segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Manhas e missões


(caio silveira ramos)

Eu ainda brincava descalço no pátio de casa, mas minhas pequenas tarefas eu cumpria com indisfarçável orgulho.
Quando a campainha tocava, era eu que corria em disparada para ver quem estava chamando. Descia a escada e abria a janelinha da porta que dava para a rua (ou, se era de noite, espiava do alto, lá da janela do escritório): se era alguém conhecido, fazia a pessoa entrar.  Caso contrário, ia voando avisar um adulto.  Mas em casa, a maioria das pessoas que chegava era conhecida: meus pais sempre receberam muita gente.  Gente que vinha para conversar, pedir ajuda, um conselho, um colo, dar um abraço, trazer um doce, um bolo, uma travessa de macarrão caseiro, uma sacola de frutas trazidas de um sítio.  Gente que vinha sem dizer nada, só procurar um abrigo para o olhar perdido.  Um apoio para as desesperanças da vida.
O telefone também era eu quem corria para atender: tanta gente também querendo falar com meus pais, ouvir suas vozes, matar as saudades, dar um alô. Ou eram as amigas da Ruth, cheias de novidades para contar. Ou para ouvir outras tantas. 
Eu também voava para abrir as portas quando alguém carregava a pesada lata de lixo avisando “rápido, que o caminhão da limpeza está chegando!!”. E ainda ajudava a enxugar a louça quando chegava domingo. Mas aí a tarefa era alegre, já que todo mundo também fazia alguma atividade sempre conversando, cantando ou rindo de alguma besteira dita. Também era muito divertido passar a enceradeira na sala durante muitas tardes de sábado, quando a casa cheirava ainda mais limpeza e bolo de leite fervendo.
E cabia a mim fechar a garagem quando meu pai saía com o carro, o que demandava não só meu impulso para trazer o portão para baixo, como também certa arte para dar um leve tranco nele, fazendo-o se encaixar no fecho com precisão.
Mas minha missão preferida, aquela de que eu mais me orgulhava, era a de ligar a televisão.  Como uma tarefa tão simples quanto apertar o botão de um controle remoto pode provocar orgulho em alguém?
Aparentemente simples, a tarefa envolvia os mais profundos mistérios.  É que lá pela década  de 1970, não havia controle remoto e para se “acender” uma televisão não bastava um clique.
A primeira etapa era “ligar a tomada”: o fio saía do transformador conectado (fisicamente) à TV, caminhava pelo rodapé, contornava o batente da porta que dava para o pátio e estacionava seu plugue num preguinho em forma de gancho perto da entrada elétrica que ficava na parede a poucos centímetros do assoalho.  Então, eu desenganchava o tal plugue e ajeitava seus pinos nos buracos do “espelho”.  Simples, não? Seria se os encaixes daquelas tomadas fossem firmes como são hoje.  Naqueles dias, o plugue ficava meio bambo: era preciso achar o ponto certo (com muita arte) para que a tomada não acabasse perdendo o contato elétrico, o que desligaria a TV justamente na melhor parte do programa. Mas eu sabia achar o ponto com precisão.
Tudo certo, tudo resolvido, então era partir para a segunda etapa: ligar o transformador de voltagem. 
O transformador era uma caixa quadrada de ferro pesadíssima (com uma grossa alça de plástico em cima), que tinha na parte da frente um botão giratório e um painelzinho em forma de meia lua onde se via uma seta descansando e alguns números desenhados.   Era preciso girar cuidadosamente o botão no sentido horário até dar um clique. Acesa a luz do painel, movia-se novamente o botão dando mais dois cliques para a seta se mexer. Então vinha o pulo do gato: eu tinha que dar um leve tapa na parte de cima do transformador para seta voltar um pouco e chegar ao ponto certo. Oba, agora sim eu podia ligar a TV.
Naquelas velhas televisões de tubo, com a imagem ainda apenas em preto e branco, a tela era emoldurada por uma robusta caixa de madeira. No lado direito, se mostravam uma saída de som, um grande botão seletor e três botões giratórios menores: dois para a imagem (brilho e fixação: as imagens às vezes corriam de cima pra baixo na tela...) e um para ligar e controlar o volume.
Girado o tal botão e controlado o volume, a televisão começava a esquentar e a imagem ia lentamente aparecendo.    Se o programa fosse na TV Globo, como a emissora “pegava direto”, não era preciso fazer mais muita coisa, a não ser, às vezes, dar uma leve girada no botão seletor (mas sem chegar a fazer “clique”: muita manha nessa hora, hein?). Porém, se o programa passasse em outro canal, quem morava no interior, como eu e minha família, precisava girar o seletor (fazendo um teque-teque-teque-teque) até o número “3 e um pouquinho”.  Então, enquanto a TV “chuviscava ferozmente”, se ligava o “conversor de UHF”, uma grande caixa de madeira retangular que reinava sobre a televisão (depois arranjamos um modelo compacto e de plástico) com dois botões e um visor como os de rádio para enxergar a sintonia dos canais.  Aí, era preciso profunda arte e destreza: enquanto se girava cuidadosamente com a ponta dos dedos da mão esquerda (com uma sutileza que beirava a telecinesia) um dos botões do conversor, com a mão direita era necessário balançar ou torcer os dois longos fios achatados da antena que pendiam do teto e corriam soltos pela parede até se conectarem com a parte de trás do aparelho.  Mas esses movimentos tinham que ser muito bem calculados, precisos e firmes, feitos, logicamente, com uma quase ternura, porque a qualquer momento os fios podiam se desconectar do conversor e tudo ficaria mais difícil.
Enfim, encontrados o canal (se ele estivesse “pegando” naquele dia) e o programa desejados, mesmo que às vezes a imagem tivesse certo chuvisco, alguns “fantasmas” e um e outro tremor, eu me virava para os telespectadores caseiros para receber os aplausos.  Mas então já não era a minha arte que a plateia queria aplaudir.
E esquecido de mim, eu me juntava àquele “respeitável público telespectador” para ver o mundo entrando pela janela da sala.



Nomes: modos de transgredir

(caio silveira ramos)

Entre o final de março e o início de abril de 1971, poucos dias antes do meu nascimento, meus pais decidiram qual seria meu nome.
Ele, talvez marotamente, sugeriu, se nascesse um menino, o nome do sogro.  Minha mãe, conhecedora dos sentidos mais profundos das palavras de meu pai, deu a deixa para que ele pudesse revelar as ideias que realmente estava ruminando:
“Hum... ‘Sylvio’... Seria muito bom, mas aqui vão chamar o pequeno de Sirvo, Sirvinho... Acho muita maldade fazer isso com nosso nenê”.
“É, não é mesmo? Você tem toda razão... Então, estive pensando... O que você acha do nome ‘Anísio’, em homenagem ao Anísio Teixeira?...”
“Ah, não... Um bebezinho chamado ‘Anísio’? Acho que não combina muito...”
“É mesmo... Um nome antigo... Parece nome pra gente mais velha... Pensei também em ‘Caio’. Em homenagem ao Caio Prado Júnior...”.
“‘Caio’... É bonito. Então está certo: vamos dar ao nenê o nome ‘Caio’!”
Meu pai sorriu.  Mas se eu pudesse assistir àquele momento “ao vivo” não entenderia todas as razões do sorriso do pai.
Anos depois eu soube que o educador baiano Anísio Teixeira era um dos ídolos dele.  Anísio foi, no Brasil, o grande ideólogo da educação pública e um dos maiores símbolos na luta pelo ensino gratuito (e de qualidade) para todos. Para ele, a educação não era privilégio: era um direito. Toda sua vida foi devotada à ela.  E por ela foi criticado e perseguido. Mas pela educação ele lutou até o fim de sua vida.
Caio Prado Júnior foi um dos grandes pensadores do Brasil. Até os que o criticam e discordam de suas ideias (e de algumas de suas injustificadas omissões) reconhecem que suas obras são fundamentais para entendimento da História do País. Livros como “Formação do Brasil Contemporâneo” e “História Econômica do Brasil” são leituras obrigatórias para quem deseja conhecer o País a fundo.  Sobre a obra de Caio Prado Júnior não cabe falar a frase ignorante: “não li e não gostei”.  Pode-se até abominar suas ideias. Mas elas devem figurar em qualquer biblioteca que se preze.
Assim, na intenção do nome “Anísio” – que mesmo não efetivada esteve sempre presente em cada passo da minha vida – e na concretização do nome “Caio”, as paixões de meu pai e as bênçãos generosas de minha mãe nada impuseram a uma criança, mas nela gravaram as ideias que eles tanto lutavam e colocavam em prática todos os dias: a salvação e a transformação de vidas pela educação gratuita de qualidade e a diminuição das profundas desigualdades sociais de um país.
Mas só há pouco tempo descobri que meus pais foram além.  Menos de um mês da escolha do meu nome e do meu nascimento, Anísio Teixeira, depois de dias desaparecido, foi encontrado morto no fosso de um elevador. Naquela época já se suspeitava o que as atuais investigações indicam: Anísio não sofreu um acidente como foi oficialmente alardeado: pelas posições de seu corpo e de sua pasta (ambos encontrados numa parte do fosso incompatível com uma queda), pelo local e condições em que foram encontrados seus óculos, e principalmente pelas lesões sofridas pode-se concluir que Anísio foi brutalmente assassinado e depois teve seu corpo, sua pasta e seus óculos “arrumados” no fosso.  Coincidência ou não, após a morte de Anísio Teixeira o governo deu o pontapé inicial no desmonte da educação pública brasileira de qualidade. Educação pública que hoje agoniza impedindo que várias vidas sejam transformadas.
Quanto a Caio Prado Júnior, quando “recebi” seu nome, estava ele preso já há algum tempo.  E assim continuaria até agosto daquele 1971.  Preso não por desvio de dinheiro público, caixa-dois, corrupção ou qualquer desses crimes tão comuns na vida política brasileira: da mesma forma que fora preso durante a Ditadura Vargas, Caio estava novamente encarcerado, agora pela Ditadura Militar, simplesmente por suas ideias e livros.
Assim, com um simples nome dado a um bebê, meus pais de uma forma corajosa transgrediram a brutalidade de um Regime que atravessava justamente seu momento mais covarde e perigoso.  Por meio do nome de uma criança (com todas as suas variantes e intenções) estavam ofertadas as esperanças de um Brasil mais justo e humano.
E aqui sigo eu, prova viva de um período que não se apaga.  Nos nomes e sobrenomes que carrego na alma e no corpo está gravada para sempre a certeza de que a educação transforma vidas.
E que as ideias de um País menos desigual jamais, jamais devem ser novamente torturadas, mortas ou encarceradas.

                                                                                               Publicado no Jornal de Piracicaba em duas partes: 24/1 e 27/2/2019

Além do Mirante 5: Desespaço

(caio silveira ramos)



No Jornal não haverá mais espaço para mirantes e miragens.
Não há mais espaço.
Só restará o infinito.

E o Mirante seguirá no infinito.








Dessemelhanças


(caio silveira ramos)

Minha mãe organizou um almoço para comemorar o aniversário da tia Teresa, que andava amuada desde a morte do tio Estrela.
Do primeiro casamento do vô Otávio nasceram sete filhos.  Depois que ficou viúvo, ele se casou com a vó Luiza com quem teve mais quatro crianças. Na época do almoço de aniversário, meu pai e tio Henrique já tinham partido, mas tio Augusto, depois de muitos e muitos anos, reviu tia Teresa. No início, não reconheceu a irmã e me cutucou: “quem é essa carioca?” “É a tia Teresa, tio...”
“Teresa, é você mesmo? Não tinha reconhecido!! Também, onde já se viu uma caipira criada em Itu com esse sotaque?”
Tia Teresa riu e abraçou o irmão.  Ela morava no Rio de Janeiro há muito tempo e um tanto pelo costume e outro tanto pelo charme (alguém diria “esnobismo”), carregava nos “erres” e “esses” cariocas.
De qualquer forma, eu estava feliz por rever tanta gente que não encontrava fazia tempo, inclusive a própria tia Teresa.   Estavam lá, tia Myrthes, Heloísa e Daniel, viúva e filhos do tio Henrique. E também todo pessoal do tio Augusto, vindos lá de Jundiaí: tia Carminha, Maria Luiza (com o marido e os filhos), Fátima, Helena e Tavinho.
Passei boa parte da festa olhando para aqueles meus parentes, buscando meu pai em cada traço e em cada palavra.  Mas ele era muito diferente dos irmãos e sobrinhos: talvez os olhos da minha prima Heloísa lembrassem um pouco os dele, com aquele verde profundo e atento. Mas de resto, meu pai parecia ser de outra família: tia Augusto, tia Teresa e a lembrança do tio Henrique tinham o mesmo formato de rosto e de nariz. O mesmo olhar. E quase os mesmos caminhos do tempo na pele.
Meu pai, mesmo com toda aspereza da vida, tinha o desenho do rosto menos brusco, os cabelos ondulados e negros penteados para trás, o olhar curioso de quem queria engolir o mundo e as letras para descobrir os mistérios do tempo, do espaço e do mais esquecido dos seres. Ele era muito diferente dos irmãos. Até no nome: era o único que tinha o “Coelho” antes do “Ramos”: será que o Miro teria puxado mais o lado materno, diferentemente dos irmãos?
Talvez as dessemelhanças fossem fruto do tempo e da separação causada pela morte prematura de uma jovem mãe de quatro crianças, que tinham na época entre 5 e 11 anos. Meu pai, por exemplo, mais por amor ao estudo que por vocação, foi para o Seminário Menor em Pirapora do Bom Jesus, só voltando para casa em Itu - na verdade a casa de seus primos e tios Maria e Benedito -, no período das férias escolares.  Quanto a seus irmãos e irmã, cada um foi para um lado.
De qualquer forma, constatei que não seria naquele almoço que eu conseguiria reencontrar o olhar do meu pai.
Mas de repente, de longe, justamente eu que sempre fora traído pela miopia, consegui desvendar todo um mistério: na cabeceira da mesa, meu tio Augusto almoçava em silêncio. Percebi mais uma vez que seu olhar, suas orelhas, seus cabelos e a pele enluarada do seu rosto não me traziam a imagem de quem eu procurava.   Mas se suas mãos eram diferentes das do meu pai, a forma de segurar o garfo era a mesma. Se sua boca e seu queixo não refletiam meu pai, sua mastigação tinha exatamente as mesmas ondulações. Assim como eram iguais aos do meu pai o seu abrir e fechar das pálpebras, mesmo sendo tão diferentes os olhos de um e do outro.
Meu pai estava ali, naqueles movimentos do corpo. Separados pelo mundo, pelas dores e pela morte, eles se encontravam talvez no embalar de um antigo colo perdido, nas brincadeiras de pés descalços na terra batida, no riso solto espalhado no ar há tantos anos.
Meu pai estava ali.
Nos movimentos do tempo.

Publicado no Jornal de Piracicaba em 2/9/2018

Breve acalanto para os dias de incertezas


(caio silveira ramos)

Imagine uma típica avozinha de livro de histórias: sorriso sereno, cabelinho curto e olhos doces embalados por óculos de aros dourados. Ela ainda tem que usar uma blusinha de lã com botões discretos, deve gostar de bichos e plantas, e ser apaixonada por suas netinhas, por suas duas filhas e por seu marido, que por gostar muito de doces (entre os quais ela se destaca), tem o carinhoso apelido de Formigão.  Pois se Dona Zélia se enquadra em todos esses requisitos, ela tem pelo menos uma característica que a diferencia de outras vovós de livros de história: Dona Zélia adora futebol.
Pois não é que ela sabe escalações, a tabela de jogos e, se bobear, discute até se é melhor o esquema 4-3-3 ou o 4-1-4-1?  E tudo isso com a serenidade de quem faz uma toalhinha de crochê durante a novela.
Dona Zélia cresceu, no meio de sua numerosa família, em uma grande casa com um assoalho de madeira que tremia quando a criançada corria pela sala.  E nessa sala, seu pai, sentado na sua poltrona, curvado, cotovelo apoiado num dos joelhos, mão no queixo, ouvido quase grudado no grande rádio, escutava os jogos do seu Palestra.  Sempre desse jeito, quieto, atento, pedindo com o olhar que as crianças fizessem silêncio durante as partidas.
A menina Zélia se perguntava por que o pai não colocava o rádio mais alto e se endireitava na poltrona para escutar as partidas com mais conforto. Mas, na verdade, era só o jeito dele, mania, simpatia ou simplesmente sua forma de se concentrar e torcer contido.
Mas por mais baixo que ele ouvisse, a voz do locutor, a tensão do pai e a empolgação da torcida invadiam a casa, e as crianças paravam de correr pela sala para o piso não tremer e atrapalhar o jogo. E ali perto, quietinha, sem se fazer perceber, a menina Zélia acompanhava a partida e vibrava para ver seu time ganhar e seu pai ficar mais feliz.
Um dia o pai se foi e a menina Zélia, durante muito tempo, nos dias de jogo, continuava entrando em casa pisando suave sobre o piso da sala. E por um segundo ela tinha a impressão de ver o pai junto ao rádio ouvindo mais uma partida do Palestra.
E nas noites tormentosas, com seus trovões, ventos e temores, ela procurava sentir a presença do pai, protegendo, de sua poltrona, a casa e a família.  Nos dias de tristeza e saudade, vindo da rua, a moça Zélia ligava o rádio e, enquanto o locutor narrava uma partida nervosa, ela aquietava o coração: parecia que o próprio pai vinha em seu consolo, tomando-a pela mão para abrigá-la no seu colo.
Assim, pela vida afora, quando os medos pareciam engolir o mundo, Dona Zélia escutava futebol pelo rádio para se serenar segura, como se ouvisse um breve acalanto para abrandar os dias de incertezas.
E até hoje, quando as amarguras do futuro e a violência da vida de fora parecem fazer tremer o mundo como o piso da velha casa que não existe mais, Dona Zélia deixa por um instante as netas brincando tranquilas na sala e liga o radinho na bancada da cozinha para ouvir um jogo de futebol qualquer.  Enquanto, em outros cantos da cidade, pessoas roem as unhas, gritam agitadas e explodem seus corações, Dona Zélia sente a calma invadindo a alma e o corpo. 
Quem sabe ela veja seu pai se achegando, apoiando o cotovelo na bancada, descansando o queixo numa das mãos para escutar o jogo com ela.  Mas já não importa a partida, o placar e o grito da torcida. Dona Zélia sorri para o pai sabendo que seu mundo, o mesmo mundo de suas filhas, de suas netas, de seu amado Formigão, está naquele momento protegido.
Então tudo fica em paz.


Ilustração de Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 19/8/2018



Mirtica


(caio silveira ramos)

Num domingo de julho deste 2018, recebi do tio Vavá a triste notícia de que ele acabara de retornar do enterro do Mirtica. 
Não cheguei a conhecer pessoalmente o Mirtica, mas há poucos meses, neste mesmo 2018, acabei transformando em personagem de uma das minhas crônicas esse grande amigo do tio Vavá que, como já disse, não é meu tio, mas considero como se fosse.
A crônica, singela como todas deste Mirante, revelava minha profunda simpatia pelo Mirtica, que eu conhecia apenas das deliciosas histórias contadas pelo tio Vavá, principalmente quando ele se encontrava com seu irmão Brancão e seu pai Domingos.   Nelas, o Mirtica se transformava em enredo, motivo, vírgula e alegria, já que todos tinham a maior consideração pelo nosso herói, que devia ser um amigo querido e profundamente divertido.
Quando minha crônica chegou às mãos do Mirtica, parece que ele se emocionou profundamente: deve ter se lembrado do seu Domingos, das conversas generosas regadas a vinho, da sabedoria daquele velho soberano que celebrava a vida recebendo os amigos na antiga garagem de sua casa em Santo André. Ou talvez Mirtica tenha enchido os olhos apenas por recordar a amizade de tantos anos com o quase irmão Vavá, a juventude guardada num canto cada vez mais distante e as pessoas queridas que partiram como o tempo.
No velório, a viúva, as filhas e um genro do Mirtica, entre abraços, agradeceram ao tio Vavá pela crônica. Disseram que durante aqueles poucos meses, mesmo depois de atingido pela forte pneumonia que acabaria por levá-lo, o Mirtica se sentia muito feliz, emocionando-se a cada nova leitura.  Revelaram ainda que tinha pedido para alguém tirar uma cópia da crônica, que ele guardava no bolso, relia de vez em quando ou mostrava para os amigos.
Me apanhei comovido e ao mesmo tempo preocupado: teria o Mirtica ficado ainda mais fragilizado pelo texto? Sentira tanta saudade de si e dos outros que afrouxara o cordel da vida?
Não. No fundo sei que minha crônica não teve esse poder.   Mirtica foi em paz consigo mesmo e com o mundo, com a certeza do dever cumprido e das amizades cultivadas.
Quanto a mim, que não conheci o Mirtica, fico com o conforto da crônica guardada no fundo do bolso de alguma calça esquecida e com a satisfação de continuar ouvindo seu nome espalhado pelas histórias do tio Vavá e do Brancão, ou pelas lembranças das eternas conversas com seu Domingos.   Pois o simples nome “Mirtica”, pronunciado com os “erres” piracicabanos ou andreenses, é palavra cheia de sabor que toma de alegria a boca de qualquer sujeito.
É só falar ou pensar no seu nome que já um riso escapa, ganha a calçada, dobra a esquina e se perde por aí.

Publicado no Jornal de Piracicaba em 5/8/2018



Pedro e os lobos

(caio silveira ramos)

Durante as transmissões dos jogos da Copa do Mundo de Futebol da Rússia, neste 2018, um importante jornalista esportivo, ao comentar a recorrente não marcação de falta pelos árbitros quando Neymar caía no gramado ao ser tocado pelos adversários, filosofou: “é a velha história de Pedro e o lobo: o menino vivia gritando que o lobo estava atacando.  Quando as pessoas chegavam para acudi-lo, ele ria, dizendo que era mentira. Tanto fez, tanto fez, que no dia que o lobo atacou de verdade, Pedro gritou por socorro, ninguém acreditou e ele morreu. Da mesma forma, Neymar vive se atirando no chão, simulando sofrer infrações: quando é derrubado, ninguém acredita mais, mesmo quando a falta é verdadeira”.
A comparação até que foi procedente, tanto que, terminada a participação do Brasil na Copa, parece que Neymar e suas quedas se tornaram motivo de piada no mundo todo. Embora sempre pense que fabulosos cientistas devessem (no mínimo) ganhar bem como grandes jogadores de futebol, acho a perseguição a Neymar um exagero: exceto por algum estrelismo quase infantil, ele é um craque verdadeiro, não tendo aparecido, para mim, nenhum jogador com sua qualidade técnica nos últimos seis, sete anos no País.  Embora não tenha vencido uma Copa, não podemos esquecer que Neymar foi um dos líderes do time que ganhou a até então inédita medalha de ouro no futebol, na Olimpíada de 2014.  Críticos irão dizer que a qualidade das seleções em uma competição olímpica é inferior à das Copas, mas jogadores brilhantes de outras gerações jamais conquistaram a medalha de ouro que Neymar pode pendurar no pescoço.
Mas voltando à comparação do jornalista esportivo (que admiro por seu conhecimento tático, sua memória incrível para relembrar placares de jogos e por seus comentários ponderados e justos): se ele acertou no motivo, trocou o enredo.  Ou no mínimo se enganou com os personagens: o “simulador” não era Pedro. E o lobo era outro.
A história a que o jornalista queria se referir é muito mais antiga que “Pedro e o lobo”.    Ela é uma das fábulas do grego Esopo, que teria vivido no século VI a.C.  Na belíssima edição “Esopo – fábulas completas”, da Cosac Naify, de 2013, com tradução de Maria Celeste C. Dezotti, ilustrações de Eduardo Berliner e apresentação de Adriane Duarte, encontramos a tal fábula sob o título de “O pastor brincalhão”.  O personagem – que não é um menino e tampouco se chama Pedro -, tinha como diversão gritar por socorro porque lobos estariam atacando suas ovelhas.  Por várias vezes enganou os aldeões que corriam para ajudá-lo. Quando, de fato, os lobos avançaram no seu rebanho, ninguém atendeu ao grito de socorro do pastor que acabou perdendo todas as suas ovelhas.
Já a história de “Pedro e o lobo” (provavelmente um antigo conto russo) foi utilizada por Sergei Prokofiev (nascido em 1891 em Sontsovka, localizada na atual Ucrânia) para compor uma peça musical infantil em que alguns instrumentos de uma orquestra são apresentados às crianças.    Assim, o tema do passarinho (Sasha, na versão brasileira adaptada pelos estúdios Disney) é tocado pela flauta; o do gato (Ivan, na versão Disney), pela clarineta; o do pato (para Disney, a pata Sônia), pelo oboé, e o do avô de Pedro, pelo fagote. Já o toque dos tímpanos representa os caçadores e seus tiros, o assustador tema do lobo é executado pelas trompas e o de Pedro, alegre e contagiante, é interpretado pelos instrumentos de corda.
O enredo é bem diferente do da fábula do pastor de Esopo: um grande e faminto lobo assusta a região onde Pedro mora.  Seu avô, preocupado, impede que o menino brinque na campina para que o pequeno não seja devorado. Mas ao perceber que seus amigos bichos estão sendo atacados pelo lobo, com a ajuda de uma corda e do passarinho, Pedro consegue capturar a fera e em seguida não deixa que os caçadores a matem. E triunfante, desfila ao som de sua música.
Se a fábula “mostra que os mentirosos só têm esse lucro: não merecem crédito nem quando dizem a verdade”, “Pedro e o lobo”, além da beleza e da alegria que as músicas de Prokofiev espalham pelo mundo, conta uma história de coragem, amizade e compaixão.  Coisas que faltam tanto a alguns jogadores de futebol quanto a muitos jornalistas esportivos.
Coisas que faltam, afinal, a muitos que andam por aí, sejam pastores de ovelhas, políticos ou mesmo aos cidadãos que os elegem.


Ilustração de Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 22/7/2018