(caio
silveira ramos)
Dobrei uma folha
em quatro, dei um pequeno corte em um dos lados do papel, levantei dois bicos a
partir da fenda, fiz um desenho e entreguei aquele “cartão” improvisado para o
meu filho. Quando ele abriu, riu
satisfeito e pulou de alegria ao ver um sapo maluco que, ao se mexer nas abas
do cartão, fechava e abria a boca, expondo uma aranha também maluca dentro da
goela de papel. “Você que inventou isso,
papai?” “Não, aprendi na escola”. “Como chamava sua professora?” “Não foi uma
professora, foi um professor que me ensinou. O nome dele é Norberto”.
Enquanto eu
preparava com ele uma dezena de cartões como aquele para presentear sua mãe e
os amigos da escola – deixando a sala de casa ser invadida por corujas dizendo
“eu te amo”, pintinhos comendo minhocas vesgas, pavões com distintivos de times
de futebol gritando gol e peixes soltando bolhinhas de água pela boca –, fui me
dando conta que muitas das arteirices que fazia para (ou com) o pequeno, eu
tinha aprendido com meu professor de Educação Artística na longínqua década de
1980: bichos e pessoas feitas a partir de desenhos de grãos de feijão dos mais
variados tamanhos, perfis de bruxas banguelas, casas em perspectiva, dados de
papel, mágicas com cores nascidas da mistura de tintas a guache em forminhas de
gelo.
Fui aluno de
Nelson Norberto Vieira Sobrinho no Colégio Luiz de Queiroz (CLQ) durante cinco
anos que mudaram a minha maneira de perceber o mundo. De voz suave e traçados precisos na lousa,
seu Norberto me ensinou desde o início que mesmo alguém sem pendor artístico
poderia se divertir com a arte.
Me lembro de seu
primeiro exercício: uma fileira de árvores que não deveriam ser pintadas, mas
preenchidas com grafismos. Depois
outros grafismos rechearam uma ladeira de casas, criaram no papel as nervuras
de um corte de madeira (interrompidas por alguns “nós”) e inventaram um quadro
em que o acompanhamento de uma linha curva emprestava à figura uma sensação de
terceira dimensão.
E com as lições
seguintes vieram quadros feitos de papel-cartão preto recortado, que
transformavam a folha branca em um jogo de contrastes claros e escuros. Desenhos mágicos surgiram de simples manchas de
nanquim em um papel “canson”. Folhas de papel dobradas em forma de sanfona,
coladas com gravuras recortadas em tiras, fizeram nascer quadros curiosos que
geravam diferentes imagens se olhadas de frente, do lado direito ou do lado
esquerdo. Tinta, vidro e massa feita de
epóxi brincavam de falsos vitrais. Caixas de fósforos embrulhadas de papel de
presente ou de finas lâminas de cortiça renasciam em insuspeitos porta-retratos. Folhas, pequenos galhos e pétalas de flores
se metamorfoseavam em peixes e borboletas.
E se nessa lição eu usei esse material para construir uma grotesca
coruja (baseada ainda nos desenhos de um feijão), minha colega Eliana Veras, quando
ainda usava cabelos curtos, fez nascer uma sereia inesquecível que até hoje me aparece
em algum sonho sereno.
Havia um
exercício desafiador que se repetia todos os anos: escolhia-se numa revista um
cenário qualquer, como uma sala, um quarto, uma cozinha. Depois, de outras páginas, de outras revistas,
recortavam-se figuras de objetos, de móveis, de pessoas que deveriam ser
coladas naquele cenário. Para o
trabalho ficar bom, as figuras não só deveriam estar bem cortadas e coladas,
mas suas posições deveriam se adequar às proporções, às cores, à luminosidade,
à textura do cenário. Sabia-se que o
trabalho estava perfeito quando seu Norberto passava suavemente a ponta dos
dedos sobre o cenário: se só o tato conseguisse detectar as colagens, o
objetivo tinha sido atingido.
Mas essa era
apenas uma das lições que mudaram minha maneira de perceber o mundo concreto e
imaginado. Naqueles cinco anos,
expressões como “perspectiva” e “ponto de fuga” passaram a fazer parte do meu
vocabulário e da minha visão.
Visão que, se
até ali já era perturbada pelas imperfeições dos olhos e do daltonismo, agora
também era provocada pela arte.
***
Quando seu
Norberto apresentou a perspectiva e o ponto de fuga para desenhar casas,
cadeiras e mesas, descobri encantado que para refletir aquilo que se vê, a arte
precisa criar artifícios e driblar a realidade.
Nas aulas que
ensinavam a desenhar rostos em perfil, uma lição, em seu início, encheu a
classe de risos: diferentemente dos primeiros modelos proporcionais e
harmônicos, o daquele dia começou com uma testa torturosa e um nariz
tortuoso. Depois veio a boca
encolhida. E um queixo quase tão
monstruoso quanto o nariz gigantesco. E
enquanto ainda ríamos daquela figura patética que se desenhava, seu Norberto
teceu longas barbas sob o nariz disforme. E todos nós silenciamos respeitosos:
de surpresa na lousa apareceu um ancião venerável de olhar sábio. Descobri aquele dia que a arte às vezes
encontra no (aparente) feio toda sua beleza.
Nos quadros a
guache, com ruas e casas antigas, ele ensinou que a simples presença de uma
figura humana, como a de uma mulher com uma lata na cabeça, levando um menino
pela mão, mudava todo movimento da cena.
E eu descobri que a arte pode criar vida.
Então começaram
as aulas de História da Arte. Mas não
era só uma questão de acompanhar passivamente o caminhar de uma linha
evolutiva. Era evoluir com ela: a cada
período, a cada “Escola”, a aula ensinava a colocar no papel os fundamentos de
todas as revoluções. E junto com meus
colegas, fui modestamente imitando impressionistas, cubistas, expressionistas,
dadaístas e surrealistas.
E de repente,
manchas no papel vistas de longe viravam paisagens. Do desenho de metade do “guarda-roupão”
caseiro sobreposto ao contorno de outras partes do mesmo móvel, vistas de
diferentes ângulos, eu conseguia criar uma imagem nova (mas talvez já presente
em algum canto da cabeça). E numa
paisagem toda cinza, povoada por crianças esquálidas de olhos esbugalhados, fiz
uma cruz vista de costas – com um dos braços já despencando e com o outro
tomado por uma gigantesca teia de aranha –, onde se podia perceber o cotovelo
de um provável Cristo pregado e esquecido.
Enfim
incontrolável, lá fui eu destrambelhando outros desenhos em outras tantas
folhas: um balde de ouro, mas sem fundo, que deixava a água se desperdiçar
eternamente. Um saxofone alado, de onde saltava um homem sem rosto que pescava
notas soltas no espaço. Uma pipa rija,
com braços e pernas, que empinava um menino sorridente, com a cabeça, o corpo e
membros ondulando no alto de um céu azulado.
E tudo isso seu Norberto permitia, incentivava, estimulava. E ensinava, sem qualquer autoritarismo, que
arte era um exercício de liberdade.
Hoje, ainda que
sem o mesmo dom do meu antigo professor, vou brincando de ensinar algumas daquelas
lições ao meu filho.
E percebo que a
arte pode não apenas pode mudar a maneira do pequeno ver o mundo.
Ela e ele juntos
podem criar um mundo novo.
Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 13 e 27/6/2014
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