quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Fantasia de Maria

(caio silveira ramos)

Maria tem três anos e pouco. A pele morena e o cabelo escuro (que usa até os ombros) ela ganhou de Bangladesh.  E a fendinha que tem no arrebito do nariz ela copiou de sua mãe, que é paulista-pernambucana-italiana-etc-e-o-mundo.
Mas o sorriso, que ela estende pela rua quando vê a gente lá de longe, é só dela.  O olhar espremidinho de alegria, que não traz o azul da mãe, também é só dela. E os braços abertos, vindo, vindo, para trazer no abraço profundo aquele sorriso estendido e os olhos espremidinhos, também é apenas dela.
Pois a diretora da escolinha chamou a mãe da Maria para uma reunião. E lá foi, toda preocupada, a mãe da Maria. Com ares graves e sérios, diretora e professora disseram para a mãe da Maria não incentivar muito a imaginação da pequena, que deveria ser prontamente introduzida nas realidades do mundo com mais firmeza e menos fantasia.
A mãe da Maria suspirou aliviada, ficou um tanto constrangida pelo pensamento das duas pedagogas, mas não retrucou, nem sorriu irônica, pois não é do seu feitio desdenhar de ninguém.  Talvez se ela não tivesse tanta imaginação e não incentivasse tanto a fantasia da Maria, ela desdenhasse. 
Como as duas senhoras não explicitaram muito bem as situações fantasiosas da Maria, a mãe da Maria tentou imaginar, embora já suspeitasse, o que tanto sua filha andava matutando para que a direção da escola praticamente a pintasse voando pelos ares.
Pois ela não contava histórias para a Maria todos os dias? Não se misturavam na hora de dormir os contos de Daniel Munduruku com os dos irmãos Grimm? Não era ela mesma quem levava a Maria a peças de teatro e brincava que ela não era a mamãe, mas o lobo da Chapeuzinho-Maria, e as duas riam, riam de quase pular de soluço?
Por isso Maria sempre quis o lobo. E o jacaré. E o jabuti. E a onça. O macaco, o coelho e o Riquete Topetudo. Mas na escola talvez não conheçam histórias desses personagens e, não contem a ninguém: suspeito que pensam que tudo deve ser apenas fantasia da Maria e da mãe da Maria. 
Mas a escola toda conhece a princesa Elsa, da super-produção Frozen, da Disney. Os vestidos da Elsa. A cabeleira quase prateada de Elsa e sua trança idem.
E é tão lindo ver todas as meninas no intervalo cantando “Let it go”. É tão emocionante ver as meninas se fantasiando de Elsa ou de qualquer outra princesa.  Pois essa fantasia pode: essa está na moda. Na escola, na noite do pijama, nas sextas-feiras, nas brincadeiras no intervalo, na saída do “jardinzinho”, os adultos se desmancham ao verem suas meninas incorporarem as mais belas princesas dos desenhos.
E embora cantem “livre estou, livre estou”, o que fica dos contos de fadas para as crianças não é o enredo fabuloso, nem o chamado empoderamento feminino que teria vindo com as princesas Elsa, Valente e a Aurora de “Malévola”, que em seus filmes não encontram mais em príncipes encantados o amor verdadeiro. O que fica é apenas a fantasia. Mas não a fantasia da Maria, não a fantasia do sonhar, do encantamento, mas sim, a fantasia de, literalmente, apenas vestir roupa e cabelo. Essa fantasia é importante também, mas às vezes se perde na superfície do lago, deixando só a imagem no espelho.
Mas os “ligados na realidade” querem mais é a imagem chapada desse espelho sem fundo e se orgulham de suas meninas metidas debaixo de desengonçadas perucas platinadas de uma Elsa esvaziada.  Ou se gabam de suas pequenas imitando as coreografas de músicas que tratam de “poderosas” e “recalcadas”, mas que muitas vezes apenas reduzem meninas e mulheres a velhos estereótipos machistas. Esse é o “mundo real” onde as palavras “liberdade”, “fantasia” e “poder” se transformam em sapo e viram meras figuras retóricas.
Maria dança na roda de mãos dadas com as amiguinhas. Sorri, abraça, pinta, borda e brinca. Assiste ao “Sítio do Picapau Amarelo” e bate palmas ao ver a Menina do Nariz “Arrebentado”. Os olhos da Maria são vivos, ligados. A realidade não lhe escapa. O que ela teria feito?  Teria tentado voar do brinquedão da escola pensando ser a fada Sininho e acabara se estabacando no chão?  Teria se frustrado quando o amiguinho beijado no rosto não virara um sapo-boi? Ou se espantara por ter feito salacadula num boneco de madeira e ele permanecera apenas um boneco da madeira (porém falante)?
Depois de muito fuçar, a mãe da Maria descobriu a “excessiva fantasia”: durante a semana em que ela ficara de férias, sua filha, quando chegava à porta da escola, não queria entrar: dizia que lá dentro estava o lobo e que era melhor ficar em casa, cuidando das suas bonecas.  Estranhamente, o lobo sumiu da escola quando a mãe da Maria voltou a trabalhar.
É que talvez a fantasia da Maria seja muito poderosa: com um simples passe de mágica ela consegue fazer sumir o lobo mau.
Ou transformar adultos em abóboras recheadas de vento.


Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 31/7/2016



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