Pesadelos.
Estou na rua
Governador. Tenho cinco, seis anos.
Procuro a “Lobrás”:
quero caminhar pelo último corredor à esquerda, aquele da parede forrada de
prateleiras de brinquedos: autoramas, castelos, caixas enormes de
forte-apache. Não vou comprar, só quero
ver. Só quero ver.
Mas a “Lobrás”
não está lá.
Sigo em frente.
Quero colocar uma moeda nas máquinas de chicletes de bolas coloridas do “Supermercado
Brasil”. Mas nem os chicletes, nem as máquinas, nem o supermercado estão lá.
Vou para a
esquina da Governador com a Moraes Barros: talvez na “Portalarga” eu encontre
alguns brinquedos para ver. Mas não há mais brinquedos. E a “Portalarga” também
não está mais lá.
Resolvo descer a
Moraes até a Armando Sales: sinto sede e me vem a vontade de tomar suco
colorido vendido nas garrafas de plástico em formato de revolvinho, boneco,
foguete, tubarão ou qualquer outro brinquedo.
Só vai ser preciso ir até o “Supermercado Guerra”, comprar o suco com
alguma moeda e arranjar uma tesoura para cortar o bico da embalagem. Mas o “Supermercado
Guerra” também não está mais lá. Não há
suco, nem foguete. E minha sede continua.
Caminho um pouco
mais pela Moraes, viro na José Pinto de Almeida e entro na Quinze de Novembro. Subo um quarteirão para encontrar na esquina
a “Livraria e Papelaria Artes Quinze”: a garganta continua seca, mas preciso
comprar papel e lápis colorido para recriar aquele sonho: pintar as ruas de
novo, as lojas, as pessoas perdidas.
Mas a “Artes
Quinze” também não está mais lá. Como também não está, do outro lado da rua, a
loja de roupas de Dona Alaíde.
Preciso acordar,
preciso acordar. Continuo subindo a Quinze, vou até a esquina com a São João
comprar café moído na hora, lá no “Nosso Empório”, do Roberto e do
Genésio.
Mas o “Nosso
Empório” não está mais lá. E nem o Genésio. E nem o Roberto.
Já que não é possível
acordar, caminho de novo em direção à Moraes: talvez na “Farmácia Santa Cruz”
seu Pedro me dê algum remédio para afastar essa angústia corroendo o
peito. Mas não há remédio: nem seu
Pedro, nem a farmácia estão por lá.
Vou até o ponto de táxi no
Largo Bom Jesus pedir para seu Facco me levar no seu Corcel marrom de quatro
portas até o “JumboEletro”: quero me esconder nas barracas gigantes de vários
cômodos que ficam permanentemente abertas no andar inferior da loja. Mas seu
Facco não está mais lá. Nem seu Corcel marrom. E as barracas devem ter se
perdido com o vento.
Penso em
atravessar a rua, entrar na vidraçaria e, embriagado pelo cheiro de massa,
tentar me reconhecer em algum caco de espelho.
Mas a vidraçaria também não está lá.
Há no seu lugar
uma relojoaria. E atrás do balcão,
alguém que reconheço. Atravesso a rua e
seu Alcides Almeida Souza sorri para a minha chegada. Ele me dá um forte abraço e me empresta seus
olhos claros, regados pela lembrança de meu pai. E de trás do balcão também brotam dona Lila e
seus meninos, todos de olhar claro-regado e abraços de rodear o mundo.
Depois dos
abraços, seu Alcides me mostra os mais curiosos relógios. E a sutileza de
misteriosos tique-taques.
Ele regula
cordas. Conserta ponteiros. Rearranja o
tempo.
E quando o tempo
finalmente se ajusta, um cuco abre suas portas e canta. Bato palmas para o passarinho de madeira.
Tenho cinco, seis anos. Não, não sou eu:
o tempo já é outro: quem bate palmas para o cuco é meu filho.
E sob palmas,
sorrisos e olhos regados, o pesadelo bate asas e voa para o nunca mais.
Ilustração: Maria Luziano – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicada no Jornal de Piracicaba em 24/10/2014
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