sexta-feira, 13 de julho de 2018

Três personagens e um quase autor


(caio silveira ramos)

Não há ninguém desinteressante.
No fundo da alma do ser aparentemente mais insosso, um mundo se revolve.  Mesmo quem atravessa a vida inteira no sossego e na pacatez, em algum momento perdido, um fato ou um ato acabam por deixar um sinal certeiro. E um romance todo pode ser escrito em vinte volumes.
Mas há aqueles que vão além: um simples apelido ou até um jeito peculiar de ser constroem personagens completos.  Prontos. Como são os casos de Galo Cego, Mirtica e Trevisan.
Quem me falou do Galo Cego foi o Zé Borges: eles moraram no mesmo bairro quando crianças.  Bom, talvez só o Zé fosse criança, porque o Galo Cego já usava barba rala, camisa aberta no peito castigado pelo sol e a corrente de metal barato no pescoço.  Pelo menos é assim que eu imagino o Galo Cego. Ou simplesmente o “Galo”, como diz o Zé Borges quando reconta as histórias perdidas do amigo.
Pois o Galo devia ser mais velho que sua turma. E acho que foi ele quem apresentou para a molecada do bairro os estabelecimentos comerciais mais fuleiros da cidade.
“Estabelecimentos comerciais”: assim o Zé Borges chama aqueles botecos com prateleiras altas, lotadas de cima a baixo com garrafas (milimetricamente arrumadas) da pinga mais sem-vergonha.  No balcão, sob o vidro já embaçado, deve ter um pratinho de azeitona ou de tremoços, um ovo colorido de 1943 e uma mosca já caduca.  Os mais sofisticados têm uma mesa de sinuca com tacos meio tortos e o pano, de um verde desbotado, cheio de marcas de giz.
Para mim, o Galo devia ser o rei daqueles estabelecimentos todos.  E das vielas, das esquinas, das noites espalhadas. Quando a meninada se deu conta, o Galo já tinha perdido uma vista. Imagino que fosse a vista esquerda, o que aprimorava sua mira, embora o Galo não usasse arma de fogo e preferisse acertar suas contas por meio de seu vernáculo burilado nas encruzilhadas.
Dizem as más línguas, que a vista se perdeu quando o Galo, trançando as pernas na madrugada, tropeçou na guia e feriu o olho num caco de garrafa. Mas para mim foi numa briga, defendendo uma moça que estava apanhando de um safado qualquer. O Galo chegou, intimou o sujeito, que largou o braço da garota e sorriu debochado, porque percebeu que um comparsa chegava pelas costas do herói com a navalha armada. O Galo ainda encheu a fuça do covarde, mas a navalha traíra riscou seu olho sem pena. Os bandidos apanharam, fugiram e nunca mais foram vistos. A moça se apaixonou pelo Galo que, pra tranquilizá-la, forjou no fundo da dor um “não foi nada, não foi nada”. Mas a vista se perdeu para sempre e o apelido arranhou sua alma como a navalha traiçoeira.
Galo Cego que, pelo que o Zé falou, “vivia de expedientes”, se meteu em muitas outras brigas. Por ele, pelos amigos, pelas mulheres. Mas foi ficando velho, a molecada pra quem ele ensinou a malandragem foi tomando rumo, arranjando emprego pra sobreviver, se aprumando, constituindo família, deixando o Galo sozinho nos estabelecimentos comerciais e nas brigas.
Muitas histórias contam do Galo. Algumas dizem que ele mesmo inventou, como aquela que vivia repetindo nos últimos tempos, se gabando: a de que tinha namorado, antes de ficar famosa, uma atriz da Globo nascida na cidade. O pessoal ria: “menos, Galo! Pega leve. Você não, né?”  É que quando o Galo começou a contar essa, a bebida vinha comendo bonito seu fígado e o sol castigando ainda mais sem dó sua pele enrugada.  Aliás, ele parecia mais velho do que de fato era.  Tossia, resmungava, tava ficando rabugento. Apanhando mais do que batendo.
Dizem que teve filhos, mas mesmo quando começou a capengar, parece que nenhum quis saber dele. Ele que, aliás, sempre morou com os pais.  Falaram que era bom filho, nunca os abandonou porque os dois tiveram ele tarde e sempre pareceram doentes.
A mãe enviuvou, o Galo deu uma sumida.  Num estabelecimento comercial qualquer, perguntaram dele durante uma conversa vadia. Alguém disse que tinha parado de beber, que tava cuidando da mãe e arranjara um emprego pesado para pagar os remédios dele e dela.
Mas o Zé Borges veio dizer outro dia “que soube por alguém que”, depois que a mãe partiu, o Galo degringolou de novo.  E agora tava, vai não vai, num hospital vagabundo qualquer, definhando, pele e osso.   No bairro, dizem até que ele já morreu.  “Coitado do Galo”, diz o Zé Borges. 
Zé Borges, que pensando bem, aqui entre nós, daria um personagem e tanto.

***

Quem conhece bem o Mirtica é o tio Vavá, que na verdade não é meu tio, mas é tratado como se fosse.  De qualquer forma, não tem uma história contada pelo tio Vavá, nem uma conversa entre ele e seu irmão Roberto, o Brancão, que lá pelas tantas o Mirtica não apareça.  E como nunca tive o prazer de conhecer o Mirtica, para mim ele é uma verdadeira lenda. Um mito.
De fato, a presença do Mirtica nas conversas tem diferentes funções, dependendo da situação e do estado de ânimo dos participantes.  Vejamos lá alguns casos:
Mirtica como indicador de tempo:
“(...) não, não foi nesse ano que você falou! Foi antes! A segunda filha do Mirtica nem tinha nascido ainda nessa época!”
Mirtica como índice de evolução patrimonial:
“(...) eh, eh. Olha essa foto! Quem tinha uma Brasília velha igual a essa era o Mirtica! As coisas mudaram... Hoje ele só anda de carrão!
Mirtica: uma referência na moda:
“Chique mesmo era aquela calça boca-de-sino do Mirtica!”
Mirtica: a verticalização das cidades e a mudança nos costumes:
“(...) concordo, pode até ser mais seguro. Mas morar em prédio é diferente de casa: magina se eu tenho amizade com meu vizinho do apartamento da frente que nem eu tinha com o Mirtica...”
Mirtica e o aquecimento global:
“(...) hoje, mesmo no frio, vê se o Mirtica ia conseguir usar aquele casacão dele...”
Mirtica e os programas de culinária gourmet:
“Picanha? Desse jeito? Muita frescura pro meu gosto! Picanha boa mesmo foi aquela que a gente comeu lá na casa do Mirtica!”
Mirtica: solução ou polêmica?
“Não, Brancão! Não tá comigo: a morsa grande o pai deu de presente pro Mirtica.  Você lembra como o pai gostava dele! Já a torquês, o Mirtica emprestou faz uns trezentos anos, mas devolveu quando o pai ainda tava vivo. E comigo também não tá!”
É verdade: seu Domingos, pai do tio Vavá e do seu Roberto, gostava mesmo do Mirtica. Pedreiro de mão cheia, grande e forte como um touro - capaz de derrotar no braço de ferro, e ao mesmo tempo, os dois filhos parrudos (e, se bobeasse, o Mirtica junto) –, seu Domingos era um trabalhador incansável, mas também um apreciador das boas coisas da vida. “Eh, é uma beleza tudo!!!” era uma de suas frases preferidas.
Seu Domingos, já aposentado, gostava de receber os parentes e amigos ali na entrada da casa (construída por ele), entre o portão e a porta da sala: em vez do carro (a idade não o deixava mais pegar no volante), ele colocou naquele espaço uma mesa de tampo quadrado e quatro cadeiras, todas de madeira rústica e provavelmente feitas também por ele.
Tal qual um rei, ele se sentava na cadeira voltada para o portão e, com as mãos apoiadas na bengala ou no tampo da mesa, botava os grandes olhos azuis na rua ou conversava longamente com quem o visitava. Enquanto isso, aquele soberano apreciava calmamente um copo de vinho ou cerveja. Eu, que conheci seu Domingos quando ele já tinha quase oitenta anos, sempre aparecia por lá para bater um papo ou simplesmente levar uma caixa de bombons ou alguma outra guloseima: ele amava doces. Eu, sua sabedoria.  “Eh, Piracicaba! Que beleza!”. 
Muitas vezes, enquanto estava por lá, vi chegar o tio Vavá com sua alegria. E seu Domingos, depois de ganhar na testa um beijo do filho, abria o sorriso e com a voz brotada lá em Laranjal Paulista (mas tecida pela vida toda de “lavoro” em Santo André) perguntava da nora, dos netos e, lógico, do Mirtica.
“Mandou um abraço pra mim, fio? Ah! Que amigo bom é o Mirtica! A vida é mesmo uma beleza!” – dizia seu Domingos.
Seu Domingos que, pensando bem, aqui entre nós, daria um personagem e tanto.

***

O Trevisan era um grosso. E não só os colegas do ponto de táxi diziam isso: a maioria dos passageiros – principalmente as senhorinhas (e o bairro era repleto delas) –, os porteiros dos prédios, o pessoal da padaria e os entregadores de pizza viviam reclamando dele para o Zé Carlos Alves, o coordenador do ponto, que vire e mexe tinha que perder uma tarde inteira no departamento de trânsito para livrar a cara do Trevisan.
Não que o sujeito fosse má pessoa. O problema era que ele vivia dizendo que tinha sido motorista do falecido humorista Costinha e por isso gostava de contar, para quem quisesse ou não ouvir, piadas que fariam o próprio comediante ruborizar de vergonha, tão escabrosas eram elas.  Pra completar o quadro, o Trevisan tinha uma boca murcha sem dentes (que o ajudava em caras e trejeitos que lembravam de fato o Costinha), usava normalmente camisas do tipo polo que não lhe cobriam totalmente a barriga e calçava diariamente vistosas sandálias de tiras claras e grossas.   Ninguém entendia como aquele senhor de cabelos totalmente brancos, que já devia ser até avô, pudesse falar tanta besteira por centímetro quadrado de frase. 
Marrento, vivia discutindo por qualquer bobagem com os colegas do ponto: dera um empurrão no Ivan (que ao cair esfolara o braço no muro), ameaçara puxar uma faca pro Mosquito e até o Carlão, que fala manso e normalmente é sereno como um monge, ele tirara do sério.   Uma vez, passei de ônibus em frente ao ponto e vi seu Valdir e o Trevisan parecendo duas crianças birrentas, sentados de braços cruzados, emburrados e mudos, cada qual em seu extremo do banco de madeira. Aliás, os dois viviam às turras, pregando quase todos os dias com fita adesiva, no telefone do ponto, bilhetinhos com frases altamente motivacionais como “é a sua inveja que faz meu carro acelerar” e outras tantas com um linguajar nem tão polido assim.
Adorava aterrorizar as velhinhas que desavisadas pegavam seu carro e acabavam ouvindo suas piadas indecentes. As que já conheciam o Trevisan (que reclamava uma barbaridade com elas quando a corrida era curta), ao perceberem que o carro dele estava em primeiro lugar no ponto, disfarçavam e faziam uma horinha na banca do João (vendo alguma revista ou comprando figurinhas para os netos) até que o Trevisan saísse para uma corrida.  Se ele percebesse antes, gritava: “ô dona fulana, pode vir, não tenha medo, não! Seu preferido não está aqui, mas eu faço um servicinho pra senhora!” Algumas continuavam fingindo na banca, mas muitas atravessavam a rua, falavam “seu descarado!” e entravam no carro seguinte.  Dizem que numa época em que ficou quase sem clientes, atendia ao telefone do ponto mudando a voz e dizendo seu primeiro nome, que quase ninguém conhecia. Ele saía para buscar a cliente no endereço informado, mas voltava logo: a passageira quando via que o tal “Antônio” era o Trevisan e não um novo taxista no ponto, recusava a corrida.
Ele gostava de dizer que tinha perdido um dos dedos da mão durante uma briga com um sujeito armado: no primeiro tiro, o dedo tinha voado longe. Mas quando o outro foi dar o segundo, Trevisan conseguiu desarmá-lo, acabando por matar o sujeito.  Dizia que tinha sido absolvido por legítima defesa, mas eu e o Zé Carlos Alves desconfiávamos que aquela história toda era mentira e o Trevisan tinha mesmo perdido o dedo fugindo de um marido traído.  Porque o cara podia ser feio como o capeta, mas era metido a namorador incorrigível.
Quase nenhuma empregada doméstica passava pelo ponto sem que o Trevisan se entusiasmasse.  Nessas horas, para conquistar, se fazia educado, “posso ajudá-la a carregar as sacolas?”  Se a moça caísse na conversa, ele ficava tão empolgado que dava presente, ajudava a família com cesta básica, fazia comidinhas nos encontros amorosos.  Quando se apaixonava de fato, perdia a cabeça, se metia em dívidas e comprava até celular para falar mais tempo com a escolhida.
Foi o que aconteceu com a moça da cicatriz.

***

Zé Carlos Alves, o coordenador do ponto de táxi em que trabalhava o Trevisan, era o oposto do colega: vivia para a família, se orgulhava da honestidade, respeitava de criança de colo a idoso com mais de cem anos, cumpria as promessas mesmo que baseadas somente no fio do seu bigode e, por um amigo ou cliente, era capaz de ir até o outro lado da Muralha da China com seu táxi.  Além da esposa e da neta - que por ter superado um grave problema de saúde, era seu grande orgulho, exemplo e paixão -, tinha quatro filhas, o que fazia com que tivesse a mais profunda consideração por todas as mulheres do mundo.
Família, nome, amigos e honra eram os grandes tesouros do Zé. E se alguém mexesse com qualquer um deles, ele virava bicho.    Foi o que aconteceu certa vez numa história do Zé Dançarino, também taxista do ponto.  Pois não é que o tal sujeito chegou num prédio e pediu pra chamar certo morador?  “Quem que eu devo anunciar?”, perguntou o porteiro.  E o outro: “José Carlos, taxista.”
O morador, que era cliente do ponto e sabia que o Zé não o procuraria por qualquer coisa, desceu voando.   Quando chegou na portaria, deu de cara com o Zé Dançarino, que teve a cara de pau de pedir cinquentinha “pra comprar um remédio pra mãe doente, coitada”.  O cliente, pego de surpresa, sacou a grana e deu.  Mas depois, se sentindo uma besta, contou tudo pro Carlão, que ficou furioso e repassou para o Zé Carlos Alves.  Que ficou mais furioso ainda e partiu pra cima do Zé Dançarino: “você usou meu nome, safado!” “Mas eu também me chamo José Carlos!” “Mas o cliente não sabia disso, malandro!”
O Zé Carlos Alves, além de enfrentar as artes do Zé Dançarino, tinha o maior trabalho com o Trevisan, tantas eram as reclamações do mau comportamento do sujeito.    Fosse lá por que motivo, eu gostava de provocar o Zé Carlos Alves dizendo que, no fundo, o Trevisan era um incompreendido.   E eu dava até exemplo disso.  Ele tratava mal os passageiros? Pois eu contava uma história acontecida comigo: num dia de chuva forte, estava eu de terno e gravata, sentado no banco do ponto, esperando que algum táxi aparecesse.   Eis que o Trevisan encostou o carro, abaixou o vidro e disse: “não posso levar você hoje: tenho uma corrida marcada pra daqui a cinco minutos. Mas sobe aí que eu vou encontrar um carro em algum outro ponto”.  Eu disse que não precisava, ele insistiu e lá fomos nós. Uns três quarteirões depois, encontramos um táxi num ponto, o Trevisan chamou o colega e quase ameaçando, recomendou: “leva o homem direitinho que é gente boa”.   No outro dia, contei a história e provoquei o Zé Carlos Alves: “não falei que o Trevisan é um incompreendido?”  E o Zé: “incompreendido? Vai nessa, vai...”
Mas o que eu gostava de dizer ao Zé Carlos é que o Trevisan, na verdade, era um romântico.  E, falando sério, até comecei a acreditar de fato nisso.
O Trevisan vivia contando sobre suas façanhas. No começo eu fingia que ouvia e pensava noutra coisa, achando que era papo de cafajeste.   Mas depois comecei a perceber que debaixo daquela papagaiada toda se revelava um ingênuo.   As mulheres faziam dele gato e sapato.   Teve até o marido de uma delas (que jurara pro Trevisan ser viúva) que um dia ligou para ele e chacoteou: “e aí, meu irmão? Não vai mais mandar cesta básica aqui pra casa?”.  Trevisan ficou doido, mas era assim mesmo: quando se apaixonava, dava presente, comprava leite especial se amada dizia que o filhinho tinha intolerância à lactose e por aí vai.  Celular então, já tinha comprado uns cinco para diferentes namoradas.
Numa das corridas, ele falou da conquista da vez.  A moça estava no ponto de ônibus, não era bonita, mas ele também não.  Trevisan puxou papo, conversaram, começaram a se ver. Um dia, ele a levou pra casinha dele. 
Quando me encontrou, veio satisfeito me contar. Disse que a moça tinha uma cicatriz na barriga: devia ter tido um corte profundo e alguém costurara tudo com má vontade e relaxo.   A pele ficara toda torta.   Ele riu e com a boca torcida tentou imitar a cicatriz da barriga de moça. Achei de mau gosto, me fechei.  Mas ele continuou. Não por minha causa. Parou de caçoar, falou “tadinha” e começou a se abrandar. Primeiro em dó, depois em ternura.   “Que terá sido aquilo: facada, tiro, perda de um rim? Aconteceu um troço violento ali...”  Chegou a falar que talvez um maldito tivesse tentado arrancar da barriga dela um filho à navalha.  Sofria a moça, sofria. 
Nas corridas seguintes, não parou mais de falar dela. Começava fingindo a caçoada, imitava a cicatriz torta. Mas depois se derramava. Aquela cicatriz o atraía mais que o corpo todo dela. Que o rosto. Que o mundo.   Aquela cicatriz a tornava tão miserável quanto ele. Estava apaixonado. Por ela, por aquela cicatriz.  Apaixonado. 
Talvez ela também.

***

Durante muitas corridas, o Trevisan falou de sua paixão pela moça da cicatriz.  Ele até emagreceu e parou de contar as piadas esdrúxulas, mas continuava bem-humorado. Diminuiu a bebida. Estava feliz. Assobiava até. 
Nessa mesma época conseguiu financiar um apartamento num conjunto habitacional que ficava bem longe. O lugar era barra pesada e ele vivia encontrando pelos corredores uma moçada mal-encarada usando droga.  No começo teve medo, mas depois já estava até dando conselhos pra rapaziada.   Apaixonado, aprendera uma receita para fazer uma carninha grelhada especial pra amada. E estava até pensando em guardar um dinheiro para arrumar a cicatriz dela. Embora achasse que sua eleita fosse linda de qualquer jeito.
Então teve o dia em que o Zé Carlos esperava em segundo no ponto - logo atrás do táxi do apaixonado -, quando chegou um casal com malas e filhos. Bom dia, bom dia, entraram no carro do Trevisan: o marido no banco da frente. A mulher e as crianças no banco de trás. Partiram. Um minuto depois, estavam de volta ao ponto. Furioso, o homem puxou a família pra fora do carro do Trevisan (que estava quieto e sem graça) e perguntou ao Zé se poderia levá-los ao aeroporto.  No caminho, todos instalados, o Zé perguntou o que tinha acontecido: era coordenador do ponto e qualquer reclamação ele poderia tomar providência. O tal homem falou então que, nem bem tinha começado a corrida, “o cafajeste do outro taxista – Trevisan o nome dele, não é? -, tinha mexido no retrovisor pra bisbilhotar sua esposa no banco de trás”.  Antes que o Zé pudesse falar qualquer coisa, o homem foi dizendo que não perderia tempo naquele momento. Mas na volta da viagem iria ele mesmo ao departamento de trânsito denunciar o Trevisan.
Se ele teve uma recaída ou fora sua fama que induzira o passageiro, não sem sabe.  Mas aquela nova reclamação e o receio dos outros taxistas expulsaram o Trevisan do ponto.  Depois de ficar um tempo sem trabalhar, voltou, mas num ponto três quarteirões pra baixo.  
Um dia o Zé me falou que o Trevisan tinha tido uma discussão com um pipoqueiro e levara uma pedrada na testa. Mas não deve ter sido coisa muito grave: uns dois meses depois, ele me viu andando na calçada, botou o bração pra fora do carro e chamou: “fala, compadre!”.
Depois disso o perdi de vista. De vez em quando perguntava para o Zé: “tem visto o Trevisan?”.  E o Zé: “às vezes esbarro com ele por aí. Mas quero distância...”.
Porém, houve um dia em que encontrei o Zé abatido.  Quase tremendo, tentou disfarçar: “ficou sabendo do seu amigo?”. “Seu amigo” ou “seu protegido” era como o Zé se referia ao Trevisan quando conversava comigo.  Mas naquele dia a coisa não parecia boa.  E não era: o Trevisan tinha sofrido um grave acidente: sozinho, estourara o carro na murada de uma avenida movimentada ali perto e morrera.  “Foi hoje?” “Faz umas duas semanas. Quem contou foram os colegas do ponto dele”. 
Ficamos os dois quietos.  O Zé se abalava muito quando algum colega morria de acidente ou assalto. Já eu fiquei imaginando como teria sido o velório e o enterro do Trevisan: alguns poucos colegas do ponto (mas não todos), quem sabe uma filha, talvez um vizinho.  Num canto, a moça da cicatriz.  Mas como os outros iriam saber? A cicatriz escondida como ela. Como a lágrima dela.  Depois foi embora, ninguém nem percebeu.  Ninguém nunca percebia mesmo.
Agora já era tarde, mas se eu soubesse, teria ido. O Zé Carlos Alves também.
Zé Carlos que, pensando bem, aqui entre nós, daria um personagem e tanto.



Publicado em série no Jornal de Piracicaba em 11/3, 25/3, 8/4, 22/4 e 6/5/2018


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