sábado, 25 de outubro de 2014

Sobre tempos


Pesadelos.
Estou na rua Governador. Tenho cinco, seis anos.
Procuro a “Lobrás”: quero caminhar pelo último corredor à esquerda, aquele da parede forrada de prateleiras de brinquedos: autoramas, castelos, caixas enormes de forte-apache.  Não vou comprar, só quero ver.  Só quero ver.
Mas a “Lobrás” não está lá.
Sigo em frente. Quero colocar uma moeda nas máquinas de chicletes de bolas coloridas do “Supermercado Brasil”. Mas nem os chicletes, nem as máquinas, nem o supermercado estão lá.
Vou para a esquina da Governador com a Moraes Barros: talvez na “Portalarga” eu encontre alguns brinquedos para ver. Mas não há mais brinquedos. E a “Portalarga” também não está mais lá.
Resolvo descer a Moraes até a Armando Sales: sinto sede e me vem a vontade de tomar suco colorido vendido nas garrafas de plástico em formato de revolvinho, boneco, foguete, tubarão ou qualquer outro brinquedo.  Só vai ser preciso ir até o “Supermercado Guerra”, comprar o suco com alguma moeda e arranjar uma tesoura para cortar o bico da embalagem. Mas o “Supermercado Guerra” também não está mais lá.  Não há suco, nem foguete. E minha sede continua.
Caminho um pouco mais pela Moraes, viro na José Pinto de Almeida e entro na Quinze de Novembro.  Subo um quarteirão para encontrar na esquina a “Livraria e Papelaria Artes Quinze”: a garganta continua seca, mas preciso comprar papel e lápis colorido para recriar aquele sonho: pintar as ruas de novo, as lojas, as pessoas perdidas.
Mas a “Artes Quinze” também não está mais lá. Como também não está, do outro lado da rua, a loja de roupas de Dona Alaíde.
Preciso acordar, preciso acordar. Continuo subindo a Quinze, vou até a esquina com a São João comprar café moído na hora, lá no “Nosso Empório”, do Roberto e do Genésio.  
Mas o “Nosso Empório” não está mais lá. E nem o Genésio. E nem o Roberto.
                   Já que não é possível acordar, caminho de novo em direção à Moraes: talvez na “Farmácia Santa Cruz” seu Pedro me dê algum remédio para afastar essa angústia corroendo o peito.   Mas não há remédio: nem seu Pedro, nem a farmácia estão por lá.
                   Vou até o ponto de táxi no Largo Bom Jesus pedir para seu Facco me levar no seu Corcel marrom de quatro portas até o “JumboEletro”: quero me esconder nas barracas gigantes de vários cômodos que ficam permanentemente abertas no andar inferior da loja. Mas seu Facco não está mais lá. Nem seu Corcel marrom. E as barracas devem ter se perdido com o vento.
Penso em atravessar a rua, entrar na vidraçaria e, embriagado pelo cheiro de massa, tentar me reconhecer em algum caco de espelho.  Mas a vidraçaria também não está lá.
Há no seu lugar uma relojoaria.  E atrás do balcão, alguém que reconheço.  Atravesso a rua e seu Alcides Almeida Souza sorri para a minha chegada.  Ele me dá um forte abraço e me empresta seus olhos claros, regados pela lembrança de meu pai.  E de trás do balcão também brotam dona Lila e seus meninos, todos de olhar claro-regado e abraços de rodear o mundo. 
Depois dos abraços, seu Alcides me mostra os mais curiosos relógios. E a sutileza de misteriosos tique-taques.
Ele regula cordas. Conserta ponteiros.  Rearranja o tempo. 
E quando o tempo finalmente se ajusta, um cuco abre suas portas e canta.   Bato palmas para o passarinho de madeira. Tenho cinco, seis anos.  Não, não sou eu: o tempo já é outro: quem bate palmas para o cuco é meu filho.
E sob palmas, sorrisos e olhos regados, o pesadelo bate asas e voa para o nunca mais.

Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 24/10/2014

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