segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Mirtica


(caio silveira ramos)

Num domingo de julho deste 2018, recebi do tio Vavá a triste notícia de que ele acabara de retornar do enterro do Mirtica. 
Não cheguei a conhecer pessoalmente o Mirtica, mas há poucos meses, neste mesmo 2018, acabei transformando em personagem de uma das minhas crônicas esse grande amigo do tio Vavá que, como já disse, não é meu tio, mas considero como se fosse.
A crônica, singela como todas deste Mirante, revelava minha profunda simpatia pelo Mirtica, que eu conhecia apenas das deliciosas histórias contadas pelo tio Vavá, principalmente quando ele se encontrava com seu irmão Brancão e seu pai Domingos.   Nelas, o Mirtica se transformava em enredo, motivo, vírgula e alegria, já que todos tinham a maior consideração pelo nosso herói, que devia ser um amigo querido e profundamente divertido.
Quando minha crônica chegou às mãos do Mirtica, parece que ele se emocionou profundamente: deve ter se lembrado do seu Domingos, das conversas generosas regadas a vinho, da sabedoria daquele velho soberano que celebrava a vida recebendo os amigos na antiga garagem de sua casa em Santo André. Ou talvez Mirtica tenha enchido os olhos apenas por recordar a amizade de tantos anos com o quase irmão Vavá, a juventude guardada num canto cada vez mais distante e as pessoas queridas que partiram como o tempo.
No velório, a viúva, as filhas e um genro do Mirtica, entre abraços, agradeceram ao tio Vavá pela crônica. Disseram que durante aqueles poucos meses, mesmo depois de atingido pela forte pneumonia que acabaria por levá-lo, o Mirtica se sentia muito feliz, emocionando-se a cada nova leitura.  Revelaram ainda que tinha pedido para alguém tirar uma cópia da crônica, que ele guardava no bolso, relia de vez em quando ou mostrava para os amigos.
Me apanhei comovido e ao mesmo tempo preocupado: teria o Mirtica ficado ainda mais fragilizado pelo texto? Sentira tanta saudade de si e dos outros que afrouxara o cordel da vida?
Não. No fundo sei que minha crônica não teve esse poder.   Mirtica foi em paz consigo mesmo e com o mundo, com a certeza do dever cumprido e das amizades cultivadas.
Quanto a mim, que não conheci o Mirtica, fico com o conforto da crônica guardada no fundo do bolso de alguma calça esquecida e com a satisfação de continuar ouvindo seu nome espalhado pelas histórias do tio Vavá e do Brancão, ou pelas lembranças das eternas conversas com seu Domingos.   Pois o simples nome “Mirtica”, pronunciado com os “erres” piracicabanos ou andreenses, é palavra cheia de sabor que toma de alegria a boca de qualquer sujeito.
É só falar ou pensar no seu nome que já um riso escapa, ganha a calçada, dobra a esquina e se perde por aí.

Publicado no Jornal de Piracicaba em 5/8/2018



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