(caio silveira ramos)
Foi então que a cachorra Nina deu
para roubar um pé do meu tênis de dentro do armário e sair correndo para se
esconder pela sala, cheirando, cheirando o calçado, tirando a palmilha interna,
roendo as pontas dos cadarços. Ela que
sempre tivera exclusiva atenção para com os chinelos da sua Escolhida,
respirando, mordendo, roendo suas tiras. E assim, por amor, estraçalhou cinco
mimosos chinelos: velhos, novos, novíssimos, das mais variadas estampas e
cores. Os chinelos da sua Escolhida. Os sabores da sua Escolhida.
Desde pequena, assim que entrou
em casa, ela fez a sua escolha. E, daí para frente, o colo mais procurado, o
abraço mais aconchegado foram sempre os da Escolhida. E os olhos mais fechados?
E a cabeça erguida para oferecer o longo pescoço aos mais doces afagos? Sempre
foram para a Escolhida. É pela Escolhida que ela espera sentada tristonha sobre
as almofadas da cadeira de balanço. É pela Escolhida que ela se posta
companheira ao lado da cama quando alguma dor de cabeça ou resfriado se abriga
no corpo da amada. É pela Escolhida que ela late vigilante para o invisível
quando qualquer mistério flutua pelo ar. E são da Escolhida os chinelos e
sapatos que ela assalta para explorar seus sentidos.
Para mim ela sempre latiu festiva
na minha chegada. E sempre se deitou de barriga para cima com o rabo balançando
com força para receber o carinho especial na mancha branca sobre o peito. E
alegreassustada rodou pelos quarteirões comigo a levando pela coleira. Em mim,
Nina sempre chegou com sua bola e seus outros brinquedos para que eu os
atirasse e ela me trouxesse novamente. E
se o jogo da TV tem 90 minutos mais o intervalo, por 90 minutos (e durante o
tal intervalo) ela sempre esperou ansiosa que eu arremessasse seus brinquedos.
Ou me provocou com a pata, enquanto eu tentava acompanhar o ataque do meu time,
pedindo que eu jogasse mais uma vez, mais uma vez, mais uma vez, a bola, o
osso, o urso, o mundo. E ela sempre me trouxe tudo de volta. Se para ela sua
Escolhida sempre foi o sol, eu até agora fui um dos seus brinquedos. Eu estava
ali, entre a bola de travas de borracha e um pinguim de pelúcia já surrado.
Então, depois das minhas curtas
férias, Nina abandonou os chinelos da Escolhida e encontrou meu velho tênis.
Me envaideci todo: a Escolhida
podia até ser ainda seu sol.
Mas agora, todo cheio de mim, eu
já podia me sentir quase uma lua crescente.
***
Quando a cachorra Nina, depois de
abandonar definitivamente os chinelos de sua Escolhida, resolveu se esconder
pela casa com um pé do meu velho tênis (usado incansavelmente durante minhas
curtas férias), me enchi de vaidades.
A primeira coisa que pensei foi
que ela queria me sentir por perto durante minhas ausências. Ela não podia me
perder enquanto eu estava no trabalho: precisava sentir minha presença, minha
proteção, reter na memória meu carinho, colher nos seus sentidos minha
essência.
Depois fui além: na verdade ela
assaltava meu tênis como quem vasculha os bolsos da pessoa amada: precisava
saber por onde eu andava, com quem falava, por quem eu acelerava o
coração. Estariam minhas mãos se
espalhado em mil outros afagos? Estaria eu em caminhos perdidos, acarinhando
vira-latas sem conta? Ou mesmo fechando os olhos ronronantes de gatas
extraordinárias? Por ciúme (e me envaideci muito mais pensando assim), ela
procurava respirar minha vileza, desconstruindo meu velho calçado.
Então, enquanto me preparava para
o banho após uma exaustiva jornada de trabalho, me dei conta de que estava
totalmente errado. Olhando os sapatos que tinha usado o dia todo, fui invadido
pela desvaidade: se Nina procurasse realmente absorver minha presença, se ela
se enciumasse por meus supostos descaminhos, ela fugiria com aquele par de
sapatos, não com o pé de um tênis usado durantes as férias ou em algum passeio
no final de semana.
Nina pouco se importava comigo.
Como sempre fizera, ela, generosa, continuava a me emprestar um pouco de seu
carinho na minha chegada. Ou sua euforia para um breve passeio noturno em volta
do quarteirão. Ou até sua alegria para apanhar a bola que minha exaustão
arremessava pela sala. Meu pé de tênis
roubado não servia para que ela se lembrasse de mim. Servia para que ela
pudesse alimentar seus sonhos de aventuras.
Ela queria trilhar meus caminhos,
mas não por mim, e sim por ela e por sua Escolhida. Nina queria era descobrir os lugares por onde
eu andara nas férias ou nos finais de semana para sonhar com eles: ela queria
todos os cheiros, os gostos, os olhares. Queria sentir o perfume do gramado
onde eu jogara bola com o João Pedro, a poeira dos parques caminhados, o sabor
do filé à parmegiana saboreado em Itu. Talvez até tivesse se enamorado pelo
cachorro grande e forte dos meus sobrinhos que moram lá em Vinhedo: meu tênis,
o cupido daquele amor canino platônico.
Quem sabe, mais que tudo isso,
ela quisesse apenas saber por onde passeara sua Escolhida (que deixara os
chinelos em casa durante as férias). Meu tênis seria seu informante. O
confidente que revelaria os passeios de sua Escolhida, seus descansos, seus
risos, sua alegria. Meu tênis, que tinha
se beneficiado do brilho e calor do sol. Do sol que era a sua Escolhida.
E resignado com o retorno a minha
insignificância, feito lua minguante, fui de meias até a sala, onde Nina me
esperava para que eu arremessasse sua bola de borracha.
Eu, apenas mais um de seus
brinquedos.
Ilustração de Maria Luziano - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 13 e 27/8/2017
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