(caio silveira
ramos)
Detesto violência. Abomino a
tortura, o tapa, o grito. O ganhar no berro ou no muque. O convencimento pela
brutalidade.
Certo que na infância brinquei de
mocinho e bandido. Fui Robin Hood com
arco de cabide e flecha com ventosa de borracha na ponta. Zorro de espada de
plástico. James West com revólver de espoleta de rolinho. Batman com punhos que
faziam sock, crash, splatt. zlopp e pow! Também derrubei os muros de madeira
do Forte-Apache e, fantasiado de Tarzan com shorts de elástico na cintura, me
atraquei com os mais famintos crocodilos. Brinquei, sonhei e tornei a brincar.
Mas as brincadeiras e os sonhos não me tornaram violento nem defensor de
truculências. Muito pelo contrário: as “lutas” da infância me ajudaram a
discernir o certo do errado. O bom do mau.
O Thor do Loki. E me ensinaram muitas vezes a encontrar a justiça e não
a brutalidade.
Confesso que tive sorte de não
ter sofrido a violência do bullying e
nem mesmo ouvido um ameaçador “me espere na esquina”. Mas nunca fugi dos bons combates, mesmo que
esses tenham ficado apenas no campo das ideias e das palavras.
Desconfio, porém, que assim como
Clarice Lispector em “A mulher que matou os peixes” contei toda essa história
de menino comportado e pacífico para tentar marotamente me justificar por dois
terríveis atos de violência física que pratiquei contra – e isso é o mais
assustador – dois queridos amigos.
O último caso aconteceu em 1988,
num intervalo das aulas do 3º colegial.
Atribulados pelas provas finais e pelo vestibular que se aproximava
ameaçadoramente, aproveitávamos o pouco tempo de folga para jogar conversa fora
ou alguma bola pra dentro da rede.
Foi num desses intervalos que, ao
pular para fazer o arremesso em direção à cesta de basquete, meu joelho bateu
forte no queixo do Chicão Totti, que justamente tentava se erguer após perder o
equilíbrio durante a disputa da bola.
Não sei se consegui fazer o ponto: só ouvi um “creque” e vi o colega
colocar a mão na frente boca. Fui socorrer o Chicão e percebi que ele tinha
quebrado parte de um dos dentes da frente.
Fomos até a enfermaria e a escola o encaminhou para um dentista.
Enquanto, desolado, eu esperava
sua volta, correu o zum-zum-zum pelo colégio:
“briga-feia-Caio-e-Chicão-mas-eram-tão-amigos-deve-ter-mulher-no-meio-quebrou-dois-dentes-tem-certeza-que-foi-ele?-tenho-eu-vi-tudo-parece-que-a-joelhada-deslocou-o-queixo-também-mas-ele-é-tão-calmo-que-nada!-nervoso-bravo-já-brigou-com-professor-mentira!-que-nada-eu-vi-viu-nada-que-foi?-tá-me-chamando-de-mentiroso?-vou-dar-uma-de-Caio-e-quebrar-sua-boca-também!”
E por aí a coisa cresceu.
Acho que foi o Xandão – justo o
Xandão, amigo do peito, mas piadista em tempo integral –, quem começou a me
chamar de “Sawamu, o Demolidor”, dizendo que eu tinha utilizado contra o Chicão
o “salto (ou chute) no vácuo com joelhada”, invencível golpe do então famoso
personagem de mangá e “anime” inspirado no lutador de “boxe-tailandês” Tadashi
Sawamura. De qualquer forma, só ficou a
piada e não o apelido, embora o Xandão, sentado ao meu lado, continuasse
cantando baixinho e risonho, durante as aulas, o esdrúxulo tema de abertura
daquele desenho animado: “e os insetos que vagam pelos charcos/têm poucas
chances de alcançar o oceano...”.
No final da manhã, o Chicão já
estava de volta ao colégio pronto para rir com todos os dentes (inteiros) da
história do “Sawamu, o Demolidor”.
Mas no meu canto, deprimido, eu
me sentia como um daqueles insetos vagando pelos charcos.
***
Se em 1988, eu
(involuntariamente, involuntariamente!!) quebrei com uma joelhada um pedaço do
dente do valente Chicão e passei o resto do ano me desculpando (e acho que
ainda hoje, se encontrar com ele na rua, vou pedir desculpas de novo. E de
novo. E de novo.), dez anos antes também cometi um ato de violência contra um
amigo. E o pedido de perdão, ainda que igualmente sincero, não deixou de vir
acompanhado de profundas dúvidas.
1978: eu, com seis ou sete anos,
como em muitas outras vezes, fui brincar na casa do meu grande amigo Rogério
Nakamura. Naquele dia, tivemos a companhia de outro colega do 1º ano, o
Fracetto. A tarde foi ótima: jogamos bola, brincamos com dezenas de bonequinhos
de personagens de TV, apostamos corridas com carrinhos de ferro em miniatura e
inventamos lutas do Super-Homem e de heróis japoneses contra os mais terríveis
monstros do Universo. Tudo num clima de paz e amizade. E sempre acompanhados por um dos irmãos do
Rogério, o engraçadíssimo Mauro, que era quatro anos mais velho que a gente.
Na hora da janta, enquanto
esperávamos os últimos preparativos da sensacional comida da Dona Marta, fomos
brincar na saleta de visita. Empolgados
com as histórias que o Rogério contava sobre o herói da série de TV Spectreman, simulamos lutas contra
monstros ferozes e gigantescos que estavam sempre prontos para poluir o
planeta. As almofadas das poltronas e do sofá voaram várias vezes. Nós voamos várias vezes. E de repente,
enquanto estávamos lá naquele pacífico bate-não-bate, o Mauro gritou um “agora
é pra valer”, talvez temendo uma possível vitória das criaturas de lixo do
Dr.Goria.
Mas justamente naquele momento,
ainda que sem querer, acertei um poderoso cruzado de direita no rosto do
Fracetto. Que abriu o berreiro. E botou a boca no mundo.
Imediatamente, enquanto eu
tentava socorrer meu amigo e pedia desculpas desencontradas, apareceram
assustados na sala, o pai, a mãe e os dois irmãos mais velhos do Rogério, o
Maurício e a Selma:
“Que é que tá acontecendo aqui?”
E o Fracetto chorando alto:
“O Caio me deu um soco e tá
doendo!”
“O Caio?!!!”
E o Fracetto chorando mais alto:
“Foi, mas a culpa não é dele! A
culpa é do Mauro, que disse ‘agora é pra valer’!”
O Mauro pulou:
“Minha? Eu não fiz nada!!!”
O Rogério botou lenha:
“Foi culpa sua sim, Mauro! Tava
tudo tranquilo até que você mandou bater pra valer!”
Dona Marta fechou a questão:
“Mauro, você é o mais velho,
tinha que ter mais responsabilidade! Fracetto, vamos lavar esse rosto, olha aí,
nem tá vermelho. Depois o pai leva cada um pra sua casa. Isso, já passou, não
é? Vamos jantar agora. Mauro, você tá de castigo”.
Naquela noite, enquanto voltava
pra casa no banco de trás do opalão vermelho dos Nakamura ao lado do Fracetto
(que já parecia perfeitamente recuperado: franzino como era, ele tinha comido
quatro pedaços de pizza), eu pensava como minha tarde tão feliz tinha terminado
de forma tão amarga. Em poucos minutos, eu tinha ferido dois amigos de forma
profundamente diferente: um, com um sonoro soco de Spectreman.
O outro, com uma gritante omissão
disfarçada de silêncio.
***
Depois de alguns dias me acertei
com o Mauro e pedi desculpas por ele ter ficado de castigo por causa do meu soco
no Fracetto. Se bem que ele me
confessou que o “agora é pra valer” significava aquilo mesmo: “agora bate de
verdade... Mas de brincadeira, entendeu?”
Entendi mais ou menos. De
qualquer forma, aceitei (quem sabe se por remorso?) a proposta do Mauro de
trocar meu time de botão do São Paulo pelo que ele tinha do Atlético Mineiro.
Me arrependi muito depois: não que eu gostasse do São Paulo, mas os botões
vermelhos vinham com a cara de cada um dos jogadores colada. Tinha até o Pedro
Rocha, assim como meu Palmeiras vinha com o rosto do Ademir da Guia e de toda a
Segunda Academia. Já o time do Atlético Mineiro do Mauro tinha uma parte
encaixada que prendia o distintivo de papel no botão de acrílico. Mas a cada
chute, aquilo desmontava e a gente perdia o lance todo. Isso sem contar que meu pai e o Nando
gostavam de jogar com aquele São Paulo. Me arrependi, mas troca era troca. E
depois, arrependimento por arrependimento, sentia mais pelo castigo do amigo do
que ter perdido o botão com a cara do Forlan.
Tudo acertado com o Mauro, agora
eu precisava resolver de vez as coisas com minha outra vítima. Era tempo de férias e eu e meu pai combinamos
de ir até a casa do Fracetto para pedir desculpas pelo soco que eu tinha dado no
rosto dele durante a tal brincadeira “de mão” que, como a mãe da gente fala,
“nunca dá certo”. O Fracetto já tinha
dito que estava tudo bem, mas meu pai queria pedir desculpas pra mãe dele, olho
no olho, bem daquele jeito do seu Miro.
Não sei se foi minha a ideia de
levar um carrinho de ferro de presente. Acho que foi. Mas não era só para reforçar as desculpas: a
verdade é que eu achava bonito quando via alguém que, visitando outra pessoa,
levava alguma lembrança, uma flor, um bombom ou um bolo feito no capricho. Dona Eva vivia me presenteando com bolinhos
de chuva e macarronada. Tio Amador, toda
vez que vinha do Rio, trazia Bala Chita ou Dadinho. Meu padrinho, seu Arlindo,
aparecia sempre com um brinquedinho ou um pacote de bolacha. Minha mãe ia além:
ela quem dava lembrança pra visita, fosse um livro, um pão feito na hora, um
brinquedo que achava que a gente não usava mais. Então, eu é que não podia
fugir à regra: já que eu visitar um amigo, uma visita, assim, oficial, com
conversa de pai com mãe, sim senhor, sim senhora, precisava também levar uma
lembrança.
Eu tinha acabado de ganhar dois
carrinhos Matchbox e estava exultante: além de incríveis, aqueles carrinhos de
ferro não eram baratos e se você ganhasse qualquer um deles no aniversário
podia sair comemorando. E eu tinha recebido dois!
Estávamos ainda na fase de
namoro: eles ainda não tinham se misturado com os outros brinquedos e eu não
ousava nem sujar suas rodinhas no chão da sala. Passeavam um pouco na palma da
minha mão e depois voltavam para suas caixinhas individuais feitas de papel
duro. Assim, novos em folha e ainda
embalados, qualquer um deles estava pronto para ser dado de presente para o
Fracetto. Mas qual?
Um era o jipe verde. Na parte de
trás ele tinha uma espécie de bazuca de plástico que subia e descia e ainda
girava 360 graus. Os banquinhos eram pretos e a armação do retrovisor, feita de
ferro fininho, era caprichosamente dividida no meio.
O outro era um carro de
bombeiros. Bem mais robusto que o jipe, ele era de um vermelho vivo, com
detalhes prateados e uma escada giratória amarela. De cara, escolhi esse para
ficar comigo. Mas depois mudei de ideia. E mudei de novo. De novo. De
novo. Uma hora me via com meu jipe verde
em mil e um combates contra os mais terríveis tiranos da Terra. Noutra, me
arriscava com meu super carro de bombeiros em incêndios medonhos para salvar
crianças indefesas. E de quarta até
sábado fiquei naquela indecisão terrível. Já não pensava direito nas desculpas,
no almoço, nos outros brinquedos: dia e noite era só aquela matutação sem fim.
Lá pelas tantas me arrependi
daquela minha ideia de presente. Poderia fazer simplesmente assim: eu iria lá
na casa do Fracetto, meu pai falaria com a mãe dele, desculpas, desculpas,
tchau e bença. Depois podia até convidar
o amigo pra brincar em casa com os carrinhos, mas abrir mão dos meus brinquedos
tão bacanas... Não, não podia fazer aquilo, já tinha falado com meus pais, que
gostaram da ideia. E o Fracetto era um amigo muito legal, merecia o presente.
Acho até que ele nem tinha um carrinho de ferro.
E sábado de manhã, lá fui eu com
meu pai na casa do amigo. A conversa foi boa, a mãe dele agradeceu, mas disse a
meu pai que ele não precisava ter se preocupado: ela me conhecia etc e tal. Já
o Fracetto e seu irmãozinho pularam de alegria quando viram o carro de bombeiros
com seu vermelho vivo, seus detalhes prateados e sua escada giratória
amarela.
Presente era presente: achei que
devia dar o mais bonito.
Ou no fundo, no fundo, a opção
revela toda a verdade: eu não passava de um violento brigão que tinha escolhido
um jipe com uma bazuca que subia e descia e girava 360 graus. Um jipe de guerra
para um espírito mirim belicoso.
Pode ser, pode ser.
Mas de vez em quando eu ainda
sonho com aquele carrinho de bombeiros.
Ilustrações
de Anderson Diniz e Maria Luziano - cedidas pelo Jornal de
Piracicaba
Publicado
no Jornal de Piracicaba em 2, 16 e 30/7/2017
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