos todos. E das vielas, das esquinas, das noites
espalhadas. Quando a meninada se deu conta, o Galo já tinha perdido uma vista.
Imagino que fosse a vista esquerda, o que aprimorava sua mira, embora o Galo
não usasse arma de fogo e preferisse acertar suas contas por meio de seu
vernáculo burilado nas encruzilhadas.
Dizem as
más línguas, que a vista se perdeu quando o Galo, trançando as pernas na
madrugada, tropeçou na guia e feriu o olho num caco de garrafa. Mas para mim
foi numa briga, defendendo uma moça que estava apanhando de um safado qualquer.
O Galo chegou, intimou o sujeito, que largou o braço da garota e sorriu
debochado, porque percebeu que um comparsa chegava pelas costas do herói com a
navalha armada. O Galo ainda encheu a fuça do covarde, mas a navalha traíra
riscou seu olho sem pena. Os bandidos apanharam, fugiram e nunca mais foram
vistos. A moça se apaixonou pelo Galo que, pra tranquilizá-la, forjou no fundo
da dor um “não foi nada, não foi nada”. Mas a vista se perdeu para sempre e o
apelido arranhou sua alma como a navalha traiçoeira.
Galo
Cego que, pelo que o Zé falou, “vivia de expedientes”, se meteu em muitas
outras brigas. Por ele, pelos amigos, pelas mulheres. Mas foi ficando velho, a
molecada pra quem ele ensinou a malandragem foi tomando rumo, arranjando
emprego pra sobreviver, se aprumando, constituindo família, deixando o Galo
sozinho nos estabelecimentos comerciais e nas brigas.
Muitas
histórias contam do Galo. Algumas dizem que ele mesmo inventou, como aquela que
vivia repetindo nos últimos tempos, se gabando: a de que tinha namorado, antes
de ficar famosa, uma atriz da Globo nascida na cidade. O pessoal ria: “menos,
Galo! Pega leve. Você não, né?” É que
quando o Galo começou a contar essa, a bebida vinha comendo bonito seu fígado e
o sol castigando ainda mais sem dó sua pele enrugada. Aliás, ele parecia mais velho do que de fato
era. Tossia, resmungava, tava ficando
rabugento. Apanhando mais do que batendo.
Dizem
que teve filhos, mas mesmo quando começou a capengar, parece que nenhum quis
saber dele. Ele que, aliás, sempre morou com os pais. Falaram que era bom filho, nunca os abandonou
porque os dois tiveram ele tarde e sempre pareceram doentes.
A mãe
enviuvou, o Galo deu uma sumida. Num
estabelecimento comercial qualquer, perguntaram dele durante uma conversa
vadia. Alguém disse que tinha parado de beber, que tava cuidando da mãe e
arranjara um emprego pesado para pagar os remédios dele e dela.
Mas o Zé
Borges veio dizer outro dia “que soube por alguém que”, depois que a mãe
partiu, o Galo degringolou de novo. E
agora tava, vai não vai, num hospital vagabundo qualquer, definhando, pele e
osso. No bairro, dizem até que ele já
morreu. “Coitado do Galo”, diz o Zé
Borges.
Zé
Borges, que pensando bem, aqui entre nós, daria um personagem e tanto.
***
Quem
conhece bem o Mirtica é o tio Vavá, que na verdade não é meu tio, mas é tratado
como se fosse. De qualquer forma, não
tem uma história contada pelo tio Vavá, nem uma conversa entre ele e seu irmão
Roberto, o Brancão, que lá pelas tantas o Mirtica não apareça. E como nunca tive o prazer de conhecer o Mirtica,
para mim ele é uma verdadeira lenda. Um mito.
De fato,
a presença do Mirtica nas conversas tem diferentes funções, dependendo da
situação e do estado de ânimo dos participantes. Vejamos lá alguns casos:
Mirtica
como indicador de tempo:
“(...)
não, não foi nesse ano que você falou! Foi antes! A segunda filha do Mirtica
nem tinha nascido ainda nessa época!”
Mirtica
como índice de evolução patrimonial:
“(...)
eh, eh. Olha essa foto! Quem tinha uma Brasília velha igual a essa era o
Mirtica! As coisas mudaram... Hoje ele só anda de carrão!
Mirtica:
uma referência na moda:
“Chique
mesmo era aquela calça boca-de-sino do Mirtica!”
Mirtica:
a verticalização das cidades e a mudança nos costumes:
“(...)
concordo, pode até ser mais seguro. Mas morar em prédio é diferente de casa:
magina se eu tenho amizade com meu vizinho do apartamento da frente que nem eu
tinha com o Mirtica...”
Mirtica
e o aquecimento global:
“(...)
hoje, mesmo no frio, vê se o Mirtica ia conseguir usar aquele casacão dele...”
Mirtica
e os programas de culinária gourmet:
“Picanha?
Desse jeito? Muita frescura pro meu gosto! Picanha boa mesmo foi aquela que a
gente comeu lá na casa do Mirtica!”
Mirtica:
solução ou polêmica?
“Não,
Brancão! Não tá comigo: a morsa grande o pai deu de presente pro Mirtica. Você lembra como o pai gostava dele! Já a torquês,
o Mirtica emprestou faz uns trezentos anos, mas devolveu quando o pai ainda
tava vivo. E comigo também não tá!”
É
verdade: seu Domingos, pai do tio Vavá e do seu Roberto, gostava mesmo do
Mirtica. Pedreiro de mão cheia, grande e forte como um touro - capaz de
derrotar no braço de ferro, e ao mesmo tempo, os dois filhos parrudos (e, se
bobeasse, o Mirtica junto) –, seu Domingos era um trabalhador incansável, mas
também um apreciador das boas coisas da vida. “Eh, é uma beleza tudo!!!” era
uma de suas frases preferidas.
Seu
Domingos, já aposentado, gostava de receber os parentes e amigos ali na entrada
da casa (construída por ele), entre o portão e a porta da sala: em vez do carro
(a idade não o deixava mais pegar no volante), ele colocou naquele espaço uma
mesa de tampo quadrado e quatro cadeiras, todas de madeira rústica e
provavelmente feitas também por ele.
Tal qual
um rei, ele se sentava na cadeira voltada para o portão e, com as mãos apoiadas
na bengala ou no tampo da mesa, botava os grandes olhos azuis na rua ou
conversava longamente com quem o visitava. Enquanto isso, aquele soberano
apreciava calmamente um copo de vinho ou cerveja. Eu, que conheci seu Domingos
quando ele já tinha quase oitenta anos, sempre aparecia por lá para bater um
papo ou simplesmente levar uma caixa de bombons ou alguma outra guloseima: ele
amava doces. Eu, sua sabedoria. “Eh,
Piracicaba! Que beleza!”.
Muitas
vezes, enquanto estava por lá, vi chegar o tio Vavá com sua alegria. E seu
Domingos, depois de ganhar na testa um beijo do filho, abria o sorriso e com a
voz brotada lá em Laranjal Paulista (mas tecida pela vida toda de “lavoro” em
Santo André) perguntava da nora, dos netos e, lógico, do Mirtica.
“Mandou
um abraço pra mim, fio? Ah! Que amigo bom é o Mirtica! A vida é mesmo uma
beleza!” – dizia seu Domingos.
Seu
Domingos que, pensando bem, aqui entre nós, daria um personagem e tanto.
***
O Trevisan
era um grosso. E não só os colegas do ponto de táxi diziam isso: a maioria dos
passageiros – principalmente as senhorinhas (e o bairro era repleto delas) –,
os porteiros dos prédios, o pessoal da padaria e os entregadores de pizza
viviam reclamando dele para o Zé Carlos Alves, o coordenador do ponto, que vire
e mexe tinha que perder uma tarde inteira no departamento de trânsito para
livrar a cara do Trevisan.
Não que
o sujeito fosse má pessoa. O problema era que ele vivia dizendo que tinha sido
motorista do falecido humorista Costinha e por isso gostava de contar, para quem
quisesse ou não ouvir, piadas que fariam o próprio comediante ruborizar de
vergonha, tão escabrosas eram elas. Pra
completar o quadro, o Trevisan tinha uma boca murcha sem dentes (que o ajudava
em caras e trejeitos que lembravam de fato o Costinha), usava normalmente
camisas do tipo polo que não lhe cobriam totalmente a barriga e calçava
diariamente vistosas sandálias de tiras claras e grossas. Ninguém entendia como aquele senhor de
cabelos totalmente brancos, que já devia ser até avô, pudesse falar tanta
besteira por centímetro quadrado de frase.
Marrento,
vivia discutindo por qualquer bobagem com os colegas do ponto: dera um empurrão
no Ivan (que ao cair esfolara o braço no muro), ameaçara puxar uma faca pro
Mosquito e até o Carlão, que fala manso e normalmente é sereno como um monge,
ele tirara do sério. Uma vez, passei de
ônibus em frente ao ponto e vi seu Valdir e o Trevisan parecendo duas crianças
birrentas, sentados de braços cruzados, emburrados e mudos, cada qual em seu
extremo do banco de madeira. Aliás, os dois viviam às turras, pregando quase
todos os dias com fita adesiva, no telefone do ponto, bilhetinhos com frases
altamente motivacionais como “é a sua inveja que faz meu carro acelerar” e
outras tantas com um linguajar nem tão polido assim.
Adorava
aterrorizar as velhinhas que desavisadas pegavam seu carro e acabavam ouvindo
suas piadas indecentes. As que já conheciam o Trevisan (que reclamava uma
barbaridade com elas quando a corrida era curta), ao perceberem que o carro
dele estava em primeiro lugar no ponto, disfarçavam e faziam uma horinha na
banca do João (vendo alguma revista ou comprando figurinhas para os netos) até
que o Trevisan saísse para uma corrida.
Se ele percebesse antes, gritava: “ô dona fulana, pode vir, não tenha
medo, não! Seu preferido não está aqui, mas eu faço um servicinho pra senhora!”
Algumas continuavam fingindo na banca, mas muitas atravessavam a rua, falavam
“seu descarado!” e entravam no carro seguinte.
Dizem que numa época em que ficou quase sem clientes, atendia ao
telefone do ponto mudando a voz e dizendo seu primeiro nome, que quase ninguém
conhecia. Ele saía para buscar a cliente no endereço informado, mas voltava
logo: a passageira quando via que o tal “Antônio” era o Trevisan e não um novo
taxista no ponto, recusava a corrida.
Ele
gostava de dizer que tinha perdido um dos dedos da mão durante uma briga com um
sujeito armado: no primeiro tiro, o dedo tinha voado longe. Mas quando o outro
foi dar o segundo, Trevisan conseguiu desarmá-lo, acabando por matar o
sujeito. Dizia que tinha sido absolvido
por legítima defesa, mas eu e o Zé Carlos Alves desconfiávamos que aquela
história toda era mentira e o Trevisan tinha mesmo perdido o dedo fugindo de um
marido traído. Porque o cara podia ser
feio como o capeta, mas era metido a namorador incorrigível.
Quase nenhuma
empregada doméstica passava pelo ponto sem que o Trevisan se
entusiasmasse. Nessas horas, para
conquistar, se fazia educado, “posso ajudá-la a carregar as sacolas?” Se a moça caísse na conversa, ele ficava tão
empolgado que dava presente, ajudava a família com cesta básica, fazia
comidinhas nos encontros amorosos.
Quando se apaixonava de fato, perdia a cabeça, se metia em dívidas e
comprava até celular para falar mais tempo com a escolhida.
Foi o
que aconteceu com a moça da cicatriz.
***
Zé
Carlos Alves, o coordenador do ponto de táxi em que trabalhava o Trevisan, era
o oposto do colega: vivia para a família, se orgulhava da honestidade,
respeitava de criança de colo a idoso com mais de cem anos, cumpria as
promessas mesmo que baseadas somente no fio do seu bigode e, por um amigo ou
cliente, era capaz de ir até o outro lado da Muralha da China com seu
táxi. Além da esposa e da neta - que por
ter superado um grave problema de saúde, era seu grande orgulho, exemplo e
paixão -, tinha quatro filhas, o que fazia com que tivesse a mais profunda
consideração por todas as mulheres do mundo.
Família,
nome, amigos e honra eram os grandes tesouros do Zé. E se alguém mexesse com
qualquer um deles, ele virava bicho.
Foi o que aconteceu certa vez numa história do Zé Dançarino, também
taxista do ponto. Pois não é que o tal
sujeito chegou num prédio e pediu pra chamar certo morador? “Quem que eu devo anunciar?”, perguntou o
porteiro. E o outro: “José Carlos,
taxista.”
O
morador, que era cliente do ponto e sabia que o Zé não o procuraria por
qualquer coisa, desceu voando. Quando
chegou na portaria, deu de cara com o Zé Dançarino, que teve a cara de pau de
pedir cinquentinha “pra comprar um remédio pra mãe doente, coitada”. O cliente, pego de surpresa, sacou a grana e
deu. Mas depois, se sentindo uma besta,
contou tudo pro Carlão, que ficou furioso e repassou para o Zé Carlos
Alves. Que ficou mais furioso ainda e partiu
pra cima do Zé Dançarino: “você usou meu nome, safado!” “Mas eu também me chamo
José Carlos!” “Mas o cliente não sabia disso, malandro!”
O Zé
Carlos Alves, além de enfrentar as artes do Zé Dançarino, tinha o maior
trabalho com o Trevisan, tantas eram as reclamações do mau comportamento do sujeito. Fosse lá por que motivo, eu gostava de
provocar o Zé Carlos Alves dizendo que, no fundo, o Trevisan era um
incompreendido. E eu dava até exemplo
disso. Ele tratava mal os passageiros?
Pois eu contava uma história acontecida comigo: num dia de chuva forte, estava
eu de terno e gravata, sentado no banco do ponto, esperando que algum táxi
aparecesse. Eis que o Trevisan encostou
o carro, abaixou o vidro e disse: “não posso levar você hoje: tenho uma corrida
marcada pra daqui a cinco minutos. Mas sobe aí que eu vou encontrar um carro em
algum outro ponto”. Eu disse que não
precisava, ele insistiu e lá fomos nós. Uns três quarteirões depois,
encontramos um táxi num ponto, o Trevisan chamou o colega e quase ameaçando,
recomendou: “leva o homem direitinho que é gente boa”. No outro dia, contei a história e provoquei
o Zé Carlos Alves: “não falei que o Trevisan é um incompreendido?” E o Zé: “incompreendido? Vai nessa, vai...”
Mas o
que eu gostava de dizer ao Zé Carlos é que o Trevisan, na verdade, era um
romântico. E, falando sério, até comecei
a acreditar de fato nisso.
O Trevisan
vivia contando sobre suas façanhas. No começo eu fingia que ouvia e pensava
noutra coisa, achando que era papo de cafajeste. Mas depois comecei a perceber que debaixo daquela
papagaiada toda se revelava um ingênuo.
As mulheres faziam dele gato e sapato.
Teve até o marido de uma delas (que jurara pro Trevisan ser viúva) que
um dia ligou para ele e chacoteou: “e aí, meu irmão? Não vai mais mandar cesta
básica aqui pra casa?”. Trevisan ficou
doido, mas era assim mesmo: quando se apaixonava, dava presente, comprava leite
especial se amada dizia que o filhinho tinha intolerância à lactose e por aí
vai. Celular então, já tinha comprado
uns cinco para diferentes namoradas.
Numa das
corridas, ele falou da conquista da vez.
A moça estava no ponto de ônibus, não era bonita, mas ele também
não. Trevisan puxou papo, conversaram,
começaram a se ver. Um dia, ele a levou pra casinha dele.
Quando
me encontrou, veio satisfeito me contar. Disse que a moça tinha uma cicatriz na
barriga: devia ter tido um corte profundo e alguém costurara tudo com má
vontade e relaxo. A pele ficara toda
torta. Ele riu e com a boca torcida
tentou imitar a cicatriz da barriga de moça. Achei de mau gosto, me
fechei. Mas ele continuou. Não por minha
causa. Parou de caçoar, falou “tadinha” e começou a se abrandar. Primeiro em
dó, depois em ternura. “Que terá sido
aquilo: facada, tiro, perda de um rim? Aconteceu um troço violento ali...” Chegou a falar que talvez um maldito tivesse
tentado arrancar da barriga dela um filho à navalha. Sofria a moça, sofria.
Nas
corridas seguintes, não parou mais de falar dela. Começava fingindo a caçoada,
imitava a cicatriz torta. Mas depois se derramava. Aquela cicatriz o atraía
mais que o corpo todo dela. Que o rosto. Que o mundo. Aquela cicatriz a tornava tão miserável
quanto ele. Estava apaixonado. Por ela, por aquela cicatriz. Apaixonado.
Talvez
ela também.
***
Durante
muitas corridas, o Trevisan falou de sua paixão pela moça da cicatriz. Ele até emagreceu e parou de contar as piadas
esdrúxulas, mas continuava bem-humorado. Diminuiu a bebida. Estava feliz.
Assobiava até.
Nessa
mesma época conseguiu financiar um apartamento num conjunto habitacional que
ficava bem longe. O lugar era barra pesada e ele vivia encontrando pelos
corredores uma moçada mal-encarada usando droga. No começo teve medo, mas depois já estava até
dando conselhos pra rapaziada.
Apaixonado, aprendera uma receita para fazer uma carninha grelhada
especial pra amada. E estava até pensando em guardar um dinheiro para arrumar a
cicatriz dela. Embora achasse que sua eleita fosse linda de qualquer jeito.
Então
teve o dia em que o Zé Carlos esperava em segundo no ponto - logo atrás do táxi
do apaixonado -, quando chegou um casal com malas e filhos. Bom dia, bom dia,
entraram no carro do Trevisan: o marido no banco da frente. A mulher e as
crianças no banco de trás. Partiram. Um minuto depois, estavam de volta ao
ponto. Furioso, o homem puxou a família pra fora do carro do Trevisan (que
estava quieto e sem graça) e perguntou ao Zé se poderia levá-los ao
aeroporto. No caminho, todos instalados,
o Zé perguntou o que tinha acontecido: era coordenador do ponto e qualquer
reclamação ele poderia tomar providência. O tal homem falou então que, nem bem
tinha começado a corrida, “o cafajeste do outro taxista – Trevisan o nome dele,
não é? -, tinha mexido no retrovisor pra bisbilhotar sua esposa no banco de
trás”. Antes que o Zé pudesse falar
qualquer coisa, o homem foi dizendo que não perderia tempo naquele momento. Mas
na volta da viagem iria ele mesmo ao departamento de trânsito denunciar o Trevisan.
Se ele
teve uma recaída ou fora sua fama que induzira o passageiro, não sem sabe. Mas aquela nova reclamação e o receio dos
outros taxistas expulsaram o Trevisan do ponto.
Depois de ficar um tempo sem trabalhar, voltou, mas num ponto três
quarteirões pra baixo.
Um dia o
Zé me falou que o Trevisan tinha tido uma discussão com um pipoqueiro e levara
uma pedrada na testa. Mas não deve ter sido coisa muito grave: uns dois meses
depois, ele me viu andando na calçada, botou o bração pra fora do carro e
chamou: “fala, compadre!”.
Depois
disso o perdi de vista. De vez em quando perguntava para o Zé: “tem visto o Trevisan?”. E o Zé: “às vezes esbarro com ele por aí. Mas
quero distância...”.
Porém,
houve um dia em que encontrei o Zé abatido.
Quase tremendo, tentou disfarçar: “ficou sabendo do seu amigo?”. “Seu
amigo” ou “seu protegido” era como o Zé se referia ao Trevisan quando
conversava comigo. Mas naquele dia a
coisa não parecia boa. E não era: o Trevisan
tinha sofrido um grave acidente: sozinho, estourara o carro na murada de uma
avenida movimentada ali perto e morrera.
“Foi hoje?” “Faz umas duas semanas. Quem contou foram os colegas do ponto
dele”.
Ficamos
os dois quietos. O Zé se abalava muito
quando algum colega morria de acidente ou assalto. Já eu fiquei imaginando como
teria sido o velório e o enterro do Trevisan: alguns poucos colegas do ponto (mas
não todos), quem sabe uma filha, talvez um vizinho. Num canto, a moça da cicatriz. Mas como os outros iriam saber? A cicatriz
escondida como ela. Como a lágrima dela.
Depois foi embora, ninguém nem percebeu.
Ninguém nunca percebia mesmo.
Agora já
era tarde, mas se eu soubesse, teria ido. O Zé Carlos Alves também.
Zé
Carlos que, pensando bem, aqui entre nós, daria um personagem e tanto.
Publicado em série
no Jornal de Piracicaba em 11/3, 25/3, 8/4, 22/4 e 6/5/2018
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