terça-feira, 27 de outubro de 2015

O segundo parto

(caio silveira ramos)

A primeira pessoa a me falar sobre o Marcos foi minha mãe. Ele devia ter 11, 12 anos e era seu aluno de piano na Escola de Música.   Mas ela admirava a sabedoria daquele menino além da música: Marcos desenhava dinossauros com graciosa ciência e sabia uma infinidade de coisas das áreas mais diversas. De botânica à astronomia, nada escapava da sua curiosidade. 
Eu também gostava de astronomia, mas do meu jeito: enquanto o genial Marcos sabia as distâncias entre as galáxias e a velocidade dos astros, e parecia conhecer todos os segredos dos buracos-negros, eu sonhava com histórias em que Michael Collins, o único astronauta da Apollo 11 a não pisar na lua, tinha uma nova oportunidade e visitava outros planetas. Marcos tinha a dimensão da infinitude do Universo. Eu tentava entender a solidão de um astronauta.
Pois Marcos, na oitava série, veio frequentar o colégio em que eu estudava. Eu já o conhecia de vista, mas agora ele estava ali, na mesma turma. Imaginava um geniozinho excêntrico, chato e metido à besta, mas para minha surpresa ele podia até parecer excêntrico, porém era excentricamente bem-humorado e generoso.  Marcos era realmente esperto, mas não ficava se vangloriando de sua ciência e gostava de compartilhá-la.  E sabia rir de si próprio: quando teve que usar um colete com haste de ferro para arrumar a postura, ao ouvir as primeiras gozações já se pôs um apelido: Robocop.  Mas o apelido não pegou e ninguém mais deve se lembrar disso.  O que ninguém se esquece é que ele foi o único de sua turma a passar direto na Medicina da USP. 
E nós nos encontramos muito na rua Teodoro Sampaio, meu caminho para o Largo São Francisco e endereço da “Casa do Estudante” da Medicina.  Mas depois os caminhos se espalharam: terminada a faculdade, Marcos teve que servir um ano o Exército e só então pôde fazer a sonhada Residência em Psiquiatria no Hospital do Servidor.  E lá, encontrou em seu orientador, o mestre que mudou seu destino: Dr.Carol Sonenreich.
Marcos terminou a Residência e resolveu voltar para Piracicaba. Apaixonado pela Psiquiatria e pelas técnicas únicas de seu mentor, ganhou o profundo respeitado dos colegas e o amor agradecido dos pacientes.   Conhecido por não recusar os casos mais difíceis, se tornou uma referência na delicada missão de aliar os tratamentos psiquiátricos às gravidezes tanto arriscadas quanto infinitamente desejadas.
E o Doutor Marcos continuou sua trilha predestinada até que um dragão sem luzes resolveu atravessar seu caminho.
Porém, mais uma vez seu cérebro privilegiado soube encontrar novos atalhos.
E sua mãe soube ressuscitar Deus.

***
Durante minhas últimas férias, fui depois de muitos anos visitar o Marcos. Ele não estava: estava sua mãe.  Até que ele chegou: entrou pela sala feito um furacão ensolarado e me viu.  Exclamou interrogando meu nome e abriu os braços fraternos.
Durante horas conversamos sobre seus planos e sua memória pulsou toda sua paixão pela Medicina.   Falou de seus estudos incessantes, dos cinco livros que passou a escrever – um sobre os métodos inovadores de seu mestre na Psiquiatria, Carol Sonenreich -, da vontade de ensinar tudo que aprendeu e tudo que não se cansa de aprender. E de suas aulas de canto. E dos seus cantares em russo.
Me dei conta do porquê seus pacientes o amavam (e o esperam) tanto:  generoso, Marcos precisa da Medicina, assim como a Medicina precisa dele.   Talvez por isso, ela e ele tenham se entendido tanto, ainda mais depois do acidente: afinal, como explicar que ele esteja andando, conversando, pensando e sorrindo depois de tudo o que aconteceu? Como pode o Dr. Marcos estar vivo, produzindo pensamento e ação?  Bem, a explicação disso tudo talvez não esteja apenas no amor da Medicina por ele.
A notícia do terrível acidente sofrido pelo Marcos veio acompanhada de uma sentença: se sobrevivesse, o que parecia muito difícil, ele passaria a habitar outro mundo, um mundo distante, imóvel e silencioso. Mas qualquer que fosse o caminho, seu irmão Rogério, com a arte à flor da pele, aguardaria o retorno do irmão tatuando infinitas telas cheias de vida.
Quem também remodelou sua vida na espera, foi a mãe do Marcos, que chegou a receber o seguinte conselho: “deixe ele ir embora, vai ser melhor.”  Mas as mães não entendem certos recados e rebateu: “ir embora para onde?  Para casa?”  E diante de um suspiro médico, ela pediu perdão por suas descrenças e deu para rezar. Rezar a cada instante, como um vício, como uma mania que lhe encobria a voz e o pensamento.  Penelopeando-se toda, passou a desfiar suas falas com seu Deus e com seu Marcos por dias e noites.  E completa de vozes, gestou seu filho novamente.
E um marcos-novo-marcos-mesmo foi crescendo.  Seus movimentos começaram a se multiplicar para explorar os sentidos. Seus e os do mundo que o aguardava.   Tal qual a gestação (que foi longa), seu segundo parto também foi trabalhoso.  Horas e horas, dias e dias, meses e meses.  Até que ele foi regerado.  E renasceu.
E sua mãe sorriu para sua cria.
Mais uma vez.

Ilustração: Erasmo Spadotto – cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 30/8 e 13/9/2015



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