(caio silveira
ramos)
Peço licença aos que não gostam do Natal por motivos estéticos e
religiosos; aos que odeiam o consumismo da época e a hipocrisia de alguns; aos
que se sentem agredidos pelas luzes, enfeites e alegrias impostas; aos
solitários que veem aumentada sua solidão; aos que se lembram de pessoas e
tempos passados e são atravessados pela melancolia. Mas confesso minha
fascinação pelo Natal e não consigo passar por esses dias sem me sentir
correndo descalço pelo chão, esperando o mundo chegar à meia-noite.
Na infância, meus dezembros sempre foram encantados: a casa se
enchia de férias, música e um presépio tão aguardado, que meus sonhos passados
não conseguiram dar conta: ele persiste em mim, recheando meus sonhos presentes
e os que virão.
Quando chegava o tempo certo (ele sempre sabia o tempo certo), meu
pai pegava uma grande e velha lousa no quartinho dos fundos, e a colocava sobre
uma mesinha alta num dos cantos da sala. A lousa era forrada com jornal e
emoldurada com faixas de cartolina pregadas com percevejos para que a serragem
escura colocada sobre todo o quadrado não escapasse pelas bordas e sujasse a
sala. Coladas na cartolina, folhas de papel verde desciam até o chão,
encobrindo as pernas da mesa e a vitrolinha que, abrigada pela tábua inferior
da mesa, quase rente ao chão, soava músicas de Natal do mundo inteiro e a Dança
da Fada Açucarada.
E sobre o jornal que cobria a lousa, meu pai esculpia meu sonho:
chão, relevos e morros cobertos de serragem e musgo, caminhos trilhados de
terra mais escura, moinho de vento feito de argila com pás azuis de delicada
carpintaria, assim como o monjolinho. Cacos de espelho viravam
lagos de patos, onde carneirinhos bebiam água. Mas havia outros cordeirinhos
espalhados por todos os cantos e nas mais diversas poses. E um pastorzinho
tocando flauta. No fundo do cenário, em que todos os caminhos se
encontravam, ficava o estábulo feito de galhos de caquizeiro, tábuas finas e
cobertura de palha, onde se escondia uma pequena lâmpada que iluminava a noite
e um anjinho de asas abertas dependurado na frente da construção. Lá dentro, um
boi, um burrinho e as figuras de José e Maria olhando para a manjedoura ainda
vazia feita de tabuinhas e palha. Lá longe, bem longe, vindos de
três caminhos distintos, os três Reis Magos (um deles premiado com um camelo:
só havia uma peça): a cada dia eles eram colocados um pouquinho pra frente, até
que se encontravam no meio do presépio para chegarem juntos no dia 6 de
janeiro. Mas antes disso, durante todo o mês de dezembro, reunidos
por minha mãe, um grupo de meninos talentosos (acompanhados por minhas irmãs,
igualmente inspiradas com seus instrumentos) ensaiava músicas de Natal que,
pouco antes do dia 24, se hospedavam com todos os seus sons nas casas de amigos
e parentes. Espalhados pelo mundo, esses meninos – Francisco Amstalden, Luís
Fernando Guimarães (e, em participações especialíssimas, seu irmão Paulo
Celso), Washington Barella e Guilherme Garbosa –, hoje músicos e professores
brilhantes, devem sonhar com esses encontros quando se aproxima a noite de
Natal. A noite.
No dia 24 de dezembro, eu tentava dormir à tarde para que a
noite chegasse mais depressa, mas a ansiedade e o cheiro de peru assando me
faziam perambular pela casa até a hora de ajudar a arrumar a mesa, tomar banho
e esperar a ceia. Então, depois de rezarmos juntos, sentávamos à mesa
retangular da copa, sempre na seguinte posição (no sentido horário, a partir da
“cabeceira do meio-dia”): minhas irmãs Ester, Raquel e Ruth, minha mãe, eu e
meu pai. Ele abria um espumante e destrinchava o peru de gosto
inesquecível, que comíamos com farofa enriquecida com pedacinhos de maçã. E
vinham as frutas, os doces e o refrigerante liberado (talvez uma
Tubaína). E vinha o desejo que a meia-noite chegasse logo para que pudéssemos
abrir os presentes. Mas antes, eu tinha uma missão.
À meia-noite em ponto, com a casa iluminada apenas por aquela
lampadazinha de dentro do estábulo, meu pai me erguia e eu colocava a imagem do
Menino Jesus de braços abertos na manjedoura.
E dentro de mim, até hoje, entre as luzes e o sorriso do meu
pequeno filho, feito um anjo de folhinha, aqueles Natais sobrevivem. E ao me
lembrar das pessoas e dos tempos passados, não sou atravessado pela
melancolia. Meu Natal interior me faz flutuar sobre o presépio para
colocar o Menino Jesus na manjedoura.
Então ele me sorri de braços abertos.
Ao lado do meu anjo de folhinha.
Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 21/12/2012
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