(caio
silveira ramos)
Seu Astrogildo não gosta do Natal
porque sente aumentada sua solidão.
Pierre, porque acha uma festa
cafona. Duda, porque acha uma festa careta. Carlos, porque acha uma festa
puramente comercial e consumista. Wladimir, porque considera um evento
capitalista e burguês. Gustavo, porque vê o Natal como mais uma manifestação
golpista e machista. Cíntia, porque diz que é um momento representativo da
culpa incutida pela Igreja Católica. Haroldo, porque vê na festa a imposição da
cultura opressora ocidental-européia aliada ao perverso imperialismo americano.
Dolores, porque diz que é uma época de pura hipocrisia. Jussara, porque acha
que as pessoas ficam ainda mais falsas. Fabiana, porque acha que as pessoas
demonstram uma alegria fingida. Fabiano, porque acha que as pessoas demonstram
uma solidariedade forçada. Letícia, porque vê todo mundo feliz, menos ela.
Joaquim, porque se lamenta ainda mais por não morar em Londres. Edson, porque
se lamenta ainda mais por não morar em Nova Iorque. Jurema, porque se lamenta
por não ter onde morar. Humberto, porque não gosta de dar caixinha de Natal
para os porteiros do prédio. Carmen, porque sente que a miséria do mundo fica
muito mais gritante. Sônia, porque sente que a miséria humana fica muito mais
flagrante. Paulo, porque sente que os marginalizados são ainda mais excluídos.
Magnólia, porque num dia de Natal morreu uma tia querida. Gabriel, porque se
lembra ainda mais dos parentes que já se foram. Gonçalves, porque percebe que
os lugares à mesa da ceia ficam a cada ano mais vazios. Sebastião, porque a
mesa da ceia fica mais vazia a cada ano. Juca, porque não tem ceia. Osvaldo,
porque não tem mesa. Nunes, porque fica mais deprimido nessa época. José,
porque fica tão deprimido nessa época que sente profundo desejo de se matar.
Murilo, porque previram que ele morreria num dia de Natal. Soraia, porque fica
aflita com os preparativos e as correrias típicas do período. Ludmila, porque
fica estressada com os preparativos e as correrias típicas do período. Mônica,
porque fica com vontade de matar alguém com os preparativos e correrias típicas
do período. Tamires, porque a comilança atrapalha seu regime. Nice, porque fica
com mais fome ainda. Sandra, porque não tem o que comer. Pedro, porque também
sente aumentada sua solidão. Manuel,
porque não gosta de dar presente. Rui, porque não gosta de ganhar presente.
Uéslei, porque não ganha presente. Rosa, porque não gosta do passado. Evandro,
porque tem medo do futuro. Ebenéser, porque não tem tempo a perder. Tiago,
porque fica com saudade da infância. Luís, porque fica apavorado ao se lembrar
da infância. Taís, porque tem que ir para o interior e lá é um inferno de
quente. Tatiana, porque tem que ir para praia, lá é um inferno de quente, tem
areia que gruda no corpo e um monte de parente chato. Dirce, porque detesta
reuniões de família. Diva, porque detesta a família. Soraia, porque
também sente aumentada sua solidão. Fátima,
porque acha uma maldade com o peru e outros bichos. Lucas, porque tem medo de
Papai Noel. Ana, porque acha brega o Papai Noel com roupa de frio num país
tropical. Gabriela, porque tem dó do Papai Noel de loja que tem que usar roupa
tão quente num país tropical e ainda aturar criança chata. Tomás, porque
detesta shopping lotado. Dimas, porque detesta shopping. Daniel, porque diz que
montar presépio é pecado. Enrico, porque não suporta música natalina. Cláudia,
porque detesta cheiro de panetone. Raimundo, porque reclama que a cidade fica
um caos. Solange, porque diz que as luzes piscantes dos prédios agride seus
olhos e sua intimidade. Mirela, porque acha que as lojas enfeitadas ferem
seus sentidos e seus bolsos. Vicente,
porque acha que o Natal é uma festa de origem pagã e que a data certa do
nascimento de Cristo é outra. Hugo, porque não acredita no nascimento de
Cristo. Luigi, porque não acredita na divindade de Cristo. Ivo, porque não
acredita em Cristo. Michel, porque não acredita em Deus. Silmara, porque
acha que, ao contrário da música, Papai Noel sempre se esquece de alguém.
Dante, porque diz que as imagens nos saguões dos edifícios afrontam sua fé.
Virgílio, porque pensa que o feriado não condiz com o Estado laico. Ângela, porque sonhava
em ganhar uma boneca na infância e num Natal longínquo sua tia deu a boneca
sonhada para uma prima. Vitor, porque não gostou do presente do ano passado.
Manuela, porque acha que Papai Noel nunca dá o que ela pede. Francisco, porque Papai Noel nunca lhe deu
presente. Augusta, porque também sente aumentada sua solidão. Felipe, porque
não gosta e pronto. E Nelson, que fica na dúvida se gosta do Natal, porque diz
que não pode afirmar com certeza se Deus realmente existe.
Mas para sempre
perdido no tempo, o menino eterno gosta do Natal. E na verdade, nem sabe dizer
o porquê.
Lá está ele com a mãozinha
limpando o espelho embaçado pelo banho recente.
Ele se vê: está arrumadinho, de roupa nova e umas gotas de colônia no
pescoço. Olha para o cabelo molhado e pensa que só a escova velha do pai pode
dar um jeito naquilo. E enquanto a escova vai domando a cabeleira, imagina que
poderia ir até a sala, subir no banquinho e adiantar o relógio pra meia-noite.
Não, ele não vai fazer isso. O bom é a espera. Pelo cheiro gostoso da comida,
ele já imagina a mesa posta e um embrulhinho ao lado do presépio (nem que seja
um carrinho de plástico bem simples: mas tem que ser surpresa). O bom é a
espera. E ele espera: cinco abraços o esperam. Assim como um cocho para animais
aguarda outro menino.
Daqui a duas, três horas,
enquanto um garoto já estiver deitado no cocho brincando com o mundo, o outro
dormirá feliz com o carrinho de plástico ao pé da cama. Talvez ele sonhe com a manhã do dia que vai
nascer.
Ou, quem sabe, com a espera do
Natal do ano que vem.
Publicado no Jornal de
Piracicaba em 18/12/2016
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