quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Contra o Natal

(caio silveira ramos)

Seu Astrogildo não gosta do Natal porque sente aumentada sua solidão.
Pierre, porque acha uma festa cafona. Duda, porque acha uma festa careta. Carlos, porque acha uma festa puramente comercial e consumista. Wladimir, porque considera um evento capitalista e burguês. Gustavo, porque vê o Natal como mais uma manifestação golpista e machista. Cíntia, porque diz que é um momento representativo da culpa incutida pela Igreja Católica. Haroldo, porque vê na festa a imposição da cultura opressora ocidental-européia aliada ao perverso imperialismo americano. Dolores, porque diz que é uma época de pura hipocrisia. Jussara, porque acha que as pessoas ficam ainda mais falsas. Fabiana, porque acha que as pessoas demonstram uma alegria fingida. Fabiano, porque acha que as pessoas demonstram uma solidariedade forçada. Letícia, porque vê todo mundo feliz, menos ela. Joaquim, porque se lamenta ainda mais por não morar em Londres. Edson, porque se lamenta ainda mais por não morar em Nova Iorque. Jurema, porque se lamenta por não ter onde morar. Humberto, porque não gosta de dar caixinha de Natal para os porteiros do prédio. Carmen, porque sente que a miséria do mundo fica muito mais gritante. Sônia, porque sente que a miséria humana fica muito mais flagrante. Paulo, porque sente que os marginalizados são ainda mais excluídos. Magnólia, porque num dia de Natal morreu uma tia querida. Gabriel, porque se lembra ainda mais dos parentes que já se foram. Gonçalves, porque percebe que os lugares à mesa da ceia ficam a cada ano mais vazios. Sebastião, porque a mesa da ceia fica mais vazia a cada ano. Juca, porque não tem ceia. Osvaldo, porque não tem mesa. Nunes, porque fica mais deprimido nessa época. José, porque fica tão deprimido nessa época que sente profundo desejo de se matar. Murilo, porque previram que ele morreria num dia de Natal. Soraia, porque fica aflita com os preparativos e as correrias típicas do período. Ludmila, porque fica estressada com os preparativos e as correrias típicas do período. Mônica, porque fica com vontade de matar alguém com os preparativos e correrias típicas do período. Tamires, porque a comilança atrapalha seu regime. Nice, porque fica com mais fome ainda. Sandra, porque não tem o que comer. Pedro, porque também sente aumentada sua solidão.  Manuel, porque não gosta de dar presente. Rui, porque não gosta de ganhar presente. Uéslei, porque não ganha presente. Rosa, porque não gosta do passado. Evandro, porque tem medo do futuro. Ebenéser, porque não tem tempo a perder. Tiago, porque fica com saudade da infância. Luís, porque fica apavorado ao se lembrar da infância. Taís, porque tem que ir para o interior e lá é um inferno de quente. Tatiana, porque tem que ir para praia, lá é um inferno de quente, tem areia que gruda no corpo e um monte de parente chato. Dirce, porque detesta reuniões de família. Diva, porque detesta a família. Soraia, porque também sente aumentada sua solidão. Fátima, porque acha uma maldade com o peru e outros bichos. Lucas, porque tem medo de Papai Noel. Ana, porque acha brega o Papai Noel com roupa de frio num país tropical. Gabriela, porque tem dó do Papai Noel de loja que tem que usar roupa tão quente num país tropical e ainda aturar criança chata. Tomás, porque detesta shopping lotado. Dimas, porque detesta shopping. Daniel, porque diz que montar presépio é pecado. Enrico, porque não suporta música natalina. Cláudia, porque detesta cheiro de panetone. Raimundo, porque reclama que a cidade fica um caos. Solange, porque diz que as luzes piscantes dos prédios agride seus olhos e sua intimidade.  Mirela, porque acha que as lojas enfeitadas ferem seus sentidos e seus bolsos. Vicente, porque acha que o Natal é uma festa de origem pagã e que a data certa do nascimento de Cristo é outra. Hugo, porque não acredita no nascimento de Cristo. Luigi, porque não acredita na divindade de Cristo. Ivo, porque não acredita em Cristo. Michel, porque não acredita em Deus. Silmara, porque acha que, ao contrário da música, Papai Noel sempre se esquece de alguém. Dante, porque diz que as imagens nos saguões dos edifícios afrontam sua fé. Virgílio, porque pensa que o feriado não condiz com o Estado laico. Ângela, porque sonhava em ganhar uma boneca na infância e num Natal longínquo sua tia deu a boneca sonhada para uma prima. Vitor, porque não gostou do presente do ano passado. Manuela, porque acha que Papai Noel nunca dá o que ela pede.  Francisco, porque Papai Noel nunca lhe deu presente. Augusta, porque também sente aumentada sua solidão. Felipe, porque não gosta e pronto. E Nelson, que fica na dúvida se gosta do Natal, porque diz que não pode afirmar com certeza se Deus realmente existe.
Mas para sempre perdido no tempo, o menino eterno gosta do Natal. E na verdade, nem sabe dizer o porquê.
Lá está ele com a mãozinha limpando o espelho embaçado pelo banho recente.  Ele se vê: está arrumadinho, de roupa nova e umas gotas de colônia no pescoço. Olha para o cabelo molhado e pensa que só a escova velha do pai pode dar um jeito naquilo. E enquanto a escova vai domando a cabeleira, imagina que poderia ir até a sala, subir no banquinho e adiantar o relógio pra meia-noite. Não, ele não vai fazer isso. O bom é a espera. Pelo cheiro gostoso da comida, ele já imagina a mesa posta e um embrulhinho ao lado do presépio (nem que seja um carrinho de plástico bem simples: mas tem que ser surpresa). O bom é a espera. E ele espera: cinco abraços o esperam. Assim como um cocho para animais aguarda outro menino.
Daqui a duas, três horas, enquanto um garoto já estiver deitado no cocho brincando com o mundo, o outro dormirá feliz com o carrinho de plástico ao pé da cama.  Talvez ele sonhe com a manhã do dia que vai nascer.
Ou, quem sabe, com a espera do Natal do ano que vem.

Publicado no Jornal de Piracicaba em 18/12/2016


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