(caio
silveira ramos)
O ex-governador do Rio de
Janeiro, Sérgio Cabral Filho, foi preso sob a acusação de corrupção passiva e
lavagem de dinheiro. Cabral, que segundo
o Ministério Público Federal seria o chefe de uma verdadeira organização
criminosa, teria recebido milhões em propina para fechar contratos públicos,
como o da reforma do estádio do Maracanã. Isso, sem falar (também de acordo com
o MPF) na compra de joias caríssimas (que teriam servido para lavagem de
dinheiro) e de sua ligação criminosa com o empreiteiro Fernando Cavendish, que,
ao lado de Cabral, de secretários estaduais e de um conselheiro do Tribunal de
Contas, participou na Europa da chamada “Farra dos Guardanapos”.
Assim que o ex-governador foi
preso, pensei imediatamente em seu pai, o jornalista Sérgio Cabral, fundador e
editor do lendário “O Pasquim”. Sempre admirei o velho Cabral por seu espírito
bonachão e carioquíssimo. Mas o que de fato me liga a ele é a paixão
avassaladora pela música brasileira.
Mais do que isso: muito dessa paixão eu devo a Cabral: por meio de seus
artigos, crônicas e livros eu me deixei (e me deixo) embebedar ainda mais de
samba e de choro. Li e reli seus livros
sobre Elizeth Cardoso, Tom Jobim, Almirante, Ary Barroso, Ataulfo Alves, Nara
Leão, as Escolas de Samba do Rio de Janeiro e, principalmente, me encantei com
sua fundamental obra narrando a vida e a arte do meu querido São Pixinguinha.
Logo
constatei que a preocupação com Sérgio Cabral pai não era somente minha. O
escritor Ignácio de Loyola Brandão escreveu no jornal “O Estado de São Paulo” a
crônica “Diante da
situação tenebrosa, a notícia ruim é bênção” em que ele se pergunta o quanto o
velho Cabral estaria “pensando e sofrendo com este show de horror com que o
filho brindou o Brasil”. Consultando
escritores amigos como Antônio Torres e Ruy Castro, Brandão nos informa que há
cerca de três anos Sérgio Cabral está doente e que, segundo Ziraldo, “as névoas
do Alzheimer se insinuaram, mas provavelmente se acentuaram quando Sérgio
sentiu a realidade. Seria uma forma de negá-la? Hoje, ele já não distingue o
que é e não é, não identifica quem é. Mergulhou no escuro total, a memória
dissolvida”. Seguindo esse caminho, mas
esquecendo-se de qualquer poesia, Maurício Lima escreveu em uma nota crua para
o Radar On-Line da Veja.com: “o jornalista Sergio Cabral, pai do ex-governador
do Rio, está com Mal de Alzheimer. Quando perguntado sobre o que aconteceu com
seu filho, preso na operação Lava-Jato, ele responde que o menino morreu ainda
criança”.
O que explicaria um pai enganchar
sua desmemória na construção da falsa morte de um filho pequeno?
Pois numa entrevista do velho
(mas feliz) ano de 2011, esbarrei nas voltas da memória perdida daquele
escritor que se esqueceu de seu mundo e de suas histórias. E acho que encontrei
a resposta.
***
Fui atrás do velho Cabral na
internet e descobri uma entrevista sua, de 2011, para o programa Roda Viva, da
TV Cultura. Nela, ele diz que considerava seu filho (naquele momento, já no
segundo mandato) o melhor governador que o Estado já tivera. Que ele pegara o
Rio em frangalhos e rapidamente o transformara na unidade da Federação que mais
recebia investimentos. E que a violência estava sendo combatida com muita
competência. E que as finanças estavam de tal forma “arrumadíssimas” que o Rio
teria sido o primeiro Estado brasileiro a ser reconhecido “por essas agências
internacionais que dão nota aí”. Alguém
mais sarcástico poderá dizer hoje: ou o Rio estava bem mesmo e em poucos anos
Cabral Filho foi tão corrupto e mau administrador que arrebentou o Estado ou o Alzheimer
já em 2011 tentava fazer seu pai não ver a realidade.
Esse alguém também poderá
perguntar se o pai não teve influência decisiva sobre o (mau) caráter do filho.
De fato, me incomodo um tanto ao descobrir que o velho Cabral se orgulhava de
ter nomeado o filho seu chefe de gabinete, quando fora vereador na cidade do
Rio, na década de 1980. Nepotismos à
parte, ainda prefiro ver o escritor não como um deformador do caráter do filho
(até porque a responsabilidade é pessoal do ex-governador que, cá entre nós, já
é bem grandinho), mas como um sério pesquisador e escritor que teve influência
decisiva na minha paixão pela música brasileira e pelas palavras ligadas a ela.
Mas continuando a passear naquela
entrevista de 2011, me deparo com uma descoberta pungente, que talvez explique
o porquê de um pai costurar sua mente na invenção da morte de um filho ainda na
infância:
No começo da década de 1970,
Sérgio Cabral pai estava hospedado em um hotel, na cidade de Campos, Estado do
Rio de Janeiro, quando recebeu um recado de sua mulher: o jornalista devia,
urgentemente, entrar em contato com ela. Durante quarenta minutos, enquanto não
conseguia telefonar para a esposa, seu pensamento girou desesperado: ele e a
família moravam no bairro do Leblon, bem próximo da praia. O dia estava lindo:
com certeza um dos seus meninos (um de 5, outro de 6 e o mais velho de 7 anos)
teria morrido afogado. Mas qual deles?
Qual deles? Quando finalmente conseguiu falar com sua mulher e ela lhe disse
que o Exército tinha invadido “O Pasquim” e estava atrás dele para prendê-lo,
Sérgio simplesmente respondeu: “ai, que alívio!”.
Quem sabe, no aqui e ali de sua
mente perdida, o velho Cabral se alivie um pouco ao se encontrar de repente com
a flauta de Pixinguinha ou com a batida do surdo da Estação Primeira de
Mangueira. Mas fora disso, enquanto vai
dizendo adeus ao ano novo, ele talvez insista em existir apenas naqueles quarenta
minutos traumáticos de angústia e medo: Serginho, seu amado filho mais velho,
morreu naquele dia afogado no mar. Não em um mar de lama. Mas num mar daqueles
de Caymmi, feito de poesia, mistério, morte e doçura.
E naquele mar, morrendo junto,
ele parte em busca de seu menino.
Ilustração: Maria Luziano–
cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de
Piracicaba em 1º/e 15/1/2017
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