(caio
silveira ramos)
Eu ainda
brincava descalço no pátio de casa, mas minhas pequenas tarefas eu cumpria com
indisfarçável orgulho.
Quando a
campainha tocava, era eu que corria em disparada para ver quem estava chamando.
Descia a escada e abria a janelinha da porta que dava para a rua (ou, se era de
noite, espiava do alto, lá da janela do escritório): se era alguém conhecido,
fazia a pessoa entrar. Caso contrário,
ia voando avisar um adulto. Mas em casa,
a maioria das pessoas que chegava era conhecida: meus pais sempre receberam
muita gente. Gente que vinha para
conversar, pedir ajuda, um conselho, um colo, dar um abraço, trazer um doce, um
bolo, uma travessa de macarrão caseiro, uma sacola de frutas trazidas de um
sítio. Gente que vinha sem dizer nada,
só procurar um abrigo para o olhar perdido.
Um apoio para as desesperanças da vida.
O
telefone também era eu quem corria para atender: tanta gente também querendo
falar com meus pais, ouvir suas vozes, matar as saudades, dar um alô. Ou eram
as amigas da Ruth, cheias de novidades para contar. Ou para ouvir outras
tantas.
Eu
também voava para abrir as portas quando alguém carregava a pesada lata de lixo
avisando “rápido, que o caminhão da limpeza está chegando!!”. E ainda ajudava a
enxugar a louça quando chegava domingo. Mas aí a tarefa era alegre, já que todo
mundo também fazia alguma atividade sempre conversando, cantando ou rindo de
alguma besteira dita. Também era muito divertido passar a enceradeira na sala
durante muitas tardes de sábado, quando a casa cheirava ainda mais limpeza e
bolo de leite fervendo.
E cabia
a mim fechar a garagem quando meu pai saía com o carro, o que demandava não só
meu impulso para trazer o portão para baixo, como também certa arte para dar um
leve tranco nele, fazendo-o se encaixar no fecho com precisão.
Mas
minha missão preferida, aquela de que eu mais me orgulhava, era a de ligar a
televisão. Como uma tarefa tão simples quanto
apertar o botão de um controle remoto pode provocar orgulho em alguém?
Aparentemente
simples, a tarefa envolvia os mais profundos mistérios. É que lá pela década de 1970, não havia controle remoto e para se
“acender” uma televisão não bastava um clique.
A
primeira etapa era “ligar a tomada”: o fio saía do transformador conectado
(fisicamente) à TV, caminhava pelo rodapé, contornava o batente da porta que
dava para o pátio e estacionava seu plugue num preguinho em forma de gancho
perto da entrada elétrica que ficava na parede a poucos centímetros do
assoalho. Então, eu desenganchava o tal
plugue e ajeitava seus pinos nos buracos do “espelho”. Simples, não? Seria se os encaixes daquelas
tomadas fossem firmes como são hoje.
Naqueles dias, o plugue ficava meio bambo: era preciso achar o ponto
certo (com muita arte) para que a tomada não acabasse perdendo o contato
elétrico, o que desligaria a TV justamente na melhor parte do programa. Mas eu
sabia achar o ponto com precisão.
Tudo
certo, tudo resolvido, então era partir para a segunda etapa: ligar o
transformador de voltagem.
O
transformador era uma caixa quadrada de ferro pesadíssima (com uma grossa alça
de plástico em cima), que tinha na parte da frente um botão giratório e um
painelzinho em forma de meia lua onde se via uma seta descansando e alguns
números desenhados. Era preciso girar
cuidadosamente o botão no sentido horário até dar um clique. Acesa a luz do
painel, movia-se novamente o botão dando mais dois cliques para a seta se
mexer. Então vinha o pulo do gato: eu tinha que dar um leve tapa na parte de
cima do transformador para seta voltar um pouco e chegar ao ponto certo. Oba,
agora sim eu podia ligar a TV.
Naquelas
velhas televisões de tubo, com a imagem ainda apenas em preto e branco, a tela
era emoldurada por uma robusta caixa de madeira. No lado direito, se mostravam
uma saída de som, um grande botão seletor e três botões giratórios menores:
dois para a imagem (brilho e fixação: as imagens às vezes corriam de cima pra
baixo na tela...) e um para ligar e controlar o volume.
Girado o
tal botão e controlado o volume, a televisão começava a esquentar e a imagem ia
lentamente aparecendo. Se o programa fosse na TV Globo, como a
emissora “pegava direto”, não era preciso fazer mais muita coisa, a não ser, às
vezes, dar uma leve girada no botão seletor (mas sem chegar a fazer “clique”:
muita manha nessa hora, hein?). Porém, se o programa passasse em outro canal,
quem morava no interior, como eu e minha família, precisava girar o seletor
(fazendo um teque-teque-teque-teque) até o número “3 e um pouquinho”. Então, enquanto a TV “chuviscava ferozmente”,
se ligava o “conversor de UHF”, uma grande caixa de madeira retangular que
reinava sobre a televisão (depois arranjamos um modelo compacto e de plástico)
com dois botões e um visor como os de rádio para enxergar a sintonia dos
canais. Aí, era preciso profunda arte e
destreza: enquanto se girava cuidadosamente com a ponta dos dedos da mão
esquerda (com uma sutileza que beirava a telecinesia) um dos botões do
conversor, com a mão direita era necessário balançar ou torcer os dois longos
fios achatados da antena que pendiam do teto e corriam soltos pela parede até
se conectarem com a parte de trás do aparelho.
Mas esses movimentos tinham que ser muito bem calculados, precisos e
firmes, feitos, logicamente, com uma quase ternura, porque a qualquer momento
os fios podiam se desconectar do conversor e tudo ficaria mais difícil.
Enfim,
encontrados o canal (se ele estivesse “pegando” naquele dia) e o programa
desejados, mesmo que às vezes a imagem tivesse certo chuvisco, alguns
“fantasmas” e um e outro tremor, eu me virava para os telespectadores caseiros para
receber os aplausos. Mas então já não
era a minha arte que a plateia queria aplaudir.
E
esquecido de mim, eu me juntava àquele “respeitável público telespectador” para
ver o mundo entrando pela janela da sala.
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