terça-feira, 16 de setembro de 2014

A ciranda das fadas

(caio silveira ramos)

Meu filho caminha tranquilo e arteiro pela vida, mas confesso que já me preocupo com a qualidade de ensino que ele encontrará por aí.     Coincidentemente, o elemento mais importante nessa área é o mais negligenciado há anos por diversas instituições privadas e pelas políticas públicas: aquele que educa.
Mesmo em escolas particulares, com suas belas estruturas, salas de informática, material pedagógico visualmente atrativo e brinquedos deslumbrantes, quando se pergunta sobre a formação dos professores, não é raro que o responsável pela “apresentação” do estabelecimento fique incomodado, como se aquela questão não estivesse no rol de respostas decorado com tanta precisão.   Em um grande número de escolas particulares, não há preocupação com a formação sólida de professores e professoras. Claro, há exigências legais para o exercício da profissão, mas muitas direções de estabelecimentos de ensino não parecem se preocupar com o grau de excelência das faculdades formadoras de seu corpo docente, nem tampouco se o educador tem esse ou aquele conhecimento, interesse por leituras, música ou qualquer tipo de arte.
Logicamente, há várias professoras e professores que fogem dessa escrita, tanto em escolas particulares como em públicas. Aliás, nas públicas é até comovente perceber que, mesmo com baixos salários, existem profissionais que se interessam pela arte e ciência da Educação, e lutam para se aprimorar, ler, estudar.  E claro, nas escolas particulares há inúmeros profissionais espetaculares.
Infelizmente, não raro, encontro por escolas sem fim, educadores e educadoras que, ou acreditam em duendes e na supremacia de bolachas insossas – escondendo por trás da meiguice de fadinhas o totalitarismo do “nós estamos certos e você é um ignorante” – ou se mostram como jovens bem intencionados, mas que não vão muito além das fórmulas prontas de manuais de pedagogia, muitas vezes confundindo-se com esforçados animadores de festas infantis cheios de euforia e pouco estofo.
O que espero para meu filho é o que tive para mim: a sorte de ter, ainda na escola pública, um primeiro ciclo de ensino fundamental de altíssima qualidade.  E na base dessa qualidade estavam unicamente elas: as professoras.  Mulheres sábias, fortes, preparadas, que não precisavam acreditar em grifos e fadinhas: eram elas mesmas, nascidas e aprimoradas fadas cirandeiras  de encantar crianças.
E eu fui levado feliz e enfeitiçado por aquela ciranda, de mãos dadas com Therezinha Moraes, Adelina Carvalho, Deise Rossi, Anna (Annita) Gomes e Helena Domitti, prolongamentos dos braços de uma mãe sempre presente.  Delas falarei em crônicas futuras, recriando um pouco de suas histórias (que são muito da minha).
Hoje me abrigo nos olhos vivos, curiosos, sedentos de aprendizado e conhecimento de Dona Therezinha. Olhos que ela conserva brilhantes, mais de trinta anos depois, ajudando a desbravar o meu caminho.  Quando os problemas se agravam no dia a dia, volto, ao colocar a cabeça no travesseiro, àquela ampla sala do pré-primário do Sud Mennucci, com seus janelões dando boas vindas ao sol do fim da tarde e abrigando nos parapeitos os vasos de milho germinados no algodão.  Estou lá de novo, camiseta branca, calçãozinho azul-marinho, revendo aquelas crianças que reconheço, sei o nome, brinco, e com quem, ou formando um grande círculo de cadeirinhas laranja e brancas, ou diante das mesas de quatro lugares, me preparo para aprender.  Pois foi isso que Dona Therezinha Moraes fez com tantas gerações antes que o famigerado chamamento “tia” se instalasse e as crianças fossem obrigadas a ler aos quatro anos: ela nos preparou para aprender.  Com ela, aprendemos a aprender por meio de brincadeiras, de recortes, de colagens, das ondas, zigue-zagues e morrinhos feitos a lápis nas linhas coloridas dos cadernos encapados.  Ela moldou nossas mãos, ouvidos e olhos, nos ensinando antes das letras, antes que as palavras se instalassem escritas e graciosas para sempre em nossas vidas.  E quando elas vieram se instalaram sem medo. 
E um novo mundo se fez.


                                                        ***

De Dona Deise, professora do 2º Ano, guardo sua força, que no dia a dia se transforma na minha.  Mulher forte, de voz forte que flutuava no ar e se revirava em doçura, leve, suave como seus vestidos tecidos de flores pequenas.  E com ela me vieram os textos crescidos, as contas com restos, o eclipse da lua, o sol se impondo no fim.
De Dona Anitta, a solidez do conhecimento, firme, preciso e destemido: ali encontrei os primeiros livros, que ela me ensinou a recontar e comentar.  E foi tal a alegria daquele encontro que, com o incentivo travesso de meus pais, passei a devorar todos os livros que me apareciam e se mostravam apetitosos.  E Dona Annita não censurou minhas leituras além dos muros: sábia, incentivou-as e se fez cúmplice, pedindo que eu as recontasse para ela.   E dos livros fabulados, minha imaginação se desprendeu livre: passei a inventar minhas próprias histórias, sem medo, sem freios.  E ela abençoou meus voos.
De Dona Helena vieram o sorriso e os braços abertos.   E as canções: dezenas delas, cheias de alegria, ensinamento e entusiasmo precioso.   Nos descaminhos da cidade, nos temporais, me pego assobiando seus cantares, sua voz afastando as nuvens carregadas.   E lá vou eu, cantando junto com a classe, a brincadeira cheia de palavras misteriosas, catafau, fau, fau.  Acho que é um encantamento.
Neste país, em que impera a “cultura dos bacharéis”, precisamos, mais do que de doutores, de conhecimento real, concreto, útil, beabá e um-dois-três.  Precisamos do ensino de base, sólido, construtor, transgressor.  Precisamos de fadas cirandeiras como Therezinha, Adelina, Deise, Annita e Helena, cujo maior feitiço – sem necessidade de qualquer varinha de condão –, foi (e ainda é) o de transformar: transformar seres em humanos. 
Humanos de carne e osso e alma, feitos de verdade e sonho.



                                                     ***

Estou lá: classe da 1ª série do curso primário da Escola Estadual Sud Mennucci, 1978.  Ela também está lá (e também aqui, nas minhas profundezas infinitas). Mas quem olha de fora, de fora dos mirantes, de fora do tempo, com olhos despreparados, talvez não a veja: a professora Adelina Carvalho, após um longo sonho, se desprendeu das palavras em 15 de outubro de 2002. Dia do Professor.
Os dias, o tempo, se dissolvem: se hoje posso amar a palavra escrita e tudo o que dela decorre, devo muito àquela mulher que me guiou os olhos embaçados para desvendar as letras brincantes e os sentidos de seus brinquedos.  Por ela entendi os descaminhos do amor, que a poesia das palavras e do seu encanto me revelou.
Naquele ano distante a conheci. Ou antes, que dessas fadas cirandeiras recebemos os feitiços desde o nascimento ou além: há feitiços que ultrapassam os tempos.  Mas lá, naquela sala, ela recortou do céu a Lua e colocou-a na minha mão: L-u-a, Lu-a, Lua, palavra feita de giz e lápis, todos os mistérios do infinito desvendados para revelar outros, luar, luar, claridade e luz: luar, a poesia numa palavra só.
Em Adelina Carvalho, outra palavra – alfabetizar – adquiriu seu sentido mais completo, pois ensinar a ler e a escrever é, antes de tudo, um exercício de liberdade, o desvendar de um mistério que atravessa os vocábulos e abre os olhos.  E ela, sábia, conhecia todos os caminhos para iluminar crianças e suas vidas.
Não importa se naquele tempo se usavam as hoje execradas cartilhas (que, ironicamente, fizeram parte da educação de tantos talentos brasileiros): qualquer que fosse o meio, para ela não faria diferença.  A diferença era ela, que sabia, pela voz, pelo giz, encantar crianças como se usasse pó de pirlimpimpim.   Giz.
Estamos em tempo de inclusão? Pois Adelina sempre soube incluir, preparando (sem que percebêssemos: só fui descobrir depois) lições, aulas, exercícios, lousas inteiras para cada tipo de aluno, respeitando diferenças e dificuldades, igualando autoestimas e deslumbramentos.
Na greve dos professores daquele ano, Adelina não se furtou a apoiar o movimento, consciente do descaso do governo com sua categoria.  Mas ela tinha consciência também da condição especial de seus alunos em fase de alfabetização: sabia que não poderia ensinar nada de novo fora de suas aulas, mas não deixaria que suas crianças perdessem tudo que já tinham aprendido.   Foi então que, em uma manhã de chuva intensa, atendi ao toque da campainha e vi minha professora empunhando um guarda-chuva, me dizendo que não queria entrar: viera apenas para trazer um caderno com capa de cartolina, todo feito à mão e com exercícios para que eu não esquecesse as lições já dadas.  E como eu, cada aluno da sala recebeu sua visita e um caderno feito especialmente para as dificuldades e os desafios individuais.  E nenhum de nós se esqueceu da Lua. E o Sol se fez novamente.
Anos depois, quando o início da adolescência parecia querer entrar em conflito com a matemática da 6ª série, fui procurá-la para clarear meus caminhos.  E ela, sábia, muito além das aritméticas primárias, em apenas uma tarde de conversa, me solucionou as dúvidas da mente e da alma.  E mais, me mostrou marcas feitas a lápis na parede da garagem de sua casa: ali ela marcara meu crescimento nas vezes em que eu, acompanhando minha irmã Raquel, amiga de sua filha Neusinha, visitara sua querida família.   Mas daquela vez ela não marcou minha altura.  Eu já podia crescer sozinho.
Acredito que a sábia fada Adelina, pelo amor ao ensino de crianças – pelo amor às crianças, afinal –, na verdade queria se enfeitiçar para encantar melhor: diminuir, diminuir, puerilizar-se até ficar como elas, suas crianças.  Viver como elas, ser uma delas, pensar como elas, para iluminar ainda mais suas lições de igualdade a partir das letras, das palavras, das frases. 
E assim ela se foi pequenina, pequenina, feito criança, para que nossas almas ultrapassassem as marcas a lápis nas paredes e não tivessem mais limites.

                                                Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
 Publicado no Jornal de Piracicaba em 29/6/2012,13/7/2012 e 27/7/2012

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