sábado, 22 de novembro de 2014

Sertões encantados

(caio silveira ramos)

Prêmio Leia Comigo!(2007)
da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil- FNLIJ


Meu pai chegou com o recorte do jornal: um anúncio convocando os ex-alunos do Seminário de Pirapora do Bom Jesus para um encontro festivo.  No dia marcado, lá estávamos nós no carro, meu pai dirigindo, lembrando pelo caminho de histórias vividas há mais de quarenta anos.
Eu já conhecia muitas delas: minha avó morrera quando meu pai tinha sete anos. Ele disse adeus para o pai (que foi morar com o filho mais velho em São Paulo) e de mãos dadas com a irmã mais nova passou a viver em Itu com a família da mãe.  Quando meu pai completou onze anos, o tio fez o comunicado: ele seria encaminhado para aprender o ofício de sapateiro.  Meu pai não tinha nada contra sapatos, botas e afins, mas nos pés ele já calçava as palavras aladas dos livros que conseguia emprestado das freiras que o ensinaram o abecedário e outras vírgulas.  Acuado, mas coroinha maroto, empiedou os olhos e pediu, “quero ser padre”.  A tia, comovida, ralhou com os filhos, “vejam seu primo, tão piedoso, por que nem um filho meu foi abençoado com a vocação?”. Os primos não se importaram: gostavam dele como um irmão e no fundo sabiam que a vocação dele era bem outra. Ele só queria continuar calçando outras palavras para voar mais alto.  E não necessariamente para alcançar arcanjos e querubins.
Chegamos à Pirapora e subimos pelo velho caminho que levava ao Seminário.  Estacionamos o carro e fomos a pé, meu pai deixando a alma correr na frente aos pulos.  De acordo com o anúncio, os alunos deveriam usar crachás para facilitar a identificação.   Mas ao cruzarmos o portão, um grito saiu de um senhor de bigodes e cabelos brancos que estava reunido com outros senhores de cabelos brancos (e que com certeza, daquela distância, não conseguiam ler os nomes escritos no crachá do meu pai).  Mas podiam claramente reconhecer seu rosto transfigurado:
“E aí, rapaz! Continua lendo Os Sertões?”
Eu sabia que meu pai era fascinado pela obra de Euclides da Cunha desde menino. No Seminário, o acesso aos livros era um tanto restrito: havia uma espécie de index librorum prohibitorum em que certos alencares, machados, azevedos, eças e até lobatos eram sutilmente não recomendados ou simplesmente proibidos.  Mas se até o fantástico e o misterioso eram desaconselhados, não faltavam clássicos da literatura greco-romana, obras sobre vida de santos, compêndios de História Universal e História do Brasil, e alguns livros de aventura.  Daí que os meninos se esqueciam dos estudos de latim e grego, dos banhos frios, do despertar na madrugada e dos dias de jejum, piedade e oração, com autores que iam de Karl May a Júlio Verne e eram lidos por um colega na hora do almoço ou nas quintas e domingos de folga.  
Diferentemente de outros meninos que eram visitados pelos parentes em um dos finais de semana do mês (quando recebiam abraços, presentes e doces), meu pai era esquecido durante o ano todo, só retornando para Itu nas férias de janeiro.  Ele era aluno aplicado, goleiro voador, bamba de pião e papagaio, mas na solidão das folgas, ele se perdia por outros caminhos em busca de novas aventuras. Foi então que topou com Antonio Conselheiro, Beatinho, o temível Moreira César e milhares de jagunços, e se embrenhou sertão adentro.  E aquele livro árido, com seus barroquismos e ciências, desvendou ao meu pai-menino um País rico e miserável, generoso e cruel, místico e valente.    Mal sabiam os padres belgas de olhos azuis e sotaque afrancesado, que o garoto que preenchia os vazios dos dobrados da banda do Seminário com um velho bombardino, naqueles sombrios finais de semana encontrava (no mais insuspeito dos livros) muito mais do que análises da terra, do homem e da luta. Além de ensaios e aventuras, moravam ali, escondidos, o fantástico, o misterioso e os pecados proibidos.  
Por isso, ele se apaixonou pelo grito lancinado que aquelas páginas não abafavam.
Páginas escritas por um homem inconformado feito de angústia.

***

No encontro dos antigos alunos do Seminário de Pirapora, em 1990, os meninos de cabelos brancos se multiplicavam.
Falavam de partidas e jogos pendurados no tempo, de bolas de borracha moldadas com pente para o futebol de botão, dos grêmios de leitura, do salão de estudos, das Festas de São Norberto e do Bom Jesus, onde o batuque negro dos barracões profanos se misturava ao canto-chão e, juntos, embebedaram o sangue dos meninos para sempre.    E se algum daqueles velhos meninos se lembrava agora das músicas da banda ou das peças que meu pai tinha participado, aparecia outro que chegava na roda e perguntava: “diga, Miro, como anda Os Sertões?”.  
A maioria não seguiu a carreira religiosa – inclusive meu pai, que para o desespero da tia, disse que iria para São Paulo, não para usar batina e seguir no Seminário-Maior, mas para trabalhar como bancário, estudar Letras Clássicas e ser professor.  E quando algum colega perguntava “professor de quê?” e ele respondia “de Português”, já vinha a exclamação “claro que foi por causa d’Os Sertões !”, como se fosse uma senha para desvendar antigos sonhos, esquecer dos assuntos graves dos sessenta e poucos anos e disparar a corrida descalça atrás de uma bola de capotão no campo de terra.
Terminada a missa – na qual, para meu espanto, meu pai entoava com os colegas cantos-gregorianos seguindo uma partitura de notações para mim desconhecidas e indecifráveis –, foram aqueles meninos se despedindo dos colegas e de si próprios. E, entristecendo-se, lentamente vestiram suas armaduras de tempo e aceleraram seus carros pela estrada.
No caminho de volta, pouco conversamos.   Eu sabia que meu pai levava aquele menino que se embrenhou n’ Os Sertões, escondido no banco de trás.  E não queria fazer barulho para acordá-lo, tão exausto que ele estava pelo dia cheio.   Sabia também que por amor à palavra feiticeira daquele livro, o menino me tomaria nos braços – para que eu não me ferisse com a dureza do chão e o perigo das plantas espinhosas – até que eu estivesse pronto e pudesse me enveredar sozinho e apaixonado por outros sertões, mais poéticos e mais sonoros. Que ele machucaria tantas vezes a alma rasgada por baleias, tubarões, fabianos e paulo honórios para que meu corpo doesse mais sereno.   Que para centenas de crianças, seus filhos ou não, revelaria aqueles sertões e aquelas almas, apresentando D. Quixote, Zezé, Bentinho e o Visconde de Sabugosa (primo talvez de um tal conde de mesmo nome que aparece perdido nas páginas d’Os Sertões).  E que o menino descobriria que o misterioso adormecer de sua mãe doía tanto quanto aquele narrado nos engenhos de Zé Lins; que a solidão e o abandono no seminário eram as mesmas do coruja André Miranda, de Aluísio Azevedo.  
Mas pelo resto da vida, aquele menino voltaria muitas vezes ao Arraial de Canudos.   Naquele livro feito com a razão de um homem apaixonado, ele encontrou as vozes e as mãos ressecadas para protegê-lo da solidão, e a dor de um mundo inteiro despencada dos olhos de um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.  Naquele livro ele se agarrou às palavras e viveu por elas.    Por causa delas.
Com a liberdade de um sonho inventado.  

Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 7 e 21/11/2014

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Além do Mirante 2: O inventor de brinquedos







Gostaria de ser lembrado como um ser abençoado pela inocência. E que tentou mudar a feição da poesia.






poesia é voar fora da asa
(Manoel de Barros)





sábado, 25 de outubro de 2014

Sobre tempos


Pesadelos.
Estou na rua Governador. Tenho cinco, seis anos.
Procuro a “Lobrás”: quero caminhar pelo último corredor à esquerda, aquele da parede forrada de prateleiras de brinquedos: autoramas, castelos, caixas enormes de forte-apache.  Não vou comprar, só quero ver.  Só quero ver.
Mas a “Lobrás” não está lá.
Sigo em frente. Quero colocar uma moeda nas máquinas de chicletes de bolas coloridas do “Supermercado Brasil”. Mas nem os chicletes, nem as máquinas, nem o supermercado estão lá.
Vou para a esquina da Governador com a Moraes Barros: talvez na “Portalarga” eu encontre alguns brinquedos para ver. Mas não há mais brinquedos. E a “Portalarga” também não está mais lá.
Resolvo descer a Moraes até a Armando Sales: sinto sede e me vem a vontade de tomar suco colorido vendido nas garrafas de plástico em formato de revolvinho, boneco, foguete, tubarão ou qualquer outro brinquedo.  Só vai ser preciso ir até o “Supermercado Guerra”, comprar o suco com alguma moeda e arranjar uma tesoura para cortar o bico da embalagem. Mas o “Supermercado Guerra” também não está mais lá.  Não há suco, nem foguete. E minha sede continua.
Caminho um pouco mais pela Moraes, viro na José Pinto de Almeida e entro na Quinze de Novembro.  Subo um quarteirão para encontrar na esquina a “Livraria e Papelaria Artes Quinze”: a garganta continua seca, mas preciso comprar papel e lápis colorido para recriar aquele sonho: pintar as ruas de novo, as lojas, as pessoas perdidas.
Mas a “Artes Quinze” também não está mais lá. Como também não está, do outro lado da rua, a loja de roupas de Dona Alaíde.
Preciso acordar, preciso acordar. Continuo subindo a Quinze, vou até a esquina com a São João comprar café moído na hora, lá no “Nosso Empório”, do Roberto e do Genésio.  
Mas o “Nosso Empório” não está mais lá. E nem o Genésio. E nem o Roberto.
                   Já que não é possível acordar, caminho de novo em direção à Moraes: talvez na “Farmácia Santa Cruz” seu Pedro me dê algum remédio para afastar essa angústia corroendo o peito.   Mas não há remédio: nem seu Pedro, nem a farmácia estão por lá.
                   Vou até o ponto de táxi no Largo Bom Jesus pedir para seu Facco me levar no seu Corcel marrom de quatro portas até o “JumboEletro”: quero me esconder nas barracas gigantes de vários cômodos que ficam permanentemente abertas no andar inferior da loja. Mas seu Facco não está mais lá. Nem seu Corcel marrom. E as barracas devem ter se perdido com o vento.
Penso em atravessar a rua, entrar na vidraçaria e, embriagado pelo cheiro de massa, tentar me reconhecer em algum caco de espelho.  Mas a vidraçaria também não está lá.
Há no seu lugar uma relojoaria.  E atrás do balcão, alguém que reconheço.  Atravesso a rua e seu Alcides Almeida Souza sorri para a minha chegada.  Ele me dá um forte abraço e me empresta seus olhos claros, regados pela lembrança de meu pai.  E de trás do balcão também brotam dona Lila e seus meninos, todos de olhar claro-regado e abraços de rodear o mundo. 
Depois dos abraços, seu Alcides me mostra os mais curiosos relógios. E a sutileza de misteriosos tique-taques.
Ele regula cordas. Conserta ponteiros.  Rearranja o tempo. 
E quando o tempo finalmente se ajusta, um cuco abre suas portas e canta.   Bato palmas para o passarinho de madeira. Tenho cinco, seis anos.  Não, não sou eu: o tempo já é outro: quem bate palmas para o cuco é meu filho.
E sob palmas, sorrisos e olhos regados, o pesadelo bate asas e voa para o nunca mais.

Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 24/10/2014

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Além do Mirante 1: empate técnico

(caio silveira ramos)

Extra, extra! 
O blogue finalmente empata com o Jornal de Piracicaba. 
Iniciado em agosto de 2014, o blogue Mirante dos Infinitos teve que correr atrás da coluna quinzenal de mesmo nome que é publicada no Jornal de Piracicaba desde junho de 2012. 
Quem chegar agora pode aproveitar para clicar nas postagens sob o título "Sugestões para marinheiros de primeira miragem" e navegar um pouco no passado-presente-eterno.
Até o próximo infinito.


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Aleluias

(caio silveira ramos)

(para Alexandre Barbosa Teixeira)



Geralmente no começo da noite. Elas chegavam. Multidões delas, vorazes, infinitas.  Voando, atravessando a casa, aleluias procurando a luz.
A luz do grande lustre da sala.  
O lustre: suspenso do forro de madeira por quase três metros de corrente, ele parecia um leme rodeado por cinco cachimbos que abrigavam as lâmpadas.   Embaixo, o meio-globo de vidro fosco revelava mais um pouco de luz.   E era por causa dela que algumas aleluias morriam dentro daquele meio-globo gravado por desenhos que lembravam às vezes uma flor, às vezes um sol. Um sol de raios petalados de triângulos.   E era dentro daquele sol que se amontoavam as asas e os corpos das aleluias que se deixavam fascinar pela luz.  Mas muitas escapavam. E se atiravam com fome em sofás, mesas, livros, instrumentos musicais, portas e brinquedos.   Reduzindo tudo a pó.
Para mim, naquela época, não eram aleluias, siriris. Nada disso. Aquele pesadelo atendia por um só nome:
Cupim.
Tentávamos fechar as janelas, apagar as luzes, mas aquele bando selvagem persistia, abandonando as asas, se acasalando, se esgueirando nas frestas para derrubar a casa.   Acho que era esse meu medo maior: que um dia a casa caísse.   Metáfora da vida, do fim da infância? Nada importava. Eu temia que o céu desabasse literalmente sobre nossas cabeças, por Tutatis!
Me lembro de desesperos: eu arrancando a camisa e girando o braço feito um helicóptero para espantar os monstros. Minha irmã chorando, com medo que atravessassem a capa de couro e destruíssem o som de seu amado violoncelo, comprado a duras penas.   Diante daquilo, comecei a temer também por meu violão: a capa tinha aberturas laterais, que eu passei a encher de panos para que os bichos não entrassem.    
O piano parecia resistir.  As vigas do teto, o madeirame do piso e os batentes das portas de mais de oitenta anos se faziam mais amargos na sua emperobice só para afastar a multidão faminta.   Mas o resto parecia entregue à sanha daquele exército arrasador.
Durante o dia, jogando futebol de botão, bolinha de gude ou “cinco marias” (para nós, “porquinho”), alguém ia parar embaixo de algum móvel e cheio de assombro dava o alarme: “tem pozinho de cupim no chão! Aquele resto de madeira significava para nós alguma perda futura e inevitável, além de deixar a sensação terrível de que a qualquer momento sentiríamos o dedo afundando em algum móvel transformado em palha seca.  O som de areia vindo de dentro de um objeto feito de madeira (tal qual um “pau de chuva”) denunciava que debaixo da casca de tinta a óleo o mundo se desmanchava.
No inventário da destruição, total ou parcial, apareciam (ou desapareciam?): um armário de cozinha e um outro, de banheiro (para remédios);  um sofá-cama vermelho;  uma escrivaninha grande; uma escrivaninha menor, dessas para datilografia; uma cuia de chimarrão pequena, própria para crianças; o madeiramento de um forte-apache;  um pássaro-móbile que mexia as asas com o vento ou com uma cordinha puxada na barriga; uma mesa de jantar para seis lugares;  um sermão inteiro do Padre Antonio Vieira;  duzentas e cinquenta e sete declarações de amor de um romance Romântico e a revelação de um conto de mistério de Edgar Allan Poe.
Mas quando os cupins furaram a capa dura de um livro da coleção de Lima Barreto e por caminhos tortuosos devoraram sem trégua dezenas de palavras e frases, eu finalmente entendi aquela legião de famintos.
Eu finalmente compreendi aquela fome.

***

Seu Silvio Luciano deve ser um bruxo. 
Pelas salas e corredores do serviço, vejo seu caminhar sincopado-lento, quase pausado. Andar de quem não tem pressa, mas que sempre chega no tempo certo aonde quer chegar.  E ele vem ainda com aquele olhar atrás dos óculos quadrados: olhar gaiato, ladino, que também sempre chega aonde quer chegar.   
Dizem que já teve uma das mais incríveis lojas de discos lá para os lados da Avenida Paulista.  Dizem que sabe tudo sobre a Segunda Guerra Mundial. E rock. E jazz. E blues. E também sobre aparelhos de TV, de som, de rádio.   E revistas em quadrinhos.
Dizem que ganhou concurso culinário.  E imediatamente posso vê-lo de chapéu de bruxo, mexendo num caldeirão e rodeado pelos discípulos misteriosos de uma sociedade secreta, com suas vestimentas próprias, seus rituais e seus temperos exóticos. 
Assim, não me surpreendi quando ele me explicou como os cupins parecem comer o concreto.  De acordo com o bruxo Silvio Luciano, na feitura das caixas de lajes era usado muito entulho: madeira velha, papelão. O que viesse.   Depois de pronto o prédio, a cupinzada se aproveitava (e ainda se aproveita) das frestas do concreto para encontrar aquele banquete todo.  Então, fazem a festa.  Ou festas. Festas de comilanças e de construção de ninhos.  Resultado: as revoadas das aleluias hoje parecem brotar das paredes.
Quanto aos livros, o bruxo disse o seguinte: o papel geralmente é muito áspero.  Para torná-lo mais sedoso, os fabricantes passam uma camada de algo parecido com amido de milho.  Se os cupins já adoram o papel puro, imaginem só com um amaciante de maisena?  Qualquer livro do Paulo Coelho vira manjar delicioso.
Eu não conhecia Silvio Luciano quando me deparei com os primeiros furos e rastros nos livros de casa.  Achei até que aquilo era trabalho de traça de desenho animado.  Mas depois me dei conta que os cupins atacavam, sem distinção, D’Artagnan,  Padre Amaro,  o Patinho Feio e Anna Karienina.
Mas foi só recentemente, folheando a coleção de Lima Barreto, que me esvaziei dos temores que sentia dos cupins.  Que me desenrosquei da raiva que eu sentia das aleluais.

Aqueles livros foram invadidos sem medo por simples furos nas capas duras. Furos que se transformaram em rios cavados nas páginas macias. Rios que engoliram letras, palavras, ideias e personagens.   Famintos, os cupins pareciam buscar quem os compreendesse na fome e na ânsia. 
E se foram buscar, encontraram.  Encontraram miseráveis, bêbados, desesperados, fracassados, humilhados, loucos.  Velhos e jovens, quase todos trôpegos pelo preconceito que continuou sulcando suas carnes.  
E esse encontro de famintos revelou não apenas o apetite pelo amido das folhas.   Desnudou todas as outras fomes.  As fomes que atormentaram os sonos e as vigílias daquele autor de alma tão corroída quanto as almas de seus personagens.
A legião de famintos cupins conseguiu destruir algumas palavras.   Mas unida aos desvalidos e enjeitados encontrados naqueles caminhos, danou-se a esburacar minha cabeça com as ideias engolidas sem piedade.
E meus miolos sulcados, feito carne enchibatada, agora se contorcem de desespero e humanidade.

Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 26/9 e 10/10/2014

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Rotina

(caio silveira ramos)

Todo dia ele fazia tudo sempre igual.
Pouco antes das cinco da manhã, meu pai se levantava da cama.   Na cozinha, colocava numa das asas do fogão antigo, as duas ex-latas de bolacha: a maior, com açúcar cristal; a outra, com o pó de café.    Encaixava no velho tripé de ferro o coador de pano e logo abaixo o bule de metal sem a tampa.  E enquanto deixava a água em fogo baixo para ferver na “caneca” (era esse o nome que ele dava para a panelinha certa, que tinha até a marca da medida correta), meu pai ia para a sala fazer a ginástica aprendida nos tempos do Seminário de Pirapora.   Nada muito puxado, só movimentos básicos para começar bem o dia.  De volta à cozinha, com a água já fervendo, escaldava o coador, jogava fora a água do bule e media com uma colher (pouco maior e mais pontuda que as de sopa) o nível da água que tinha ficado na “caneca”.    Tudo nos seus conformes, colocava as colheres “certas” de açúcar e de café, mexia aquele caldo grosso e escuro e o despejava cuidadosamente no coador, só parando para dar umas mexidinhas na “caneca” pra que a mistura saísse uniforme.   Enquanto o café ainda caía no bule, despejava com muito jeito um tanto na sua xicrinha de ágata e tomava de olhos fechados.   Depois colocava mais um tanto numa outra xícara (de louça ou também de ágata, só que maior que a sua) e levava para minha mãe acordar seu dia. 
E ela despertava com o aroma, o gosto e o cuidado. Ou já estava desperta, protegendo a família e o mundo com suas orações.   E enquanto meu pai arrumava a mesa (ou fazia a barba e se preparava para o banho), ela colocava o leite para ferver e ia me chamar, já com meu uniforme passado, cheirando a novo.
E era um chamado doce, de proteger meus sonhos guardados: “filho, cobre os olhos”.  E era só eu me cobrir para ela acender a luz, já me oferecendo desculpas: “precisa ir hoje mesmo? Está chovendo lá fora”.   Ternura marota: talvez ela já soubesse que assim eu jamais conseguiria me negar a começar o dia.
Eu enrolava um tanto, imaginava o tempo lá fora e a manhã que me aguardava. Vestia o uniforme e cambaleando abraçava e beijava minha mãe, que naquele instante pendurava numa cadeira colocada em frente à porta do banheiro a roupa do meu pai passada há pouco. Não que precisasse ou ele pedisse: a roupa já saia perfeita do guarda-roupa. Mas o guarda-pó branco e comprido, e a camisa cheirosa passados de manhã eram apenas mais uma das muitas ternuras daquela mulher: era como se naquele momento ela acarinhasse e protegesse meu pai pelo dia todo.
De banho tomado, com o cabelo ondulado ainda molhado e penteado para trás, vestindo só a calça e os chinelos, meu pai abria a porta do banheiro para apanhar a camisa. Então, eu o abraçava.  E naquele abraço eu repousava mais um pouco: o cheiro do café espalhado pela casa, o cheiro da roupa passada, o cheiro do perfume do meu pai me embalavam e me abrigavam dos males da vida.
Eu lavava o rosto, tentava domar meu cabelo com a velha escova do meu pai e me sentava à mesa do café.   E enquanto mergulhava o pãozinho sem miolo que ele ou minha mãe tinham acabado de trazer da padaria, meu pai, carinhoso-zombeteiro, se ria do meu jeito de soprar a quentura do leite com café, me chamando de “bico fino”.  Mas lá vinha minha mãe de novo, colocando a minha caneca numa panelinha com água fria. Ou ele mesmo amornava tudo, passando o café com leite de uma xícara para outra.  E eu tomava aquele leite espumoso sob os olhos risonhos do meu pai.   E meu dia, enfim, acordava.
*
Há quem diga que nenhum amor sobrevive à rotina.
Talvez.
Ou talvez só na rotina o amor se revele inteiro. 
E para sempre.

Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 5/9/2014

terça-feira, 21 de outubro de 2014

João Pedro: mais que um nome

(caio silveira ramos)

(escrevi este texto em 2008. Esta crônica é sua versão diminuída para o espaço e infinitada pela ternura)

(Nota das primeiras noites de acalanto: o texto a seguir foi escrito pouco antes do nascimento do João Pedro, que resolveu dar o ar da sua graça (e estonteante beleza, ora pois) no dia 18 de julho deste 2008.  O número 18 parece ser extremamente significativo para algumas religiões e seu Germano Mathias, que é ligado nessas coisas, já lembrou que 1+8=9 e que “João Pedro” tem 9 letras...
Horas depois do seu nascimento, no comecinho do dia 19 de julho de 2008, faleceu a atriz Dercy Gonçalves: que ele seja alegre como ela e viva muitos e muitos anos, mas por favor, não fale tantos palavrões, menino!
Certo que em um 18 de julho nasceu o craque Arthur Friedenreich (para quem Pixinguinha e Benedito Lacerda compuseram o incrível choro Um a zero, o que me leva a crer que o menino terá muita ginga, ora, ora) e em outros dias 18 de julho de diferentes anos nasceram 3 vencedores do Prêmio Nobel (um de Física e outros dois de Química).  No entanto, por outro lado, num dia 18 de julho parece que Nero botou fogo em Roma e em outro, Hitler publicou Mein Kampf.   Mas será outra a luta de João Pedro, que não é desses e já detesta ditadores e pessoas com o ego inflado: ele incendiará tudo com suas ideias para fazer do mundo um lugar melhor para se viver e sonhar. Que Nelson Mandela – que nasceu num 18 de julho –, e Padre Antonio Vieira – que faleceu num outro mais longínquo –, sejam modelos para o menino. Modelos de que é possível revolucionar o mundo, tornando-o muito melhor, por meio de ideias, da coragem, da força das palavras e de muita arte.  Salve João Pedro!).

Quando buscávamos um nome para dar para nosso filho, muitos amigos sugeriram: “coloque um que possa ser pronunciado fora do Brasil, um nome internacional: se ele for estudar ou trabalhar no exterior, ninguém vai ter dificuldade de pronunciar o nome dele”. Nem preciso dizer que esses amigos se espantaram quando dissemos que o nome seria “João Pedro”.  Vamos lá para as razões:
A palavra “xibolete”, de acordo com o Dicionário Houaiss, significa “sinal convencionado de identificação; senha” (Rio de Janeiro, Objetiva, 2001).  De acordo com o mesmo Dicionário, a palavra vem do hebraico “shiboleth” (espiga), através de cuja pronúncia os soldados de Jefté, um juiz de Israel (sXII a.C.), identificavam seus inimgos efraimitas, que a articulavam como “siboleth”, já que não conseguiam pronunciar palavras com som de “x”. Deonísio da Silva, escritor e professor, completa a lição indagando: “quais seriam os xiboletes, não de alguns falantes da língua portuguesa, mas de todos?” Ele mesmo responde: “o principal é o ‘ão’. O português é a língua do ‘ão’”.
Eruditismos à parte, para quem conhece o pai do João Pedro, sabe que ele é apaixonado pelo seu país, por música e pela Língua Portuguesa. E espera que seu menino cultive também essas paixões.  Assim, João Pedro levará no seu próprio nome a identificação com sua língua (um indiscutível e sonoro “ão”) e o reflexo do amor de seus pais por ela.   Para quem acha que existem por aí muitos Joões e Pedros ruins, verdadeiros Joões bobos, pode anotar que o nome do pequeno não foi inspirado neles. E nem será neles que João Pedro se inspirará. 
Embora “João Pedro” contenha os prenomes de três representantes da família real luso-brasileira, não foi por causa deles que o menino foi assim chamado. Está certo que D. João VI deu um espetacular “chapéu” em Napoleão Bonaparte (isso reconhecido pelo próprio), e o nosso pequeno precisará ter muito jogo de cintura para se livrar dos “zagueiros” mais truculentos; está certo também que D. Pedro I era um sujeito corajoso e apaixonado, e o menino não deve ter medo de se apaixonar perdidamente; por fim, não se pode negar que D. Pedro II era um imperador amante do conhecimento, da leitura, das artes e da cultura, e o nosso João Pedro deve valorizar tudo isso, muito acima de qualquer outro tipo de riqueza.   No entanto, convenhamos, não só por ser de uma família de históricos opositores da Monarquia, mas que João Pedro ame e entenda toda beleza da palavra “República”, pois seu sentido vai muito além da acepção política. Que ele paute sua vida por um comportamento republicano, nunca confundindo o que é público com o que é privado, e que sempre, sempre lute por aquilo que é bom para todos que vivem em seu país e no mundo.
E para quem pensa que o sonoro nome “João” é uma maldade com o menino, caso ele queira estudar ou trabalhar fora do País, é bom lembrar que apesar de os estrangeiros terem dificuldade de pronunciar “ãos” “xiboleteiros”, isso não impediu ou não impede que vários “Joões” tenham mostrado (e ainda mostrem) seu imenso valor, inclusive lá fora.  São Joões que os pais de João Pedro tanto admiram por, entre outras coisas, amarem e tratarem tão bem a Língua Portuguesa e o País.   
Entre tantos Joões que inspiraram o nome do pequeno estão João Guimarães Rosa, autor tão querido do amado vô Miro (e que o pequeno reconheça sempre o avô através das letras miúdas escritas nas margens dos livros e o encontre dentro do coração), e João Cabral de Mello Neto: dois escritores fabulosos, que tiveram inclusive respeitáveis carreiras diplomáticas.  E nunca se soube que seus nomes atrapalharam seus caminhos e suas artes.
Que inspirado neles e em tantos outros Joões e Pedros, que o menino saiba trilhar livre seu próprio caminho.

***

João Guimarães Rosa, João Cabral de Mello Neto, e também João Antonio, João Gilberto, João Nogueira e João da Baiana, cada um com seu “ão” bem sonoro, foram fontes de inspiração para o nome do pequeno João Pedro.  E servem como prova de que um nome com a marca tão típica da Língua Portuguesa não impede o reconhecimento em terras alheias.
E há outros tantos Joões queridos que também foram fonte de inspiração para se atribuir tal nome ao menino: o sambista João Borba – e que João Pedro, como seu pai, encontre toda força e magia transformadora que o samba tem -, o poeta João Caetano e o generoso João de Jesus Ângelo, todos amigos adoráveis; os músicos João Pacífico, João Pernambuco, João do Vale, João Donato e Adoniran Barbosa (Adoniran? Sim! Ele na verdade se chamava João Rubinato...).  E os escritores João do Rio, João Carlos Marinho e João Ubaldo Ribeiro.  Há ainda João Saldanha, a quem Nelson Rodrigues chamava de “João Sem Medo”. E também Braguinha, que optou pelo apelido “João de Barro” – passarinho danado de esperto – e que, entre outras obras-primas, compôs a letra de Carinhoso, música tão querida pelos pais de João Pedro.  Isso tudo sem falar num admirável bisavô paterno (trisavô, portanto, de João Pedro) – um grande médico em pleno século XIX –, cujo nome era João Batista (tendo inclusive inspirado o nome de dois tios e de um primo do pai de João Pedro).

Entre os santos há São João, a quem se atribui a autoria do mais poético dos Evangelhos e do alegórico e mágico Apocalipse.  Há também São João Batista, o destemido, simples e humilde primo de Cristo, cuja festa se comemora em 24 de junho, aniversário do amigo querido Fernando Szegeri (Ah! João Pedro pode e deve perder a cabeça por culpa de uma mulher – já que muitas perderão a cabeça por sua causa –, mas vivo que será, fará isso apenas no sentido figurado). E também São João Bosco (que sabia da importância da educação para as crianças), São João Batista de La Salle (padroeiro dos professores, profissão amada pelos avós de João Pedro, e também do dia do nascimento do pai do pequeno), João XXIII e São Francisco de Assis.  Sim!  Um dos maiores símbolos do verdadeiro cristianismo ficou conhecido como Francisco, mas nasceu Giovanni (João) Bernardone.
Almeida Garret era João. E mesmo sem o xibolete, Bach também era – embora um João (o Carlos Martins), com seu legítimo e sonoro “ão xiboleteiro”, seja reconhecido como um de seus grandes intérpretes pelo mundo afora. 
Nascido do genial Dorival Caymmi (que o pequeno seja acalentado por sua voz) há João Valentão, que é brigão, mas “que nunca precisa dormir pra sonhar”. E de Noel Rosa vem o João Ninguém, que apesar do nome, “muita gente, que ostenta luxo e vaidade, não goza a felicidade que goza João Ninguém” (mas não se enganem: João Pedro terá, sim, opinião). 
Isso tudo sem falar no mítico “Joãozinho”, protagonista eterno de singelas piadas que se passam numa sala de aula qualquer.  Pois então: que João Pedro saiba rir de si próprio. 
É preciso lembrar, por fim, que “J” é a inicial dos nomes de sua vó e bisavó paternas, ambas chamadas “Jandyras”.  Aliás, a avó de João Pedro, quando mocinha, era conhecida como Jandyrinha ou Janda, saboroso apelido que um primo disse evocar uma acolhedora varanda (e o pequeno vai saber quanto acolhedora ela é).  Janda que, aliás, rima com Wanda, nome de uma bisavó muito querida.
Ah! E para quem se lembrar que os Joões eram as “vítimas” do craque Garrincha, não se esqueça: antes de tudo, quem tinha Mané por apelido era ele.

***

Muito bem: parece que o nome João já está bem justificado.
Mas, e Pedro?
Além de o nome evocar os talentosos e criativos “Pedros” Nava, Américo e Almodóvar – e também o folclórico Malazartes (não disse que o menino vai ter jogo de cintura?) –, se o significado de “João” é “Deus é misericordioso”, o de “Pedro” é “rocha, pedra” (olhe só a presença da poesia de João Cabral aí de novo).  Assim, os pais do nosso herói resolveram equilibrar as coisas e juntar os dois nomes.    E nesse equilíbrio entre a fortaleza e a compaixão reside a razão maior para o pequeno ser chamar João Pedro.

Sendo Pedro, que ele nunca se curve diante de poderosos, não tolere preconceitos, seja firme, destemido, honesto (inflexivelmente honesto) e altivo. Que ele procure não fraquejar nos momentos decisivos e que possa ter força (e muita saúde) para enfrentar todas as tempestades.  Mas também, nomeado João, que ele seja bom (infinitamente bom, inclusive de caráter), equilibrado, caridoso, ponderado, generoso, desprendido, humilde, justo, doce, amoroso, nem um pouco arrogante, e que sempre, com muito bom-humor (isso é muito importante), possa sempre estender a mão para quem também precise enfrentar àquelas tempestades.  Não, não é preciso que seja O Grande como aquele outro Pedro, mas que ele procure ser curioso, inventivo, carinhoso, sedento de conhecimento e liberdade.  E que tenha a capacidade para se encantar e sonhar como o neto de Dona Benta, o inesquecível Pedrinho. 
Entre os santos, há São Pedro que, tal qual João Batista (o do carneirinho), também está no mastro caipira, só que com as chaves na mão.   Pois esse Pedro é admirável porque talvez seja um dos personagens mais humanos da história das religiões (tanto que até sogra tinha...): trabalhador, hábil pescador de peixes e almas, e profundamente questionador, ele era simples e sábio.  E se em um dado momento negou três vezes o seu caminho – afinal todos têm direito de errar também –, soube voltar atrás e enfrentar todos os seus medos, inclusive os da fé e os da morte.   Aliás, o momento de sua morte sintetiza sua coragem.  E também sua profunda humildade.
A letra “P”, que inicia o nome Pedro, nem precisava ser a do time do coração de seus pais, do vô Roberto, da vó Maria, dos bisavôs Domingos e Primo...  Mas, acima de tudo, que tal letra faça João Pedro sempre se lembrar de sua mãe Patricia e do amor que ela sempre teve por ele, mesmo antes de seu nascimento.   E que tal letra também não o deixe esquecer o doce e sorridente nome “Pixinguinha” para que seus sonhos tenham sempre o som de uma flauta mágica.  Assim, que João Pedro tenha o brilho no olhar e o eterno sorriso nos lábios (e no coração) que iluminam tanto sua mãe quanto São Pixinguinha.
 Espero que nosso herói tenha o coração maior que o mundo, mas que no final das contas ele seja livre para ser como quiser, afinal é bom que o pequeno tenha personalidade própria e única.  
João Pedro não precisa ser isso ou aquilo.
Que ele seja bem-vindo, que seja muito, muito feliz, mas que o nosso desejo de felicidade para sua vida não se transforme em carga pesada e enfadonha.
Mas se pudermos pedir uma única coisa, que seja essa:
Que ele tenha a infinita capacidade de amar e ser amado.

Ilustrações: Erasmo Spadotto e Maria Luziano – cedida pelos Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 25/7 e 8 e 22/8/2014

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Ensinando passarinhos

(caio silveira ramos)

Não era da calçada.
Ele primeiro abria a porta que dava para rua e entrava no saguão de entrada com seus quase seis metros de pé direito.  Depois o pai subia a escada de piso de madeira e chegava à plataforma de cima, onde outras portas (uma logo à frente, outra à direita), antigas, de batente largo, folhas duplas, bandeiras de três vidros quadrados (e altas como dois gigantes zelosos com os braços cruzados nas costas – afinal, eram trancadas por dentro), protegiam as pessoas da casa.  
Então vinha o assobio do pai.
Sempre o mesmo ritmo. Sempre a mesma melodia.
E o saguão recebia toda aquela sonoridade e a amplificava, inundando o dia de sorriso e chegança.  
Não tinha nada de senhorial o tal canto: assobio pra chamar meninos? Nada, nada.  Era uma forma de enganar a campainha, era o som do pai vindo, rindo: o assobio daquela melodia em tom maior só podia trazer alegria e não o mando.
E o som recheado pelos quase seis metros de pé direito, entrava pelas frestas das portas, pelos buracos das fechaduras, pelos vãos do assoalho e das vigas.
E invadia a casa.
E fazia dueto com o piano da mãe.  Com a folia das crianças. Com a fumaça das panelas, com os cheiros das comidas, das pessoas, dos bichos, das paredes.
E se enroscava no forro entreliçado da cozinha, nas árvores do quintal, ensinando os passarinhos espalhados pelo pátio, pelos arames da antena da TV. E os sons, os cheiros, as conversas, os cantos juntavam todas as suas pernas e corriam para abrir as portas para o pai.
Quando o filho se deu por gente, passou a tentar imitar o tal assobio.   Voltando de um passeio, chegando da rua, o pai deixava o menino tentar primeiro.  E lá vinha o assobiozinho, copiando a melodia do canto do pai, tentando driblar a dureza das portas.   Mas mesmo afinado, direitinho, o assobio (quase um suspiro) só arranhava a tintura das madeiras.  Então o pai, não por deboche, mas por peraltagem, alçava no ar do saguão o sopro enganchado no sorriso gaiato, que enfeitiçava os gigantes e abria as portas do mundo.
O pai se foi e o assobio foi com ele.    Nas ruas, nos dias de sol; em casa, debaixo do chuveiro: o filho tenta, no comungar do tempo, reproduzir o feitiço do pai.
Mas seja sussurrada ou apenas no oco do pensamento, a melodia, aquela melodia, teima em sair apenas triste, débil.  E sempre em tom menor.
Só que às vezes, vindo da rua madrugadeira ou de um sonho perdido, o assobio do pai parece chegar pelo canto de um passarinho vadio.
E o dia clareia, abrindo todas as suas portas.

Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 11 de julho de 2014 

domingo, 19 de outubro de 2014

Ponto de fuga

(caio silveira ramos)

Dobrei uma folha em quatro, dei um pequeno corte em um dos lados do papel, levantei dois bicos a partir da fenda, fiz um desenho e entreguei aquele “cartão” improvisado para o meu filho.  Quando ele abriu, riu satisfeito e pulou de alegria ao ver um sapo maluco que, ao se mexer nas abas do cartão, fechava e abria a boca, expondo uma aranha também maluca dentro da goela de papel.  “Você que inventou isso, papai?” “Não, aprendi na escola”. “Como chamava sua professora?” “Não foi uma professora, foi um professor que me ensinou. O nome dele é Norberto”.
Enquanto eu preparava com ele uma dezena de cartões como aquele para presentear sua mãe e os amigos da escola – deixando a sala de casa ser invadida por corujas dizendo “eu te amo”, pintinhos comendo minhocas vesgas, pavões com distintivos de times de futebol gritando gol e peixes soltando bolhinhas de água pela boca –, fui me dando conta que muitas das arteirices que fazia para (ou com) o pequeno, eu tinha aprendido com meu professor de Educação Artística na longínqua década de 1980: bichos e pessoas feitas a partir de desenhos de grãos de feijão dos mais variados tamanhos, perfis de bruxas banguelas, casas em perspectiva, dados de papel, mágicas com cores nascidas da mistura de tintas a guache em forminhas de gelo.
Fui aluno de Nelson Norberto Vieira Sobrinho no Colégio Luiz de Queiroz (CLQ) durante cinco anos que mudaram a minha maneira de perceber o mundo.   De voz suave e traçados precisos na lousa, seu Norberto me ensinou desde o início que mesmo alguém sem pendor artístico poderia se divertir com a arte.
Me lembro de seu primeiro exercício: uma fileira de árvores que não deveriam ser pintadas, mas preenchidas com grafismos.    Depois outros grafismos rechearam uma ladeira de casas, criaram no papel as nervuras de um corte de madeira (interrompidas por alguns “nós”) e inventaram um quadro em que o acompanhamento de uma linha curva emprestava à figura uma sensação de terceira dimensão. 
E com as lições seguintes vieram quadros feitos de papel-cartão preto recortado, que transformavam a folha branca em um jogo de contrastes claros e escuros.  Desenhos mágicos surgiram de simples manchas de nanquim em um papel “canson”. Folhas de papel dobradas em forma de sanfona, coladas com gravuras recortadas em tiras, fizeram nascer quadros curiosos que geravam diferentes imagens se olhadas de frente, do lado direito ou do lado esquerdo.  Tinta, vidro e massa feita de epóxi brincavam de falsos vitrais. Caixas de fósforos embrulhadas de papel de presente ou de finas lâminas de cortiça renasciam em insuspeitos porta-retratos.  Folhas, pequenos galhos e pétalas de flores se metamorfoseavam em peixes e borboletas.  E se nessa lição eu usei esse material para construir uma grotesca coruja (baseada ainda nos desenhos de um feijão), minha colega Eliana Veras, quando ainda usava cabelos curtos, fez nascer uma sereia inesquecível que até hoje me aparece em algum sonho sereno.
Havia um exercício desafiador que se repetia todos os anos: escolhia-se numa revista um cenário qualquer, como uma sala, um quarto, uma cozinha.  Depois, de outras páginas, de outras revistas, recortavam-se figuras de objetos, de móveis, de pessoas que deveriam ser coladas naquele cenário.   Para o trabalho ficar bom, as figuras não só deveriam estar bem cortadas e coladas, mas suas posições deveriam se adequar às proporções, às cores, à luminosidade, à textura do cenário.   Sabia-se que o trabalho estava perfeito quando seu Norberto passava suavemente a ponta dos dedos sobre o cenário: se só o tato conseguisse detectar as colagens, o objetivo tinha sido atingido.
Mas essa era apenas uma das lições que mudaram minha maneira de perceber o mundo concreto e imaginado.  Naqueles cinco anos, expressões como “perspectiva” e “ponto de fuga” passaram a fazer parte do meu vocabulário e da minha visão.  
Visão que, se até ali já era perturbada pelas imperfeições dos olhos e do daltonismo, agora também era provocada pela arte.

***
Quando seu Norberto apresentou a perspectiva e o ponto de fuga para desenhar casas, cadeiras e mesas, descobri encantado que para refletir aquilo que se vê, a arte precisa criar artifícios e driblar a realidade.  
Nas aulas que ensinavam a desenhar rostos em perfil, uma lição, em seu início, encheu a classe de risos: diferentemente dos primeiros modelos proporcionais e harmônicos, o daquele dia começou com uma testa torturosa e um nariz tortuoso.  Depois veio a boca encolhida.  E um queixo quase tão monstruoso quanto o nariz gigantesco.   E enquanto ainda ríamos daquela figura patética que se desenhava, seu Norberto teceu longas barbas sob o nariz disforme. E todos nós silenciamos respeitosos: de surpresa na lousa apareceu um ancião venerável de olhar sábio.  Descobri aquele dia que a arte às vezes encontra no (aparente) feio toda sua beleza.
Nos quadros a guache, com ruas e casas antigas, ele ensinou que a simples presença de uma figura humana, como a de uma mulher com uma lata na cabeça, levando um menino pela mão, mudava todo movimento da cena.   E eu descobri que a arte pode criar vida.
Então começaram as aulas de História da Arte.  Mas não era só uma questão de acompanhar passivamente o caminhar de uma linha evolutiva.  Era evoluir com ela: a cada período, a cada “Escola”, a aula ensinava a colocar no papel os fundamentos de todas as revoluções.   E junto com meus colegas, fui modestamente imitando impressionistas, cubistas, expressionistas, dadaístas e surrealistas.
E de repente, manchas no papel vistas de longe viravam paisagens.    Do desenho de metade do “guarda-roupão” caseiro sobreposto ao contorno de outras partes do mesmo móvel, vistas de diferentes ângulos, eu conseguia criar uma imagem nova (mas talvez já presente em algum canto da cabeça).  E numa paisagem toda cinza, povoada por crianças esquálidas de olhos esbugalhados, fiz uma cruz vista de costas – com um dos braços já despencando e com o outro tomado por uma gigantesca teia de aranha –, onde se podia perceber o cotovelo de um provável Cristo pregado e esquecido. 
Enfim incontrolável, lá fui eu destrambelhando outros desenhos em outras tantas folhas: um balde de ouro, mas sem fundo, que deixava a água se desperdiçar eternamente. Um saxofone alado, de onde saltava um homem sem rosto que pescava notas soltas no espaço.  Uma pipa rija, com braços e pernas, que empinava um menino sorridente, com a cabeça, o corpo e membros ondulando no alto de um céu azulado.   E tudo isso seu Norberto permitia, incentivava, estimulava.  E ensinava, sem qualquer autoritarismo, que arte era um exercício de liberdade.
Hoje, ainda que sem o mesmo dom do meu antigo professor, vou brincando de ensinar algumas daquelas lições ao meu filho.
E percebo que a arte pode não apenas pode mudar a maneira do pequeno ver o mundo.
Ela e ele juntos podem criar um mundo novo.

Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 13 e 27/6/2014