(caio silveira ramos)
Meu filho
caminha tranquilo e arteiro pela vida, mas confesso que já me preocupo com a
qualidade de ensino que ele encontrará por aí.
Coincidentemente, o elemento mais importante nessa área é o mais negligenciado
há anos por diversas instituições privadas e pelas políticas públicas: aquele
que educa.
Mesmo em
escolas particulares, com suas belas estruturas, salas de informática, material
pedagógico visualmente atrativo e brinquedos deslumbrantes, quando se pergunta
sobre a formação dos professores, não é raro que o responsável pela “apresentação”
do estabelecimento fique incomodado, como se aquela questão não estivesse no
rol de respostas decorado com tanta precisão. Em um grande número
de escolas particulares, não há preocupação com a formação sólida de
professores e professoras. Claro, há exigências legais para o exercício da
profissão, mas muitas direções de estabelecimentos de ensino não parecem se
preocupar com o grau de excelência das faculdades formadoras de seu corpo
docente, nem tampouco se o educador tem esse ou aquele conhecimento, interesse
por leituras, música ou qualquer tipo de arte.
Logicamente,
há várias professoras e professores que fogem dessa escrita, tanto em escolas
particulares como em públicas. Aliás, nas públicas é até comovente perceber
que, mesmo com baixos salários, existem profissionais que se interessam pela
arte e ciência da Educação, e lutam para se aprimorar, ler, estudar. E
claro, nas escolas particulares há inúmeros profissionais espetaculares.
Infelizmente,
não raro, encontro por escolas sem fim, educadores e educadoras que, ou
acreditam em duendes e na supremacia de bolachas insossas – escondendo por
trás da meiguice de fadinhas o totalitarismo do “nós estamos certos e você é um
ignorante” – ou se mostram como jovens bem intencionados, mas que não vão muito
além das fórmulas prontas de manuais de pedagogia, muitas vezes confundindo-se
com esforçados animadores de festas infantis cheios de euforia e pouco estofo.
O que
espero para meu filho é o que tive para mim: a sorte de ter, ainda na escola
pública, um primeiro ciclo de ensino fundamental de altíssima qualidade.
E na base dessa qualidade estavam unicamente elas: as professoras.
Mulheres sábias, fortes, preparadas, que não precisavam acreditar em grifos e
fadinhas: eram elas mesmas, nascidas e aprimoradas fadas cirandeiras de
encantar crianças.
E eu fui
levado feliz e enfeitiçado por aquela ciranda, de mãos dadas com Therezinha
Moraes, Adelina Carvalho, Deise Rossi, Anna (Annita) Gomes e Helena Domitti,
prolongamentos dos braços de uma mãe sempre presente. Delas falarei em
crônicas futuras, recriando um pouco de suas histórias (que são muito da
minha).
Hoje me
abrigo nos olhos vivos, curiosos, sedentos de aprendizado e conhecimento de
Dona Therezinha. Olhos que ela conserva brilhantes, mais de trinta anos depois,
ajudando a desbravar o meu caminho. Quando os problemas se agravam no dia
a dia, volto, ao colocar a cabeça no travesseiro, àquela ampla sala do pré-primário
do Sud Mennucci, com seus janelões dando boas vindas ao sol do fim da tarde e
abrigando nos parapeitos os vasos de milho germinados no algodão. Estou
lá de novo, camiseta branca, calçãozinho azul-marinho, revendo aquelas crianças
que reconheço, sei o nome, brinco, e com quem, ou formando um grande círculo de
cadeirinhas laranja e brancas, ou diante das mesas de quatro lugares, me
preparo para aprender. Pois foi isso que Dona Therezinha Moraes fez com
tantas gerações antes que o famigerado chamamento “tia” se instalasse e as
crianças fossem obrigadas a ler aos quatro anos: ela nos preparou para
aprender. Com ela, aprendemos a aprender por meio de brincadeiras, de
recortes, de colagens, das ondas, zigue-zagues e morrinhos feitos a lápis nas linhas
coloridas dos cadernos encapados. Ela moldou nossas mãos, ouvidos e
olhos, nos ensinando antes das letras, antes que as palavras se instalassem
escritas e graciosas para sempre em nossas vidas. E quando elas vieram se
instalaram sem medo.
E um novo mundo
se fez.
***
De Dona
Deise, professora do 2º Ano, guardo sua força, que no dia a
dia se transforma na minha. Mulher forte, de voz forte que flutuava no ar
e se revirava em doçura, leve, suave como seus vestidos tecidos de flores
pequenas. E com ela me vieram os textos crescidos, as contas com restos,
o eclipse da lua, o sol se impondo no fim.
De Dona
Anitta, a solidez do conhecimento, firme, preciso e destemido: ali encontrei os
primeiros livros, que ela me ensinou a recontar e comentar. E foi tal a
alegria daquele encontro que, com o incentivo travesso de meus pais, passei a
devorar todos os livros que me apareciam e se mostravam apetitosos. E
Dona Annita não censurou minhas leituras além dos muros: sábia, incentivou-as e
se fez cúmplice, pedindo que eu as recontasse para ela. E dos
livros fabulados, minha imaginação se desprendeu livre: passei a inventar
minhas próprias histórias, sem medo, sem freios. E ela abençoou meus
voos.
De Dona
Helena vieram o sorriso e os braços abertos. E as canções: dezenas
delas, cheias de alegria, ensinamento e entusiasmo precioso. Nos
descaminhos da cidade, nos temporais, me pego assobiando seus cantares, sua voz
afastando as nuvens carregadas. E lá vou eu, cantando junto com a
classe, a brincadeira cheia de palavras misteriosas, catafau, fau, fau.
Acho que é um encantamento.
Neste
país, em que impera a “cultura dos bacharéis”, precisamos, mais do que de
doutores, de conhecimento real, concreto, útil, beabá e um-dois-três.
Precisamos do ensino de base, sólido, construtor, transgressor.
Precisamos de fadas cirandeiras como Therezinha, Adelina, Deise, Annita e
Helena, cujo maior feitiço – sem necessidade de qualquer varinha de condão –,
foi (e ainda é) o de transformar: transformar seres em humanos.
Humanos de
carne e osso e alma, feitos de verdade e sonho.
***
Estou lá: classe da 1ª série do curso primário da Escola
Estadual Sud Mennucci, 1978. Ela
também está lá (e também aqui, nas minhas profundezas infinitas). Mas quem olha
de fora, de fora dos mirantes, de fora do tempo, com olhos despreparados,
talvez não a veja: a professora Adelina Carvalho, após um longo sonho, se
desprendeu das palavras em 15 de outubro de 2002. Dia do Professor.
Os dias, o tempo, se dissolvem: se hoje posso amar a palavra
escrita e tudo o que dela decorre, devo muito àquela mulher que me guiou os
olhos embaçados para desvendar as letras brincantes e os sentidos de seus
brinquedos. Por ela entendi os descaminhos do amor, que a poesia das
palavras e do seu encanto me revelou.
Naquele ano distante a conheci. Ou antes, que dessas fadas cirandeiras
recebemos os feitiços desde o nascimento ou além: há feitiços que ultrapassam
os tempos. Mas lá, naquela sala, ela recortou do céu a Lua e colocou-a na
minha mão: L-u-a, Lu-a, Lua, palavra feita de giz e lápis, todos os mistérios
do infinito desvendados para revelar outros, luar, luar, claridade e luz: luar,
a poesia numa palavra só.
Em Adelina Carvalho, outra palavra – alfabetizar – adquiriu seu
sentido mais completo, pois ensinar a ler e a escrever é, antes de tudo, um
exercício de liberdade, o desvendar de um mistério que atravessa os vocábulos e
abre os olhos. E ela, sábia, conhecia todos os caminhos para iluminar
crianças e suas vidas.
Não importa se naquele tempo se usavam as hoje execradas
cartilhas (que, ironicamente, fizeram parte da educação de tantos talentos
brasileiros): qualquer que fosse o meio, para ela não faria diferença. A
diferença era ela, que sabia, pela voz, pelo giz, encantar crianças como se
usasse pó de pirlimpimpim. Giz.
Estamos em tempo de inclusão? Pois Adelina sempre soube incluir,
preparando (sem que percebêssemos: só fui descobrir depois) lições, aulas,
exercícios, lousas inteiras para cada tipo de aluno, respeitando diferenças e
dificuldades, igualando autoestimas e deslumbramentos.
Na greve dos professores daquele ano, Adelina não se furtou a
apoiar o movimento, consciente do descaso do governo com sua categoria.
Mas ela tinha consciência também da condição especial de seus alunos em fase de
alfabetização: sabia que não poderia ensinar nada de novo fora de suas aulas,
mas não deixaria que suas crianças perdessem tudo que já tinham
aprendido. Foi então que, em uma manhã de chuva intensa, atendi ao
toque da campainha e vi minha professora empunhando um guarda-chuva, me dizendo
que não queria entrar: viera apenas para trazer um caderno com capa de
cartolina, todo feito à mão e com exercícios para que eu não esquecesse as
lições já dadas. E como eu, cada aluno da sala recebeu sua visita e um
caderno feito especialmente para as dificuldades e os desafios individuais.
E nenhum de nós se esqueceu da Lua. E o Sol se fez novamente.
Anos depois, quando o início da adolescência parecia querer
entrar em conflito com a matemática da 6ª série, fui procurá-la para clarear
meus caminhos. E ela, sábia, muito além das aritméticas primárias, em
apenas uma tarde de conversa, me solucionou as dúvidas da mente e da
alma. E mais, me mostrou marcas feitas a lápis na parede da garagem de
sua casa: ali ela marcara meu crescimento nas vezes em que eu, acompanhando
minha irmã Raquel, amiga de sua filha Neusinha, visitara sua querida
família. Mas daquela vez ela não marcou minha altura. Eu já
podia crescer sozinho.
Acredito que a sábia fada Adelina, pelo amor ao ensino de
crianças – pelo amor às crianças, afinal –, na verdade queria se enfeitiçar
para encantar melhor: diminuir, diminuir, puerilizar-se até ficar como elas,
suas crianças. Viver como elas, ser uma delas, pensar como elas, para
iluminar ainda mais suas lições de igualdade a partir das letras, das palavras,
das frases.
E assim ela se foi pequenina, pequenina, feito criança, para que
nossas almas ultrapassassem as marcas a lápis nas paredes e não tivessem mais
limites.
Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 29/6/2012, 13/7/2012 e 27/7/2012
Publicado no Jornal de Piracicaba em 29/6/2012,
Não conhecia esse seu lado cronista. Muito bom, Caio.
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