sexta-feira, 26 de setembro de 2014

O Natal interior

(caio silveira ramos)

Peço licença aos que não gostam do Natal por motivos estéticos e religiosos; aos que odeiam o consumismo da época e a hipocrisia de alguns; aos que se sentem agredidos pelas luzes, enfeites e alegrias impostas; aos solitários que veem aumentada sua solidão; aos que se lembram de pessoas e tempos passados e são atravessados pela melancolia.  Mas confesso minha fascinação pelo Natal e não consigo passar por esses dias sem me sentir correndo descalço pelo chão, esperando o mundo chegar à meia-noite.
Na infância, meus dezembros sempre foram encantados: a casa se enchia de férias, música e um presépio tão aguardado, que meus sonhos passados não conseguiram dar conta: ele persiste em mim, recheando meus sonhos presentes e os que virão.
Quando chegava o tempo certo (ele sempre sabia o tempo certo), meu pai pegava uma grande e velha lousa no quartinho dos fundos, e a colocava sobre uma mesinha alta num dos cantos da sala. A lousa era forrada com jornal e emoldurada com faixas de cartolina pregadas com percevejos para que a serragem escura colocada sobre todo o quadrado não escapasse pelas bordas e sujasse a sala.  Coladas na cartolina, folhas de papel verde desciam até o chão, encobrindo as pernas da mesa e a vitrolinha que, abrigada pela tábua inferior da mesa, quase rente ao chão, soava músicas de Natal do mundo inteiro e a Dança da Fada Açucarada.
E sobre o jornal que cobria a lousa, meu pai esculpia meu sonho: chão, relevos e morros cobertos de serragem e musgo, caminhos trilhados de terra mais escura, moinho de vento feito de argila com pás azuis de delicada carpintaria, assim como o monjolinho.   Cacos de espelho viravam lagos de patos, onde carneirinhos bebiam água. Mas havia outros cordeirinhos espalhados por todos os cantos e nas mais diversas poses. E um pastorzinho tocando flauta.   No fundo do cenário, em que todos os caminhos se encontravam, ficava o estábulo feito de galhos de caquizeiro, tábuas finas e cobertura de palha, onde se escondia uma pequena lâmpada que iluminava a noite e um anjinho de asas abertas dependurado na frente da construção. Lá dentro, um boi, um burrinho e as figuras de José e Maria olhando para a manjedoura ainda vazia feita de tabuinhas e palha.   Lá longe, bem longe, vindos de três caminhos distintos, os três Reis Magos (um deles premiado com um camelo: só havia uma peça): a cada dia eles eram colocados um pouquinho pra frente, até que se encontravam no meio do presépio para chegarem juntos no dia 6 de janeiro.   Mas antes disso, durante todo o mês de dezembro, reunidos por minha mãe, um grupo de meninos talentosos (acompanhados por minhas irmãs, igualmente inspiradas com seus instrumentos) ensaiava músicas de Natal que, pouco antes do dia 24, se hospedavam com todos os seus sons nas casas de amigos e parentes. Espalhados pelo mundo, esses meninos – Francisco Amstalden, Luís Fernando Guimarães (e, em participações especialíssimas, seu irmão Paulo Celso), Washington Barella e Guilherme Garbosa –, hoje músicos e professores brilhantes, devem sonhar com esses encontros quando se aproxima a noite de Natal. A noite.
No dia 24 de dezembro, eu tentava dormir à tarde para que a noite chegasse mais depressa, mas a ansiedade e o cheiro de peru assando me faziam perambular pela casa até a hora de ajudar a arrumar a mesa, tomar banho e esperar a ceia. Então, depois de rezarmos juntos, sentávamos à mesa retangular da copa, sempre na seguinte posição (no sentido horário, a partir da “cabeceira do meio-dia”): minhas irmãs Ester, Raquel e Ruth, minha mãe, eu e meu pai.   Ele abria um espumante e destrinchava o peru de gosto inesquecível, que comíamos com farofa enriquecida com pedacinhos de maçã. E vinham as frutas, os doces e o refrigerante liberado (talvez uma Tubaína).  E vinha o desejo que a meia-noite chegasse logo para que pudéssemos abrir os presentes.   Mas antes, eu tinha uma missão.
À meia-noite em ponto, com a casa iluminada apenas por aquela lampadazinha de dentro do estábulo, meu pai me erguia e eu colocava a imagem do Menino Jesus de braços abertos na manjedoura.
E dentro de mim, até hoje, entre as luzes e o sorriso do meu pequeno filho, feito um anjo de folhinha, aqueles Natais sobrevivem. E ao me lembrar das pessoas e dos tempos passados, não sou atravessado pela melancolia.  Meu Natal interior me faz flutuar sobre o presépio para colocar o Menino Jesus na manjedoura.
Então ele me sorri de braços abertos.
Ao lado do meu anjo de folhinha.

 Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
      Publicado no Jornal de Piracicaba em 21/12/2012



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