(caio
silveira ramos)
De repente eu estava na 5ª série
do Colégio Luiz de Queiroz.
Acordei vindo de um sonho bom:
cinco anos, do pré-primário à 4ª série, em que as professoras amadas só
faltavam me carregar no colo. Não que as
novas professoras e professores me negassem a acolhida. Mas a escola era outra,
os colegas eram novos e a partir daquele momento cada matéria teria um
professor diferente. E às vezes mais que um.
Da escola antiga só veio comigo o
Paulo Henrique Ferreira. Mas o Paulinho
desde pequeno já era descolado e não teve problemas em se adaptar. Já eu era
tímido, quietinho e encabulado. E agora teria meu pai como professor de Língua
Portuguesa.
Isso logicamente era um
privilégio: o professor Algemiro Coelho Ramos era um mestre fabuloso. Muitas e
muitas vezes eu era parado na rua por algum aluno que agradecia pelos profundos
ensinamentos que recebera de meu pai, não só de Língua Portuguesa, mas de
dignidade, honestidade e de amor pelo conhecimento. Alunos, principalmente da
escola pública, que ele, por meio das aulas ou de simples conversas nos
intervalos, nas ruas e mesmo em nossa casa, conseguira arrancar do limbo da
exclusão e do abandono, lhes ofertando oportunidades, amor-próprio e uma vida
mais digna.
Mas ser apontado como “o filho do
mestre” não é coisa fácil. Mesmo que ali no colégio eu procurasse encará-lo
“apenas” como professor e não como pai (e ele também, para afastar qualquer
ideia de privilégio, não me tratasse como filho, embora, no fundo, tomasse como
filhos todos os seus alunos), no fundo, imaginava o seguinte: se me saísse bem,
alguém diria “Ah! Filho de professor deve até receber as questões da prova
antes!”. Mas se fosse mal, esse mesmo
alguém poderia dizer: “Caramba! Filho de professor indo mal? Que
vergonha...”. Então, além de ter que me
comportar, ser e parecer honesto, eu tinha uma responsabilidade extra: me
esforçar não apenas no estudo da Língua Portuguesa, mas também no das outras
matérias.
De manhãzinha, o famoso bosque de
eucaliptos da escola estava coberto pela neblina fria e o cheiro das árvores se
espalhava pelo colégio. Tendo meu pai
que dar aulas em outra escola ainda de manhã, os dois primeiros horários no
colégio eram dele. Daí porque a Língua Portuguesa passou a ter pra mim o aroma
de eucalipto. E nas redações das
terças-feiras os meus encontros amorosos com as ideias (“mais que gramática, o
importante é o conteúdo”, dizia sempre aquele meu professor de Português),
sujeitos, predicados, orações e verbos se deparavam sempre com a minha alma já
perfumada.
Por outro lado, as duas últimas
aulas eram de Matemática, com o professor Douglas Simões, justamente quando a
fábrica de bolachas vizinha ao colégio liberava todos os seus cheiros numa
dança que misturava maisena, infinitude dos números, leite e fome antes do
almoço. De qualquer forma, não sei se foi
a entrada na pré-adolescência ou a mudança de escola (ou até mesmo a saudade do
colo das antigas professoras), mas pela primeira vez na minha vida escolar me
estranhei com elementos que sempre tinham se mostrado tão amigáveis. E me vi um
tanto perdido entre chaves, colchetes e parêntesis.
Assim, quando o professor de
Matemática se virava de repente para classe e exclamava “arranquem uma folha,
ponham nome, número, série e data”, anunciando mais uma prova surpresa, eu
sentia um terrível frio na espinha e me vinha a certeza de que o cheiro de bolacha
misturado ao do eucalipto iria me embrulhar o estômago vazio.
Mais que isso: eu começava a
perceber que a vida não seria tão fácil quanto imaginava que fosse.
***
De repente eu estava na 5ª série
do Colégio Luiz de Queiroz.
De repente eu estava longe dos
meus amigos Rogério Nakamura, Nando Boscariol, Rogério Canale, Mauricio Roque,
Alexandre Vale e tantos outros.
Mas de repente também, descobri
que não estava sozinho: para afastar qualquer abandono, no colégio novo
rapidamente apareceram André Komatsu, Renato Ferracciu e Marcelo Pedroso, que
me estenderam a mão e deixaram suas casas e quintais sempre abertos para mim.
Naquela escola também me
esperavam mentes desafiadoras que logo, logo foram se achegando: as inteligências
de Caroline Kageyama, Ana Helena Petrin e Eliana Veras matavam a saudade das
minhas antigas colegas do Sud Mennucci, Ana Paula, Rosiede, Luciane, Luciana,
Graziela, Fernanda e outras meninas brilhantes que tanto domavam os segredos
dos números quanto eram capazes de contar para a classe a história inteira de
Rumpelstiltskin.
Entre os meninos do colégio
também havia amigos novos para instigar o espírito: Gunnar, com sua facilidade
espantosa com a Matemática e todas as demais matérias: os olhos vibrando de
curiosidade e da vontade infinita de conhecer cada detalhe do mundo. E
Alexandre Paulino, que não só parecia já saber tudo sobre Ciências, História e
Língua Portuguesa, como também tinha um estilo próprio até para erguer a mão ao
fazer suas perguntas: ele estendia o braço, erguendo somente os dedos indicador
e médio. E se estivesse sentado na lateral da sala, ainda apoiava os dedos na
parede, o que dava ao gesto um ar ainda mais irônico e desafiador.
E da 5ª à 7ª série, outras
meninas e meninos foram também se aproximando para afastar de vez o meu medo do
novo, permitindo que eu me embriagasse sem temores com o cheiro do eucalipto
misturado ao da bolacha: Eliane Yamauti, Erica Bozola, Ricardo Ré, Wagner,
Ivan, Eric, Otávio, Felipe, Clerton, Luciana, Christian, Valéria, Cláudio Cordeiro,
Marco, Mauro, Ana e Gustavo Bettin, Fernando Guena, Berreta, Júlio, Natanael,
Hermes, Orlandinho, Elisa, Gleidenis, Clara, Atílio, Ribas e tantos outros.
Como não me comover com a alegria e a camaradagem de Eduardo Freire e do
querido Fábio Shimabukuro? Ou com o jeito intrépido de Fabiana Santelli, irmã
do Ricardo? Ou com a delicada meiguice de Érika Bonatto?
Na 6ª série ainda apareceu a
Adriana Juabre, com tal boniteza e ar tão nobre, que fez meu sono se esquecer
das manhãs e minha timidez se espreguiçar feliz e distraída pelo canto dos
olhos. Mais uma vez pensei que iria me atrapalhar com os números, dessa vez
regidos pela Professora Maria Izabel. Mas justamente para não dar vexame (ou
para chamar alguma atenção) eu me desdobrei na Matemática e nas redações,
tentando desvendar e criar mistérios.
E no final do ano, no último dia
de aula, seria a revelação do “amigo secreto”, mas fiquei doente e tive que
faltar. E justamente aquela menina com seus longos cabelos encaracolados, tão
doce, que poucas vezes eu tivera a chance (ou a coragem) de conversar, tinha me
sorteado. Me deixou de presente uma
caixinha do jogo “Super Trunfo” e um bilhete: “o seu silêncio é muito bonito”.
No ano seguinte, nem consegui
agradecer: ela mudou de escola e jamais retornou.
E meu silêncio nunca mais foi o
mesmo.
***
De repente eu estava na 5ª série
do Colégio Luiz de Queiroz.
Certo, certo: na 8ª houve uma
revolução: chegaram alunos incríveis vindos de várias escolas, de várias
cidades como Iracemápolis, Rio Claro, Capivari e Limeira. Além de novos amigos
e ainda mais gente boa chegando de Santa Bárbara d’Oeste e Americana. Mas isso
é outra história.
No 1º Colegial, além de matérias diferentes,
matérias “de gente grande” como Física, Química e Biologia, novos alunos vieram
de outras escolas de Piracicaba ou de cidades vizinhas, como Cerquilho e Santa
Maria da Serra. Ônibus cheios continuaram a chegar de Santa Bárbara e
Americana. Alexandres, mais que dez,
todos grandes amigos. Além de outros, com outros nomes, ideias e vontades. Isso
sem falar na certeza de que para minha turma tinham vindo as meninas mais
bonitas do mundo. Mas essa também é
outra história.
Pois, de repente, eu estava era
mesmo na 5ª série do Colégio Luiz de Queiroz, antes ainda de conhecer o talento
musical da Eliane Tokeshi. Eu estava na
5ª série, mais precisamente no primeiro dia de aula. O cheiro de eucalipto. O
frio na barriga.
Tentei me sentar quase na frente
para que minha visão pouca não se perdesse na lousa e no medo. Fiquei um pouco
atrás de duas meninas, que rapidamente fizeram amizade e passaram a
conversar. Logo fiquei sabendo que se
chamavam Claudine Beduschi e Daniela Marquez.
Claudine tinha o cabelo liso e
loiro, os olhos claros serenos e muito atentos. Devia ter a minha idade, 10
anos, mas, assim como as outras meninas, parecia muito mais madura. E não era só maturidade: pelo menos para mim,
ainda que pouco tenha conversado com ela, Claudine revelava um jeito protetor
que muitas vezes me socorreu.
Naquele começo de escola nova,
muita coisa parecia querer me atrapalhar: da saudade à dificuldade de ser filho
de professor. Dos verbos em inglês às
operações com números negativos. Então
me vinha um nó na garganta que minha discrição encabulada impedia que qualquer
colega percebesse. Menos Claudine, que mesmo sem bisbilhotice ou qualquer outro
interesse parecia sempre perceber meu aborrecimento. Os olhos dela sempre
estavam por ali, com sua vigilância serena e solidária. E tudo parecia clarear.
Certo dia, após uma prova
qualquer, achei que meu desempenho tinha sido desastroso. O recreio já tinha
esvaziado a sala e eu disfarçava minha tristeza (e o brio ferido) fingindo
arrumar o material dentro da mochila. Foi então que percebi Claudine, em pé, na
minha frente. Tentei desenvidraçar os olhos, mas ela foi mais rápida: “não fica
triste, não. Eu também não fui muito bem, mas depois a gente recupera”. Agradeci
encabulado e quando ela já saía para o intervalo, se virou e, me emprestando
seu melhor sorriso, ainda acalentou: “e quer saber? Acho que você não foi tão
mal quanto pensa”. Eu vesti meu rosto
com aquele sorriso e o dia se desanuviou inteiro.
Daniela também tinha olhos
claros, mas eles eram tecidos de marotagem e ousadia. Desde que entrou na sala,
ela danou-se a falar pelos cotovelos, mas com uma graça tão desnorteante que
alegrou a sala, os corredores e até o bosque de eucaliptos. Parecia que, de repente, alguém tinha lançado
uma bola de tênis que sapecava nas paredes, no teto, na lousa, no chão, se
embaralhava nos ventiladores, saía pela janela e depois voltava, bulindo na
cabeça de cada aluno.
Antes mesmo de a aula começar,
minha irmã Raquel e sua inseparável amiga Deise, que estavam no 1º Colegial,
chegaram até a porta da minha sala: queriam ver se estava tudo bem comigo. Acenaram com as mãos e os olhos, e eu
respondi com um sorriso encabulado, enquanto Daniela já dava para elas um “oi,
tudo bem?”. Minha irmã perguntou como se chamava e ela devolveu, desinibida,
seu nome completo.
Naquela tarde, em casa, Raquel se
disse encantada com minha colega de classe e completou: “ela é pequetita, tão
bonitinha, tão engraçadinha, parece uma bonequinha”.
Foi então que percebi por que eu
tinha gostado tanto da minha colega: ela parecia uma boneca mesmo, mas para
mim, não aquela que minha irmã via. Ela
era outra boneca, minha amiga há tanto tempo. A amiga que me inspirava
destemor, atrevimento e a necessidade de liberdade, de contestação, de
provocação. Saída do conforto das minhas
leituras, a boneca Emília parecia ter encontrado seu corpo de carne e osso.
Daniela tomara a pílula do Doutor Caramujo e tinha até “Marquez” em seu nome.
E envolto em proteção e alegria,
percebi que mesmo não sendo a vida tão fácil quanto eu imaginava, ela valia
muito a pena.
E eu estava pronto para ela.
Ilustração de Maria Luziano - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 7 e 21/5 e 3/6/2017
Publicada no Jornal de Piracicaba em 7 e 21/5 e 3/6/2017
Caio , tive a honra de conhecer sua família na Escola de Música , tempo da Cultura Artística , onde cresci junto a suas irmãs , Rute e Raquel (acertei ?), depois no Jorge Coury conheci seu pai como Professor ( P maiúsculo !), e , por fim , novamente meu Professor no CLQ , quando abriram o colégio , neste seu citado eucaliptos e bolachas Júpiter .... Caio , soube ,pela internet , que seus pais e uma irmã faleceram , é a vida ! Deixo aqui meu cumprimento a todos vocês , pois eram uma FAMÍLIA exemplar e abençoada , das que muito respeitávamos , isto dentro do mundo da Cultura Artística , onde só havia a elite de Piracicaba ! Recordo agora seu Pai falando numa abertura cultural no Teatro municipal , quando ele foi seu diretor ..... A vida passa , pessoas de valor ficam , são exemplos !!!! Abraço Caio !!! E Parabéns pela sua Família e pelo primor do seu texto !!!!!
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