sexta-feira, 29 de julho de 2016

O sopro do lobo

(caio silveira ramos)

Ela tinha 54 anos, fazia faxina e se encantou com nosso menino. Virava e mexia, ela aparecia com um bolo, uma roupinha, um brinquedo. E enchia os olhos de alegria ao ver o pequeno batendo palmas e correndo para lhe dar um beijo na bochecha.
Naquele dia, ela chegou com três porquinhos abraçados, que compunham uma única peça de plástico e se assemelhavam, nos focinhos e na roupagem, aos do desenho famoso dos Estúdios Disney.  Pra completar, nas costas do porquinho do meio havia um pequeno botão que, acionado, chiava no ar o refrão “Quem tem medo do lobo mau?”. Quando ouviu, o menino quase virou cambota de contentamento. Ela, no entanto, me perguntou o que é que os porquinhos estavam cantando.  Estranhei, mas debitei na conta da desaparelhagem sonora do brinquedo.
Sob o olhar dos dois, dei para desenrolar a história ali mesmo no chão da sala: era uma vez três porquinhos etc e tal.  Quando cheguei na parte da construção das moradas, enquanto o menino se preparava para se metamorfosear em lobo e soprar todos os ventos (conhecedor já de pedaços da história), pedi a cumplicidade dela para enflorecer o conto:
“O primeiro porquinho fez uma casa de...de... Do que mesmo, Ná?”
Ela sorriu estranhada:
“ ‘Uma casa de quê?’ Não sei. Os porquinhos são de uma história, é?”
Disfarcei o embaraço e engatei no conto, retirando do ar casas de palha, madeira e tijolos. E lobos, ameaças, sopros, bufos, peles de carneiro, chaminés e caldeirões fumegantes. Ela e o menino se encantaram. Mas eu fiquei, pelo resto do dia, espiando atônito pelo buraco da fechadura o lobo que também me espiava do outro lado da porta.
Desde que o inglês James Orchard Halliwell e o australiano Joseph Jacobs publicaram no século XIX suas versões de “A história dos três porquinhos”, que pertencia à cultura popular inglesa, muitos ventos sopraram: em 1933, Walt Disney espalhou o conto pelo mundo com seu curta-metragem de animação “The three little pigs”, embalado pela canção de Frank Churchill, “Quem tem medo do lobo mau?”.  Daí em diante, a história ganhou centenas de versões nas mais diversas línguas, quase sempre tomando por base o premiado curta americano: novos desenhos para cinema e televisão, paródias, quadrinhos, jogos, livros (dos mais diversos formatos, tamanhos e materiais), discos, brinquedos, fantoches e bonecos espalharam pelos quatro cantos do planeta o enredo, os porquinhos (com seus instrumentos, roupas e casas), a canção, a fala do lobo, o sopro do lobo e a fome do lobo, tudo à moda de Disney.  Nas versões impressas e sonoras até os nomes dos porquinhos (Heitor, Cícero e Prático) se popularizaram, embora Braguinha, ao contar a história para a “Coleção Disquinho”, da Continental, mesmo que baseado também na versão de Disney e na canção de Frank Churchill, tenha nomeado os três de Bolinha, Bolota e Bolão.
De qualquer forma, eu tinha certeza: essas informações pouco importavam para adultos e crianças de todo o planeta. Para eles, bastaria um simples assobio de um trecho de “Quem tem medo do lobo mau?” ou um esboço distraidamente rabiscado em um pedaço de papel (e que de alguma forma lembrasse três porquinhos ou três casinhas singelas), para que se lembrassem da história e começassem a soprar o mundo.
Até que uma mulher de 54 anos soprou também. Soprou qualquer certeza para longe.
E tudo voou pelo ar.

***

“A história dos três porquinhos” me parecia tão enraizada na cultura de todas as gentes que, quando aquela mulher de 54 anos e coração generoso disse desconhecer completamente o conto, o canto e os personagens, me espantei. E meu espanto me embaralhou pelo resto do dia.
Depois dei para pensar se aquele espanto diante do desconhecimento alheio não era uma visão turvada pela minha ignorância, fruto de um eurocentrismo esnobe e de uma disneycultura mergulhada em mim até os ossos.
Não, talvez eu estivesse exagerando. Ana Maria Machado escreveu na sua “Apresentação” para os “Contos de Fada” (ed. Zahar, 2010), que as histórias de Perrault, irmãos Grimm, Andersen e outros “fazem parte de um patrimônio comum de todos nós, um tesouro que a humanidade vem preservando pelos tempos afora”. E que “cada um de nós tem direito a um quinhão dele”.  E vai mais além ao afirmar que o historiador José Murilo de Carvalho “confirmou o que as Histórias de Tia Nastácia (de Monteiro Lobato) ou as Histórias da Velha Totonha (de José Lins do Rego) já apontavam: o repertório de contos maravilhosos narrados por escravos e seus descendentes em fazendas no século XIX e início do XX era europeu, filtrado pela linguagem e habilidade narrativa africanas – um importante capítulo de nossa formação cultural”.
De qualquer maneira, embora os três porquinhos e o lobo já tenham ultrapassado o folclore inglês e os produtos da Disney, e sejam hoje um verdadeiro “fenômeno pop” – tanto que o brinquedo sonoro representando os personagens dado ao meu filho por sua admiradora fora comprado num camelô da rua Silva Bueno –, é claro que existem crianças e adultos, dos mais diferentes grupos espalhados pelo planeta, que desconhecem totalmente a tal história. E conhecem muitas e muitas outras, tão ricas e interessantes quanto. Lendas e cantos que falam das Histórias de cada povo, com seus sonhos, sua geografia e sua própria cultura.
Quantas e quantas narrações fantásticas das mais diversas raças e etnias que formaram e formam o Brasil são desconhecidas dos nossos currículos e das nossas vidas, e infelizmente não fazem parte dos nossos sonhos e dos sonhos de tantas crianças do País. Merecemos essas histórias, assim como todos, todos, merecem os contos de Perrault, Grimm, Andersen e Jacobs. Antropofagicamente deglutidos ou não.
Mas naquele meu espanto diante do desconhecimento de “Os três porquinhos” havia mais do que a minha ignorância e a simples constatação de que, qualquer que fosse a forma, os personagens já tinham mergulhado, não na barriga do lobo, mas no mais profundo imaginário popular.   
Meu espanto era a surpresa diante de uma infância pilhada.
Aquela mulher de 54 anos não trazia a história dos três porquinhos, como também não trazia, da fazenda de cacau em que tinha nascido e passado boa parte da sua meninice, qualquer história inventada ou lenda soprada pelos mais antigos.  A história de infância que ela trazia era a dela mesma: uma história difusa, em que o trabalho na lavoura desde muito cedo parecia engolir suas mais remotas lembranças.  Em que a mesquinhez do dono da fazenda, a brutalidade do pai e dos parentes, e a resignação da mãe lhe tinham roubado qualquer possibilidade de criação do imaginário de sua própria infância.  Vassoura de bruxa? Para ela era simplesmente uma terrível praga que devastava a lavoura de cacau e que tinha provocado o êxodo de sua família de uma terra que de fato nunca fora sua.
Hoje, suas canções de embalar os filhos e os netos são músicas românticas ou religiosas ouvidas do rádio de agora e não as dos braços que um dia, ainda que pouco, a tomaram no colo. As histórias que gosta de contar são as que assiste nos programas policiais da TV, que parecem oferecer o vislumbre de vidas ainda mais trágicas que a sua, marcada pela violência que lhe comeu a infância e que devora sua paisagem diária.
E, ainda que com muito sacrifício sua casa seja feita de tijolos, o lobo está ali fora.
E continua à espreita.


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 3 e 17/7/2016

Manchas

(caio silveira ramos)

“Então você é sobrinho do João Fazendinha, hein?”
Percebi que aquele homem se referia a meu tio João, irmão mais velho da minha mãe.  Mas não entendi a razão do apelido. E me incomodou a graça que ele pôs na boca para fazer a pergunta. Olhei para minha mãe, mas foi ele quem continuou:
“Seu tio se gabava tanto da tal fazenda no alto da Serra de Brotas e floreava tanto as histórias que ele teria vivido por lá, que não tinha como a gente não cutucar com o apelido... Mas tem um coração imenso e é desde menino um excelente amigo”.
Tio João sempre me pareceu a ovelha diferente de uma família que nunca deixou de levar suas contas com sacrificada rédea curta e na ponta do lápis.  Cheio de ideias para novos negócios, recheava sua certeza de que o próximo plano finalmente “arrebentaria a boca do balão” com uma imaginação profundamente fértil, um olhar de Detetive Columbo e uma lábia que fazia derreter qualquer desavisado do outro lado da linha telefônica: “boa tarde, senhorita, quem fala aqui é o Dr. Mello...”  A tal fala adquiria ares de ainda maior confiabilidade quando ele caprichava no carregado sotaque caipiracicabano nunca perdido.   Me lembro de uma viagem até a Serra de Brotas, quando ele, tia Maria da Glória e eu procurávamos a exata localização da fazenda lendária. Ao avistar a touceira de uma planta que lhe indicaria o ponto exato da antiga porteira da “Nossa Senhora da Glória”, tio João se entusiasmou e desprendeu o sotaque de dentro da alma: “Pára o carro, Maria! É aqui!! Olha o vetiver!!”  Mas ele nem precisava descer do carro e me fazer sentir o cheiro da planta.  Aquele “vetiver” dele saiu com todos os “ês” e “erres” a que tinha direito. E muitos outros mais e além.  O “vetiver” falado por tio João já vinha perfumado e recriava a extinta fazenda diante dos meus olhos e do meu espanto.
De negócio em negócio, com reviravoltas e mais reviravoltas de sua vida, foi morar em Goiás e de lá me trouxe um arco e flecha que teria recebido de presente de legítimos índios guerreiros de uma tribo perdida.  Eu amava a história de Robin Hood e quando tio João me viu esticando um elástico entre as pontas de um cabide de madeira quebrado, me prometeu que na próxima volta, traria a arma do meu herói. E caprichando no sotaque, emendou: “você vai ver que quem verga não é a corda. É o arco”. E não é que era verdade mesmo?
Por causa de suas histórias, de um “sempre novo” negócio que finalmente arrebentaria a boca do balão, daquele arco e flecha, e de um fone de ouvido que já vinha com um radinho de pilha AM/FM embutido, dei pra sonhar com outros presentes.   Presentes nunca pedidos nem mesmo em pensamento. Presentes timidamente paquerados no fundo da imaginação silenciosa.
Seria assim: um dia, do nada, tio João apareceria com um Autorama, que eu montaria no “quarto do piano” para disputar corridas com todos os meus amigos até a hora da janta.  Noutro sonho, meu tio chegaria com um “Telejogo” (“exclusividade Mappin!”), para que eu me tornasse o rei do paredão, do tênis e do futebol, simplesmente girando um botão.  Já mais velho, dei para imaginar que entregariam na porta de casa um pacote enorme, enviado logicamente por tio João. E de lá de dentro, roncaria o motor de uma Mobilete que me levaria pra passear tranquilo no quintal, enquanto meus dezoito anos não chegassem me convidando pra dar voltas pelas ruas da cidade.
Suspeito que, se meu pensamento tivesse a cara de pau de sobrevoar os sonhos do tio João, ele teria feito alguma loucura para satisfazer meus desvarios.  Mas hoje vejo que ele foi muito além disso.
Para encortinar uma tristeza desmedida, tio João desanuviou uma história inteira.


***

A tristeza chegou desmedida, mas talvez nem fosse o caso. É que quando se tem 11, 12 anos, o mundo sonhado é grande demais. E qualquer esbarrão que atrapalhe o sonho se transforma numa entrada desleal e violenta do adversário, fazendo o jogador sair de maca rolando de dor e pedindo o colo da mãe.
A minha tristeza nascia de uma prova de Matemática que eu tinha feito naquela manhã e colocado, todo confiante, na mesa do professor. Mas a confiança foi parar na sola do pé assim que cruzei a porta da sala de aula: de repente me dei conta de um erro terrível.   Terrível porque eu sabia a matéria e tinha me distraído com um detalhe muito simples, mas que comprometia quase toda a prova. Pensei em voltar e implorar ao professor que me deixasse corrigir a distração. Mas sabia que aquilo era impossível. E segui em frente com a alma dilacerada e o orgulho ferido.  Exagero? Podia ser.
No almoço, meu garfo redesenhava a comida no prato, mas não queria chegar até a boca.  Com um nó na garganta e a cabeça baixa, nem percebi que tio João, que passava uns dias lá em casa, puxou a cadeira para se sentar ao meu lado. Usando uma roupa que eu achava que o nome era “safári” (mas descobri depois que o correto era “slack”), ele pousou sua mão no meu ombro e me perguntou qual era a causa da tristeza. Expliquei, ainda de cabeça baixa, a situação e ele me disse que tudo passaria. E em breve eu esqueceria o problema e a tristeza: “a vida dá muitas voltas. Veja eu, por exemplo...” E me contou que, certa vez, o avião em que estava viajando tinha caído. Era um avião pequeno, com poucos passageiros, o acidente tinha sido feio. Mas ele tinha sobrevivido.
Levantei a cabeça surpreso: diante daquela situação meu problema parecia ter corrido para o ralo mais próximo. Mas devo ter feito certo ar de descrença, pois ele emendou outra história:
“Tinha uma menina na minha escola: ela era a mais linda do mundo.Tudo nela era perfeito: os cabelos, os olhos, o sorriso. A roupa era a mais bonita e bem cuidada. O seu andar era o mais perfumado.  E ainda ela tinha o mais belo caderno de recordações que eu já tinha visto: a capa de couro, adornada nos cantos com plaquetas de metal dourado, mostrava uma paisagem pintada por algum grande artista, onde se destacava uma linda menina: a gravura parecia ter sido feita para ela. Inspirada nela. Havia ainda uma fechadura delicada que só podia ser aberta por uma chave de ouro presa numa corrente finíssima também de ouro.  Por dentro, o livro era ainda mais bonito: cada página, costurada à mão ao volume, abrigava uma moldura tecida com filetes dourados.  Em cada uma, letras caprichadas, às vezes acompanhadas por desenhos belíssimos, revelavam os textos mais doces e carinhosos dedicados à menina. Para minha surpresa, certo dia ela chegou perto de mim e com a voz mais suave do mundo pediu: ‘João Baptista, você poderia escrever no meu livro de recordações? Você tem tantas ideias, é tão criativo! E ainda tem a letra mais linda que eu conheço.  Escreve para mim, por favor!’”
O jovem João, sempre confiante e seguro, daquela vez se encabulou e derreteu: no livro, só pessoas muito especiais tinham deixado suas recordações: as três melhores amigas, a irmã, a mãe, a madrinha e uma tia querida. Homens, apenas dois: o pai e um primo mais velho e galante.  João tentou se recuperar do susto, construiu seu olhar mais charmoso e aceitou o convite. A menina entregou-lhe o livro, deu um beijinho no seu rosto e partiu ofertando seu sorriso encantado para o mundo.
Em casa, João se acomodou diante da escrivaninha do pai, endireitou o corpo, pigarreou solenemente três vezes, abriu o livro na página que receberia seu texto, esticou os braços e finalmente pegou a caneta para mergulhar no tinteiro.
Mas talvez emocionada, sua mão esbarrou no tal tinteiro e o derrubou.
E sem dó, ele desaguou quase todo seu azul na página branca e desavisada.

***
Quando tio João contou sobre o tinteiro se derramando na página do livro de recordações, esqueci minha tristeza e fiquei paralisado, de queixo caído.
A sorte é que no pretérito quase perfeito o jovem João agiu rápido, ergueu o livro, virou-o aberto para baixo e isolou a folha manchada para que a tinta não se espalhasse pelas outras páginas. 
A seguir, pegou uma tira de mata-borrão e a colocou atrás da tal folha. Por fim, com mais calma, repousou o livro novamente sobre a mesa e foi tentando secar a mancha, dessa vez com a ajuda do “berço” de madeira para aplicar o mata-borrão.  Com um pano, conseguiu limpar algumas poucas gotas que tinham respingado na beirada da capa de couro e na escrivaninha do pai. Então, quase refeito, olhou desanimado para o estado da arte.
Folheando rapidamente o livro, tudo parecia perfeito: as páginas, seus escritos e desenhos caprichados continuavam lá, rendendo as mais delicadas homenagens à menina bonita. Mas de repente, os olhos se desmoronavam quando encontravam aquela única página com sua enorme mancha azul, que preenchia quase todo espaço emoldurado pelos filetes dourados.  João tentou pensar pelo lado bom: as outras folhas estavam intactas. E até o verso da manchada não revelava muito o oceano azul.
No outro dia, na escola, a menina se aproximou doce e esperançosa: “Joãozinho, querido, o que você escreveu para mim?” João escondeu o quase desespero atrás do seu sorriso mais sedutor e, vestindo-se de confiança, respondeu: “Ainda não ficou pronto: estou preparando algo muito especial para você...”
Mas à noite, escondido dos pais e dos irmãos, João olhou desconsolado para o infinito azul. Já seco, mas profundamente azul. 
Como não dava para apagar a mancha, pensou até em arrancar a página. Mas logo percebeu que isso era impossível: além de se deparar com um minúsculo sinal dourado no pé de cada folha – as páginas eram numeradas! –, notou que todas eram cuidadosamente costuradas umas as outras: a retirada de uma delas não só poderia comprometer a beleza do livro, como não daria sequer para imaginar o que aconteceria com o conjunto todo.  Porém, João imaginou. Imaginou todas as folhas se desprendendo da lombada: páginas de declarações voando pela janela. O livro se desmanchando junto com os olhos da menina.
Outro dia clareou e, mais uma vez, lá foi João de cabeça baixa e mãos vazias para a escola. No recreio, ela apareceu como o sol:
“Escreveu, João?”
E no outro dia:
“Você trouxe meu livro João Baptista?” (Ela fez questão de pronunciar o “pê” mesmo que mudo).
Mais um dia. E ela veio de novo. Mas ao contrário do que João esperava, chegou desarmada:
“João, eu sei que você está caprichando, mas será que poderia trazer meu livro amanhã? Minha prima do Rio vai passar só este final de semana em casa e eu queria muito que ela escrevesse para mim também...”
Não tinha mais jeito. Precisava ser naquela sexta-feira.
Tio João olhou para mim e sorriu:
“Então, depois de uma noite sem sono, fui para escola e, antes de começar a aula, caminhei firme e entreguei o livro pra ela: ‘Não abra agora, por favor. No recreio você me diz o que achou.’ Esperei ansioso o intervalo e assim que tocou o sinal ela veio na minha direção. Veio séria, olhando para mim. Por um instante tremi, mas não abaixei a cabeça.  Ela chegou, me deu um beijo muito terno no rosto. Depois sorriu: ‘Joãozinho, é a coisa mais linda que eu já recebi na vida. Nunca vou esquecer você. Obrigada.’ E saiu, com a lágrima pendurada em algum canto do mundo, me deixando apenas o sorriso. O sorriso que palmilhou o meu destino.”
Fiquei ali, esperando que ele reabrisse o livro. Que ele me dissesse logo o que a menina tinha visto.
Então ele me revelou todos os mistérios do oceano.

***

Mas antes de revelar todos aqueles mistérios, tio João guardou suspense e me olhou de canto, com seu sorriso malandreado número 85,4 (talvez o mesmo sorriso de um menino que fazia tranças nas crinas dos cavalos e no dia seguinte punha a arte na conta do saci).  Só que eu continuei sem voz, sem um respiro, esperando que o passado me invadisse. E no meu silêncio, o oceano se revelou:
“No canto, no único espaço não coberto pela tinta azul dentro da moldura dourada, eu escrevi: QUE ESSA SEJA A ÚNICA PÁGINA MANCHADA DE SUA VIDA. COM CARINHO, JOÃO BAPTISTA”.
Tio João me sorriu seu sorriso malandreado número 94,3.  E eu devolvi o meu, encabulado e surpreso. E me esqueci da prova de Matemática. E me esqueci de qualquer tristeza.
Mas passados tantos anos, ainda me pergunto se toda aquela história seria verdadeira. 
Teria realmente a menina recebido tão bem aquela mancha em seu caderno precioso, mesmo que acompanhada por uma frase inspirada?  Ela teria convivido com aquele oceano azul ressacando com tanta violência suas lembranças?
E de tanto pensar, chego a duvidar da existência da menina. Da existência do caderno. E do pedido. E da mancha. Do beijo. De toda historia, enfim.
Verdadeiro ou não, aquele relato me consola e me enche de fascínio: se não é real, mostra o inegável talento de tio João para contar histórias e enganar os desenganos.
Muitas vezes, reencontro aquele enredo pelos caminhos tortuosos. Então, vislumbro possibilidades de corrigir erros e endireitar estradas.  Até consigo reconstruir trilhas que pareciam perdidas para sempre.  E acho que tio João também.  Tanto, que já passou dos 90 anos e continua forte, com seus muitos sorrisos. E suas muitas histórias.
E eu também: sigo imaginando e historiando:
Imagino um apartamento num andar alto de um prédio.  Imagino um quarto. E uma janela. E naquela janela, uma mulher, com seus 92 anos, que olha a cidade grande se espalhando feroz pelas ruas cinzentas.
A mulher deixa a janela. Escuta seus bisnetos brincando na sala, mas não presta atenção.  Ela agora olha para seu quarto: a cama arrumada, um quadro na parede, o criado-mudo, uma gaveta. Ela abre a gaveta.  Debaixo de alguns papéis e de um cartão com um desenho infantil e a frase “para a vovó, com amor”, ela retira um velho caderno. Mas não é um caderno comum: a capa de couro, adornada nos cantos com plaquetas de metal dourado, mostra uma paisagem pintada por algum grande artista, onde se destaca uma linda menina. Há ainda uma fechadura delicada que só pode ser aberta por uma chave de ouro presa numa corrente finíssima também de ouro.  Por dentro, o livro é ainda mais bonito: cada página, costurada à mão ao volume, possui uma moldura tecida com filetes dourados.  Em cada uma, letras caprichadas, às vezes acompanhadas por desenhos, revelam textos doces e carinhosos dedicados a alguém.  De repente, uma enorme mancha azul, um tanto desbotada, invade os olhos da mulher.  Ela afaga a página, a mancha e uma pequena frase escrita com letra caprichada num dos cantos da moldura dourada.  Depois, volta a guardar o livro na gaveta do criado-mudo, bem debaixo dos papéis e do cartão “para a vovó, com amor”.  As crianças brincam na sala, enquanto a mulher leva seus 92 anos para janela da cidade grande que continua se espalhando feroz pelas ruas cinzentas.
Tudo se resolve.
Tudo.
Talvez menos a saudade acabrunhando a alma.
E o amor querido, mas não realizado. 


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 8 e 23/5 e  6 a 20/6/2016

sexta-feira, 29 de abril de 2016

História de cérebro e boca

(caio silveira ramos)

Caiu de alguma forma nas mãos da mãe do João Pedro a seguinte frase: “às vezes, para um taurino ser feliz, ele precisa apenas de um abraço e duas coxinhas de frango com catupiri”.   A mãe do João Pedro, mesmo não vendo graça em horóscopos, encontrou graça na frase e emendou: “acho que sou mesmo uma típica taurina: essa frase me define”.   João Pedro que é amigo de afetos, mas também nunca abre mão do riso, retrucou: “pra mim, que não sou de touro, fico bem só com as coxinhas”.  E rindo, rindo foi abraçar sua mãe.
À noite, enquanto se preparava para dormir, João Pedro fez seu pedido de todo dia:
“Papai, deita comigo e conta uma história?”
 E como sempre, lá fui eu, de livro na mão, para ser iluminado pela luz do abajur verde e branco.
Terminada a leitura, na escuridão do quarto, ele me pediu que eu lhe coçasse as costas. E emendou:
“Agora, me conta uma história de cérebro e boca?”
Entendi o pedido: ele queria uma história inventada da minha cabeça, sem livros, sem escritas, algo para embalar seu sono e seu sonho. Mas para fazer eco a suas graças comecei:
“Um grande cérebro mal-humorado caminhava pela floresta quando encontrou uma boca cheia de dentes...”
Ele cocegou a noite com seu riso, e pediu: “não, papai, fala sério...”
Geralmente invento algo novo, que vai se espichando, espichando, e se encerra ao encontrar o sono do pequeno. Mas naquele dia me lembrei da história de “Aladim e a lâmpada maravilhosa”, que no segredo da noite se achegou em mim abrigada pelas lembranças das belas gravuras de um livro perdido na infância, onde Aladim era chinês e havia dois gênios: um da tal lâmpada e outro de um anel.  Com o pensamento grudado naquelas velhas figuras, que até pareciam fotografias, fui retecendo a história, esticando o enredo, inventado mil e um ingredientes, umas três ou quatro tramas novas e alguns personagens estranhos tirados do bolso. E, tomado de liberdades, decretei até alforria para os tais gênios aprisionados.
No outro dia, encontrei outra versão de “Aladim” num livro grosso.  À noite, debaixo do abajur, li a história palavra por palavra. Letra por letra. Ele cutucou:
“Gostei. Mas a sua foi melhor.”
Dito isso, virou-se de costas para mim e pediu que eu atravessasse meu braço sobre seu peito, o que ele chama de “cinto de segurança”.
E dispensando coxinhas de frango com catupiri e outras histórias, ele adormeceu.
Aninhado no meu abraço.

Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 24/4/2016


Amadores

(caio silveira ramos)

Tio Amador era irmão da minha avó Jandyra.  Ele trabalhava no Jardim Botânico do Rio de Janeiro e morava com a esposa e os dois filhos numa das casinhas que eram reservadas para os funcionários.  De quando em vez vinha para São Paulo: na Capital, visitava a mãe, dona Sebastiana, e suas irmãs e irmãos. Em Jundiaí, a irmã Zezé e a sobrinha Josette.  E em Piracicaba, as sobrinhas Maria da Glória e Jandyrinha, que se assemelhava à mãe não só no nome, mas também no amor pelas plantas.
Ele chegava sempre risonho, com o cabelo muito crespo e branco cortado bem curto, os óculos de aro escuro e quadrado, e o corpo baixote e gorducho. Às vezes aparecia de chapéu de palha.  Mas sempre vinha com um pacotinho de papel pardo, lotado de “Balas Chita” para a molecada.  Eu adorava as de embalagem amarela – acho que de abacaxi ou de tutti frutti –, mas não dispensava as de menta, caso no meio viessem também as empacotadas em papel verde.    A primeira criança da casa que aparecesse (e era quase sempre eu quem abria a porta) recebia o sorriso e o pacote, mas as balas eram imediatamente oferecidas aos mais velhos (e, por sorte, recusadas), e fraternalmente repartidas entre os pequenos. 
Tio Amador adorava papear com meus pais sobre os parentes, o Jardim Botânico e as plantas.   Em todas as visitas, não deixava de demonstrar seu encantamento por minha mãe ter feito florescer o “Bastão do Imperador” nos fundos da casa: “o Hélio, melhor agrônomo que eu já vi, mesmo naquela belezura de terra roxa dele, jamais conseguiria Bastões tão saudáveis e bonitos quanto esses que iluminam seu quintal, Jandyrinha!  Só sendo filha da mana Janda para ter essa mão pra natureza!”  E ficava lá, um tempão no quintal, namorando aquela flor misteriosa de caule grosso e bulbo majestoso, avermelhado, parecendo mesmo um cetro real.
Depois, ou Tio Amador almoçava em casa ou pedia para meu pai levá-lo de carro a algum dos restaurantes da cidade “para comer uma feijoada ou um peixinho, sem dar trabalho para a Jandyrinha”.  Entrou para o folclore da família a história que meu pai contava às gargalhadas: enquanto saboreava uma suculenta feijoada, tio Amador espirrou forte e a dentadura caiu dentro do prato.  Sem qualquer cerimônia, ele resgatou a dita do meio da comida, deu-lhe uma leve espanada com os dedos para retirar alguns grãos de feijão, meteu-a de novo na boca e tranquilamente voltou a comer satisfeito.
O que me intrigava é que, depois desses almoços, meu pai voltava sozinho para casa. Questionado, seu Miro sorria com os olhos e dizia apenas que tio Amador gostava de dar uns passeios sozinho.
Já um pouco mais velho, perguntei novamente a meu pai sobre aqueles antigos passeios do tio.  E ele respondeu gaiatamente mais uma vez: “seu Amador saía por aí porque gostava de ver moças bonitas e conversar com elas”.
Me dei por satisfeito com a resposta e pensei lá comigo que tio Amador tinha sido um sujeito feliz. 
E que eu queria ser um amador também.

***

Até meus oito, nove anos, eu e minhas irmãs fomos alegremente abastecidos pelas “Balas Chita” trazidas pelo tio Amador.  Mas ele não aparecia apenas com o pacotinho de balas para as crianças: dos seus bolsos, tio Amador tirava sementes de todos os tipos e tamanhos, e as distribuía para quem se interessasse por plantas.  Eu que naquela época tinha descoberto a história d’ “O menino do dedo verde”, de Maurice Druon, achava que tio Amador também tinha o “dedo verde”: ele devia ser uma espécie de mágico, que ia derramando suas sementes pelo mundo. E delas brotavam as flores mais exóticas, as plantas mais misteriosas, que se espalhavam por quintais e varandas. E que de repente até poderiam sair pelas frestas dos muros e do mundo.
Eu já devia ter uns onze anos quando fui com meus pais passear na casa da tia Josette, em Jundiaí.  Uma casa cheia de sol e som, com primos e primas crescendo junto com a gente lá de casa, todos mais irmãos que simples parentes.  Além do encontro das famílias, o passeio tinha também dois grandes motivos: uma visita ao tio Amador, que muito doente passava uns dias na casa da sobrinha Josette. E o abraço numa coleção de pedras.
O primo Renato, o segundo filho mais velho da tia Josette, foi um dos meus heróis de infância: curioso e inteligentíssimo, passava horas estudando no quarto que dividia com o irmão Roberto.   Quando tio Sammy construiu o “predinho” nos fundos da casa, Renato passou a ter um quarto de estudos, de onde, para mim, ele saía muito raramente.  Um quarto de estudos com a porta sempre aberta, o que me permitia, mesmo de longe, espiá-lo pesquisando ou tocando flauta doce. Um quarto cheio de livros, com uma dessas mesas de engenheiro (provavelmente para o irmão desenhar os projetos para a faculdade) e um jogo de lentes chamado “Poliopticon” (cuja caixa eu namorava secretamente quando passava pela vitrine da “Gatti Ótica”, na esquina da rua Governador com a Moraes Barros).
Mas Renato nunca bancou o geniozinho chato, muito pelo contrário: conversava mansamente, não se negando a compartilhar seu vasto conhecimento com quem quer que fosse. Inclusive comigo, um primo quase dez anos mais novo, que olhava para ele fascinado como se estivesse diante do próprio Professor Pardal.  Pois quando saía do quarto de estudos, Renato aparecia com seus inventos: uma câmara fotográfica feita de papelão e fita adesiva, com disparador, visor e tudo mais. Ou um despertador de corda, que em vez soar estridente, acendia uma lâmpada quando dava o horário para acordar o sonhador. 
Eu, mesmo acordado, sonhava em ter um telescópio. Generosamente, Renato me deu duas lentes para que eu construísse meu brinquedo: fucei aqui e ali e, com dois tubos de papelão, fiz minha luneta regulável que conforme a distância permitia o ajuste do foco. Feliz da vida, achei que meu primo ficaria orgulhoso de mim. 
Mas quando fui mostrar a ele minha geringonça (e aproveitar para perguntar como se fazia para as imagens não se serem vistas de ponta-cabeça), o primo Renato já tinha voado para bem longe e se tornado professor de uma universidade americana.  Foi ensinar a novos amadores a beleza dos números que viajam por trás dos mistérios do Universo.
Isso foi bem depois. Naquele dia da visita, já que eu andava todo interessado em fazer uma coleção de pedras, ele me deu de presente vários exemplares incríveis para eu não começar do zero.  E com o pensamento cravado nas pedras e cristais que tinha acabado de ganhar do primo Renato, fui cumprimentar o tio Amador, que estava ocupando uma das camas lá no quartão das minhas primas.
Acho que ele não me reconheceu direito. E eu também quase não o reconheci de pijama listado de mangas compridas e com o cabelinho crespo muito branco.  Os olhos miúdos sem os óculos pareciam infinitamente tristes.  Era um tio Amador sem pacotes de balas nas mãos, sem sementes brotando dos bolsos, sem sorriso cantando na boca. 
Parecia que, de repente, a terra e a vida também tinham se transformado em pedra. Não como aquelas cheias de beleza e mistério da minha nova coleção.  Mas como pedras secas, duras, que agora se negavam a beijar os dedos verdes de um amador inveterado.

***
Eu e meu pai fomos passear no Rio de Janeiro e aproveitamos para visitar a família do tio Amador, que já tinha falecido fazia quase quinze anos. Por todo o caminho, cortando por dentro do Jardim Botânico, tive a impressão de que a qualquer momento eu o veria espalhando suas sementes ou espiando por entre as árvores, feito um curupira protegendo sua mata. 
Seus filhos tinham a idade das minhas tias mais novas: ele, muito parecido com o pai, só que quieto e com o olhar mais distante.  Ela, o sorriso e a ternura de tio Amador.
Já a viúva, se parecia não ter ternuras, com certeza tinha perdido todos os seus sorrisos.  Nos olhos, nos cabelos pretos muito lisos presos num coque e em cada vinco do rosto se embrenhava uma secura que parecia ter rompido há séculos. Não havia um olhar, um movimento de boca, uma palavra que não rimasse com a mais palpável amargura.
Dei para emparelhar as figuras ou para desentender o emparceiramento desenhado no passado: como podiam aqueles dois ter um dia se conhecido, se apaixonado, se casado e criado filhos sendo tão diferentes? Disfarçaria, ela, toda a alegria? Teria ele me enganado todo o tempo, escondendo igual amargor atrás de um pacote de “Balas Chita”?
Pensei que atrás daquele fel talvez ela escondesse as saudades dele, mas já desconsiderei: não se fisgava nela qualquer indício de falta acabrunhada. Ela reclamava do passado, do presente e da possibilidade de futuro.
Fui por outros caminhos: teria ele se espalhado, igual a suas sementes, para não vislumbrar as amarguras dela?  Ou teria ela se amargurado com a largueza da alegria apaixonada dele? Ou será ainda que eles teriam de comum acordo (re)partido ao meio a palavra “amador”, ficando ele com a melhor parte e ela apenas com a rima pobre?
Mas já no caminho de volta percebi que o amador era eu. Eu que do alto dos meus vinte e quatro anos tinha a certeza de já conhecer todos os meandros das paixões avassaladoras.  Eu que julgava implacavelmente os certos e os errados dos relacionamentos conjugais e afetivos.  Eu. Eu, que condenava traidores e traídos, compreendi que do amor só conhecia a superfície. Era um amador no entendimento dos amores alheios e próprios.
E hoje, passado tanto tempo, continuo reconhecendo meu amadorismo e humildemente me visto com a poesia do velho Carlos para repetir: amar se aprende amando.
E amando, e aprendendo, vou me tornando cada vez mais amador.
Simplesmente um amador.

Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 13 e 27/3 e 10/4/2016



Doçura enviada pela leitora Dilma Spigolon Ferreira (abril/2016)


O sítio do outro mundo

(caio silveira ramos)
  
Meus pais juntaram suas economias e compraram um pequeno sítio em São Pedro.  Talvez pretendessem plantar alguma coisa lá, ter uma horta, um pomar. Quem sabe criar algumas galinhas, como fizeram durante algum tempo no quintal de casa.
Me lembro de alguma coisa do caminho: antes de entrar na estrada de areia, no fim da parte asfaltada, um casal de poloneses vendia paçoquinha. Talvez servissem outras coisas, café, chá, melado, pois tinham um pequeno caminhão velho. Mas eu só me lembro da paçoquinha. E da areia que vinha logo a seguir pelo caminho.
No início, a porteira era feita de troncos retorcidos e arame farpado. Quando sobraram mais algumas economias, meu pai colocou uma porteira de verdade, de madeira, fechada com corrente e cadeado.  Para imitar os meninos dos filmes, eu descia, abria a porteira, subia no mourão, balançava na mão o chapéu de festa junina e gritava feliz “eeeia, eeeia, eeeia” para o carro do meu pai.
O sítio tinha uma parte plana e depois um longo declive, que terminava no lugar mais misterioso do mundo: enclausurado pelas copas das árvores gigantes, que impediam que o sol se intrometesse por ali, eternamente sombreado e fresco, havia um terreno arenoso limitado ao fundo por uma elevação de terra e pedra de onde brotavam fios grossos de água.
Era difícil chegar até lá embaixo: o terreno era acidentado, a descida, forte, a trilha às vezes se escondia debaixo do capim-gordura e era preciso ter cuidado por onde pisar para não se estrepar num buraco de tatu ou de cobra.  Mas o coração batia forte, quando, na metade do caminho, dava para se ouvir o barulho da água correndo.  E ele vinha para boca quando se entrava naquela catedral alta e sombria. Entre o medo e o deslumbramento, sempre acompanhado por alguém mais velho, eu caminhava com a respiração presa, desviando das áreas mais úmidas, até chegar perto da “parede do fundo” onde a mão em concha recolhia o jorro mais forte de água para refrescar a cabeça, a garganta e a alma. Depois era encher os galões para levar aquele frescor também para casa.  Mas antes de preparar o fôlego para a subida dura, eu olhava de canto para o maior dos meus medos ali: um grande círculo de areia molhada que diziam ser movediça.  E onde ninguém se atrevia pisar. Era como se aquele lugar saísse de um filme de Tarzan para me tragar até o centro da Terra. Era como se aquele círculo de areia brotasse de um sonho ruim para me levar para outro mundo.
Mas já lá no alto, eu me sentia a salvo de novo. Meu pai abria o porta-malas do carro e de dentro da “geladeirinha” de isopor tirava uma garrafa de laranjada gelada e sanduíches de presunto e queijo (ou de mortadela), tudo preparado pela minha mãe.   Passados a sede, a fome e uma suave modorra (depois de um breve cochilo), meu pai pegava a enxada, e de chapéu na cabeça, equilibrando de quando em vez os óculos que escorregavam no suor do rosto, saía para carpir o terreno mais plano. E incansável, lá ia ele também, combater a erosão na área inclinada, fincando, nos barrancos, sacos de estopa cheios de areia ou cavando longos e intermináveis sulcos de terra com bordas altas.
Algumas vezes, eu me vestia de meu pai e, de chapéu de palha, camisa enxadrezada, calça rancheira, bota de cano curto enlasticado e óculos se divertindo no suor do rosto, pegava uma enxadinha para brincar de trabalhar e ajudar a construir sulcos sem fim naquela terra com cara de areia dura.
Mas, diferente de meu pai, eu não era menino criado na roça. Cansado da brincadeira, ia até o carro, me sentava em frente ao volante e fingia dirigir aventurado no meio de uma savana cheia de leões e rinocerontes sanguinários.
Ou então, deixava meu olhar se perder pelo céu.
E me perdia junto com ele.


***
Enquanto meu pai, já sem camisa e empunhando apenas sua velha enxada, continuava a lutar contra a erosão faminta que atacava nosso sítio sem nome, e minha mãe, de coração botânico e dedo verde, enfrentava todos os perigos dos capões mais traiçoeiros para recolher mudas novas e diferentes, eu subia pelo capô da Variant cor de café com leite (e tempos depois, da Brasília branca) e chegava até o teto do carro estacionado.
Eu era pequeno e leve, mas mesmo assim me suavizava ainda mais para não ferir a lataria. Lá em cima, me deitava de costas sobre o teto e, com as mãos sob a cabeça, grudava os olhos no céu. E aí me esquecia do mundo.
Não ficava ali para cochilar ou decifrar o formato das nuvens, mesmo porque o céu era tão limpo que poucas vezes vi algumas delas passeando por lá.  O meu prazer era me tontear naquele infinito azulado até quase perder os sentidos: deixar os olhos mergulharem fundo, fundo, para que pontos dourados e prateados começassem a dançar pisca-piscando. Então, me dissolvia inteiro para me confundir com aquele céu.
Dali, mesmo durante o dia, eu poderia atravessar a atmosfera e descobrir todos os mistérios das galáxias mais distantes. Mas preferia ficar fragmentado e despossuído só naquele azul, invertendo todos os sistemas copérnicos para me tornar o centro do Sistema. O centro dissolvido do Universo.  Eu era além de mim e era tudo.  Pelo menos até o que azul se amarelasse nas beiradas do céu e meus pais me chamassem de volta. Era hora de ir para casa.
Mas chegou o dia em que da estrada de areia avistamos a cerca cortada e o sítio invadido por uma boiada bem nutrida. Meu pai pastoreou o rebanho até a abertura da cerca, montou no carro e seguiu no rastro da bicharada. Acostumada ao pasto alheio e ao caminho de volta para a casa própria, mansamente a boiada pegou a estrada e retornou para o ninho.  Meu pai desceu do carro e foi encarar quem arrebentava a porta do seu restaurante. “A culpa é da sua cerca que é fraca”.  Meu pai, filho de roça matreiro, rebateu: “a culpa é da sua torquês que é forte para cortar o arame e deixar a marca”.  Virou-mexeu, os donos do outro sítio acabaram pedindo desculpas e prometeram que a boiada deixaria de comer fora de casa.
Se aqueles prometeram, outros não.  Em nova visita ao sítio, a mesma história: cerca cortada, boiada se esbaldando no capim-gordura, meu pai pastoreando a bicharada para fora, que mansamente também sabia o caminho de casa.  Só que dessa vez teve jangunçaria mal-encarada, um sujeito que se distraía batendo com o facão na própria coxa e intervenção da polícia. Tudo certo, tudo resolvido, mas ficava claro que o sonho do sítio estava virando pesadelo. 
Bois invasores, capangas de gente graúda, árvores frutíferas vandalizadas, lutas inglórias contra a erosão e a impossibilidade, para um casal de professores, de gerar mais vida naquela terra fizeram meus pais venderem o sítio de São Pedro para garantir o estudo dos filhos. 
Aquele lugar, onde eu avistava deus e o diabo numa catedral de cúpula copada.  Aquele sítio, onde eu me entorpecia olhando o céu e acabava misturado ao infinito, desprendeu-se do meu caminho para sempre e foi parar num outro mundo. Ainda mais distante.
E hoje, nos dias sem nuvem, quando tento olhar para o alto, eu me sufoco no azul-cinzento.
E boiando na poeira, vou me desintegrar no céu desbotado.


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 14 e 28/2/2016

Além do Mirante 3: Faro de silêncio



Silenciou o silêncio de Fernando Faro.

Antes disso, o silêncio dele, generoso, me encheu das vozes penduradas nas rugas do tempo.

Minha alma é reflexo do reflexo daquele silêncio.

Silêncio dele. Sonoro, profundo.

Silêncio.






domingo, 6 de março de 2016

O sebo do dia seguinte

(caio silveira ramos)

            De tanto andar, fui parar em frente de um sebo na rua Cristiano Vianna, em São Paulo: um prédio aparentemente pequeno, com uma porta estreita e uma grande vitrine onde se lia: “Sebo Café Memória”.  Entrei.
         Por dentro, o sebo era grande: prateleiras abarrotadas até o teto. Livros, revistas e catálogos empilhados pelo chão. Centenas de LPs apoiados em três degraus que levavam a um piso um pouco mais alto e igualmente tomado por livros.  Perto da entrada, um balcão feito de tijolos (e que provavelmente tinha sido construído para abrigar o “setor do café” do sebo) fora também abocanhado pelos livros, dando a impressão de que não se arranjaria ali nem um copo d’água de torneira.  Procurei apoiar meus pés nos espaços vazios do chão, esbarrei nas pilhas de livros, me equilibrei. Até que avistei uma moça que parecia tentar fazer uma inútil faxina no lugar.  Perguntei se ela tinha um LP de um velho sambista paulistano.  A moça sumiu entre as prateleiras e de repente ele chegou: cabelo grisalho escorrido até o pescoço, barba por fazer, olhos enormes e um andar que parecia estar com soluço.
         “É você quem procura o LP?”
      Tinha um jeito meio ríspido, desafiador. Talvez o dono do sebo estivesse ressabiado: por que um fulaninho de óculos e com cara de violinista iria querer um LP de um velho sambista malandro?  Mas conversando com o homem – que se chamava Amadeu – percebi que eu estava enganado: ele só queria conhecer a pessoa que procurava um LP antigo, de um músico antigo, quase esquecido. E que ele admirava.
         Conversamos longamente aquele dia. Seu Amadeu tirou de algum lugar duas cadeirinhas de criança feitas de madeira e me convidou para sentar ao lado de uma vitrola.  Colocou discos para eu ouvir, me mostrou livros.  Rimos muito.  Bradava contra os enjoados: “poeira não é sujeira!” E desafiava os modismos dizendo que, quando morresse, deveriam escrever em seu túmulo: “no estádio, nunca fiz ‘ola’ ”, talvez querendo dizer que não era um maria-vai-com-as-outras.  Quando me despedi, confessou que tinha em casa outros livros e discos interessantes que poderia trazer no dia seguinte. Fiquei de voltar.
         E voltei. Voltei no dia seguinte, e no outro, e no outro. Às vezes saía carregado com livros e discos.  E sempre ouvia a mesma proposta: leva, vê, depois você me devolve.  O que eu comprava, ele me vendia barato, quase constrangido.
         Mesmo saindo tarde do serviço, antes de voltar para casa, passava no sebo para conversar. Íamos para uma saleta nos fundos da loja, também abarrotada dos mais diversos títulos e com outras duas cadeirinhas se equilibrando nas pilhas de livros.  E por horas ficávamos papeando, falando sobre literatura, música, política e também sobre o passado dele, cheio de negócios que não deram muito certo (chegou até a me propor uma sociedade em uma loja de “bandoneons”, que gentilmente recusei não só por não ter nenhum centavo: “uma loja de bandoneons no Brasil, seu Amadeu? É falência na certa.”).  Confessou também alguns vícios, dos quais só sobraram os cigarros. Muitos cigarros, que mantinham suas unhas eternamente amareladas. De vez em quando as conversas iam para a parte da frente da loja e os assuntos se desenrolavam junto à vitrola que tocava Eliseth Cardoso, Carlos Gardel ou Piazzolla.  Lá pela meia-noite, eu o ajudava a apagar as luzes e a descer as portas de correr.  Depois subíamos juntos a rua Teodoro Sampaio até nos despedirmos na entrada da galeria que dava acesso ao prédio onde ficava o apartamento (também tomado pelos livros) em que ele morava com Dona Miriam e seus três filhos.
         Nas manhãs que eu passava no sebo vasculhando prateleiras e jogando conversa fora, via seu Amadeu atendendo seus clientes.  Alguns chegavam tímidos, procurando algum título.  Então, ele se metia no meio das estantes e trazia o tal volume. Mas se achava fraco o livro pedido, oferecia também outro, mais interessante, instigando o cliente com comentários sempre curiosos.  E se o fulano dizia que não tinha como pagar, muitas vezes seu Amadeu dizia: “pode levar, fica com ele”.   Se algum desavisado pedia algum livro que ele achava ruim (“tem o ‘Minha luta’, do Hitler, tiozinho?”), ele contornava: “tenho, é bem caro, mas só consigo para amanhã.  Enquanto isso, por que não vai dando uma lida nesse, que é sobre o mesmo assunto?”. E o moleque saía todo feliz do sebo com um livro denunciando as mazelas do Holocausto. 
         Esse “tenho, mas só consigo para amanhã” era uma de suas frases mais repetidas. E não era mentira.  Como sua casa era uma extensão da loja, ele, rei no meio do caos, sabia que tinha o título pretendido. Talvez dentro da banheira ou embaixo da cama. “Este é o sebo do dia seguinte”, me confessava baixinho, rindo com todos os seus dentes.  Muitos clientes ele perdia com essa história. Mas a maioria voltava. Voltava, no dia seguinte, fascinada como eu pelo mundaréu de livros.  Ou pela conversa do dono do sebo.
         Um dia, apareci com um conto inspirado nele. “Mas só consigo ler para amanhã”, gracejou para esconder o encabulamento.  E no dia seguinte, sentado na cadeira de criança, ele ergueu as sobrancelhas e me segredou: “quer me fazer chorar?”.
         Tempos depois, na porta do sebo fechado, vi meu conto pregado, olhando para a rua:

O descobridor das palavras

(caio silveira ramos)

            Morava com minha mãe em um quarto e sala que ficava em cima de um galpão que eu nunca vira de portas abertas.     Porém, quando voltei das férias na casa da tia Marina, havia alguma coisa lá.   As pesadas portas de ferro estavam abertas e de dentro brotavam livros de todos os tipos: novos, usados, com capas coloridas ou apresentados em sisudas coleções encadernadas de couro.  Fiquei ali em frente à vitrine, parado, os olhos passeando pelas capas, querendo aterrissar em um volume vermelho com um enorme balão amarelo desenhado.
         Só conhecia os livros da escola, pois em casa não cabiam estantes e a minha mãe "não se matava no tanque para jogar dinheiro fora." Mas aquilo tudo inundava minha cabeça, meu nariz e queria, queria muito sair pela boca.
         Quando minha mãe já me puxava pelo braço e abria o portão para subirmos para casa, uma voz deu duas piruetas e se deixou cair nas minhas costas: "Senhora, deixa o menino ver!" "Obrigada. Fica para outra vez."  E me puxou de novo. Mas a voz me grudara nas costas: "É esse que você quer, garoto?"  "Já disse que fica para outra vez. Não tenho dinheiro agora." "Não precisa pagar, não.  Deixa ele levar, depois me devolve.  Vocês não moram aqui em cima?"
         Olhei minha mãe desconfiada. Olhei o homem me estendendo o volume vermelho.  E antes que algum deles dissesse não-sim, peguei o livro com seu balão e, agradecendo envergonhado, subi correndo as escadas de casa.
Enquanto minha mãe tentava entender aquele homem, areando com força uma panela na cozinha, eu, sentado no chão da sala, acariciava o brinquedo novo.  Agora dava para sentir sua capa antiga, passear pelo azul (sim, havia um céu azul empoeirado), perceber que havia dois homens e uma moça dentro do cesto do balão e tocar com os dedos as letras em relevo: "A Volta ao Mundo em Oitenta Dias".   Dava também para reconstruir o rosto do dono da livraria (que, depois fiquei sabendo, chamavam de sebo): cabelos grisalhos puxados para trás que escorriam até os ombros. Óculos de aros escuros escorregando pelo nariz. E a voz, de um rouco abafado, que ajudava a desenhar o sorriso de piano.
         Passei a ir sozinho para escola e na volta parava na frente da vitrine. Espiando.  Um dia, ele me surpreendeu e perguntou se eu não queria entrar. Fiquei encabulado, já tinha terminado o livro, mas disse que precisava almoçar. "Então volte depois."
         Comi depressa, sem olhar minha mãe, que como sempre ficava muda. Terminei, lavei meu prato e fui levar o lixo para a rua. Antes de sair, experimentei: "preciso devolver o livro." "Vá, mas não demore."
         Primeiro entraram meus olhos.  Diferente da vitrine, o sebo parecia uma bagunça: livros por todo canto, pilhas mal equilibradas e discos de vinil em fileiras pelo chão.   Depois foram os ouvidos: um som angustiado, som de línguas estranhas vindas de uma vitrola em um canto.   E ao lado da vitrola, sentado em uma cadeira de criança, estava ele: "Pode entrar, sente aqui ao meu lado. Gostou do livro? Deixe este ali naquela pilha e escolha outro."
         Fiquei lá boa parte da tarde.  Entre conversas com clientes e resmungos com a esposa Judith, fiquei sabendo que seu nome era Irineu, que a música da vitrola se chamava tango e que era cantada pelo moço emoldurado em uma das poucas paredes livres: Carlos Gardel. Me mostrou livros antigos de aventura e me apresentou a “seu” Lobato com um "leve 'Viagem ao Céu'." Havia também um pôster apoiado em uma pilha de discos, com a foto de um cantor de braços abertos, que parecia o homem mais feliz do mundo e se chamava Germano Mathias. "O Catedrático do Samba!", apresentou seu Irineu, enquanto trocava o disco de tango por um batuque que sincopou irresistível em meus sapatos.
E aquele ritual se repetiu por todos os dias seguintes.  Depois do almoço eu fazia as entregas das roupas das clientes de minha mãe e ia para o sebo, procurar livros, ler muito e ouvir o Gardel e o Mathias.  Eu chegava com um “oi” encabulado e procurava uma das cadeirinhas próximas da vitrola.  Ele sorria e às vezes se sentava ao meu lado, sugerindo leituras ou me estendendo um pequeno dicionário para eu mesmo brincar de Cabral com as palavras.  Outras vezes eu só ficava lá, quietinho, vendo ele conversar com clientes sobre autores que fui, aos poucos, reconhecendo nas estantes. 
          Havia dias em que ele saía para comprar mais livros. E antes que voltasse com sacolas carregadas de mais volumes antigos e seu estranho caminhar de dançarino de valsa, dona Judith conversava comigo: “que sua casa estava tomada pelos livros, que não podia nem mais ver novela porque o sofá fora soterrado”. Mas seu olhar era inundado de paixão por aquele homem tão estranho.
           E eu me tornei uma traça faminta. Devolvia um livro, pegava outro. Às vezes seu Irineu aconselhava: "saboreie mais as palavras." 
 Isso durou até eu cair doente.  Febres e pesadelos me derrubaram por uma semana. Sonhava com Dona Judith, tentando ver a novela por entre os livros. Outras vezes ela estava sentada em cima de uma pilha enorme, batendo a cabeça no teto, assistindo à TV que ficava em cima de outra grande pilha: palafitas de papel e eletrodomésticos. Noutro sonho, seu Irineu fechava o sebo, um caminhão levava todos os livros embora. Um barulho terrível derrubava todas as estantes de tijolos e tábuas. E eu delirando: "eu preciso devolver o livro, eu preciso devolver o livro."
        Quando fiquei melhor e pude sair para rua, as portas de ferro estavam realmente fechadas. Minha mãe desconversou. Voltando da escola, eu tentava olhar por um buraco, mas o galpão continuava escuro e silencioso.
Não pude devolver o último livro, que reli um milhão de vezes.   Refiz todas as viagens de Marco Pólo e me tornei amigo íntimo de Kublai Kan.   Até o dia em que minha mãe me entregou um pacote.  "Estive no centro da cidade e me lembrei de você." O papel era amassado, o embrulho mal feito: seus dedos grossos não estavam acostumados a delicadezas.   Abri devagar e vi surgir "O Conde e o Passarinho", de Rubem Braga.  "Desculpe, está velho, mas o moço disse que é bonito".  Tentei um abraço apertado, mas seu corpo também não estava acostumado a delicadezas.
Esqueci da hora, fiquei lendo até dormir.  Acordo com a luz acesa: duas da manhã. A cama ao lado da minha, continua arrumada.   Sem calçar os chinelos vou até a sala. E lá está ela, dormindo no sofá. Um sono bom, sereno. Quase um sorriso nos lábios. Entre as mãos sobre o colo, um livro aberto: parece um romance.   Eu quero chamá-la, beijar seus olhos, mas não tenho coragem: talvez ela sonhe. Nós dois, numa manhã de sol, descendo as escadas em direção à rua.   O galpão está reaberto, há uma floricultura no lugar do sebo.  Não. Uma loja de espelhos.
          Mas nada mais disso importa: estamos passeando, pisando sobre as ruas de papel.
           E flutuamos docemente sobre as palavras ensolaradas.
                                                                                                                                                                     Gravuras: Brontops Baruq (cedidas pelo autor)
***
Na porta do sebo fechado, vi meu conto pregado, olhando para a rua.
Vi e quase entendi tudo. Ou tentei fingir que não entendia: meio zonzo, fui pedir informação no restaurante de comida capixaba ao lado do sebo:
“Seu Amadeu morreu hoje de manhã. A família pregou esse texto na porta e foi para o velório. Depois vai ter a cremação na Vila Alpina.”.
Agradeci à garçonete e subi, sabe-se lá de que jeito, até minha casa no final da rua Teodoro Sampaio.  E de lá fui para o velório.
As tristezas foram chegando para os olhos e para o peito: os dedos entrelaçados de seu Amadeu, com as unhas amareladas pelo cigarro. O suspiro desalentado de dona Miriam.  O abraço cheio de lágrima de Rebeca, Raquel e Amadeuzinho.
Me lembrei de meu pai, de sua partida.  E descobri a profunda dor da morte revivida.
Os dois, tão diferentes de corpo e temperamento. De sentidos e engajamentos.  Mas perdidas entre as estantes, as semelhanças: o amor pela palavra escrita, pelas páginas sem fim emoldurando o mundo; a ânsia de libertar as almas pelas ideias e criações dos livros. A generosidade de reacender vidas esvaziadas pela miséria.
Durante mais de uma semana, o sebo ficou fechado. E meu conto continuou lá pregado, olhando para a rua.  Sem um rasgo, sem um risco. E quando Amadeuzinho e dona Miriam valentemente reabriram as portas do agora “Sebo Memória...do Amadeu”, meu conto misteriosamente ganhou o mundo: de repente apareceu numa roda de discussão de leitura de jovens da periferia. Noutro dia, serviu para estimular um grupo de pacientes com distúrbios psiquiátricos. E até apareceu como anexo no “Caderno Universitário 1”, “Coesão e Coerência – algumas reflexões” (Piracicaba – Editora UNIMEP, 2004) escrito pela brilhante pesquisadora e doutora em Linguística, Cristina Martins Fargetti.
E por fim, o conto me fez voltar ao sebo numa manhã de chuva.
A porta aberta, o som forte do tango saindo do meio dos livros, das estantes.  Lá dentro, o disco rodando na vitrola.
E em frente à vitrola, de costas para a entrada do sebo, dona Miriam sentada na cadeirinha de madeira.
Soprei seu nome com cuidado, toquei seu ombro, e ela se virou, enxugando os olhos, sorrindo encabulada, “ai, meu filho”.
Puxei a outra cadeirinha, me sentei, e ficamos lá, de mãos dadas, ouvindo o tango do disco.
E esperando os dias seguintes.



Gravuras do conto: Brontops Baruq (cedidas pelo autor)
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 3, 17 e 31/1 e 7/2/2016