terça-feira, 23 de setembro de 2014

Malaco Agitadeiro

(caio silveira ramos)

Texto originalmente publicado no encarte do CD “Casa de Malandro”, de Hermes Petrini, de 2010. O texto chega agora a este Mirante, revisado, atualizado, ampliado e remexido. Agite(-se) antes de ler.

Quando, há quase 20 anos-luz, bateu no meu escutadô de batucada e promessa de amor o samba “Filosofia de Bar, acendeu um lampião na minha cachola: de-quem-de-quem-é essa obra-primona sincopada?  De quem é esse sambaço que usa e abusa das bebidas pra construir uma história inteirinha e risonhada, que bota num balaio tropical o cáiser e o Che Guevara?   Pois naquele dia me falaram que o tal samba era justamente do cantador que estava ali na minha frente empunhando a viola e atendendo pelo nome de Hermes Petrini.  Tava eu ajudando a arranhar o cavaco pros Menores de Assis, rapaziada sabidaça que fazia uma roda de samba lá pros lados da Igreja dos Frades (e que metamorfoseava até bula de remédio em samba-enredo), quando me apresentaram o mano da Helaine. E o que a moça tinha de formosura e denguice, ele tinha de talento, música na veia e liderança, pois sendo pouco mais velho, já era o guruzão daquele bando todo.
Ali e depois fui conhecendo aquele bamba, que além de talentoso, tem um coração de rodear o mundo e ainda abraçar a Lua, pois se tornou camarada de horas tantas, músicas muitas e conversas infinitas.  Um sujeito capaz de transformar uma torneira quebrada em prova de amizade e samba de primeira.
E o danado ainda joga nas onze, bate o escanteio, cabeceia na área, defende debaixo da meta, recolhe – humilde como um gandula –, a bola do lado de fora, e ainda dá as instruças do banco: manda bem no canto, na corda, no coro e nas tecladagens; compõe, arranja e interpreta.   E não para por aí: feito polvo habilidoso, dá aula de música pra meninada, inventa serenata, capricha no choro e incendeia baile e arrasta-pé.  E tem outra: ele ainda toca em casamento, fazendo a noiva se enformosurar ainda mais na igreja e a festa terminar com os convidados dançando no teto ao lado do lustre.  Se bobear, seu Hermes anima até velório e convence o morto a saltar de banda, desmaiar três senhoras e sair riscando o chão do recinto.
E não é que o malandro se metamorfoseia até em pai de canal educativo?  Pois o fulano criou na paz e na alegria suas duas meninas, hoje moças cheias de talento e belezura (devem ter puxado a mãe Zahira...) capazes de fechar o comércio da rua Governador e fazer o sujeito fugir até da Boa Morte.  Isso sem contar que uma delas, a Carina Nina Ninoca da Paçoca, feito o pai, se bordou de cantoria e danou-se a enfeitiçar montanhas e mundos com suas bagualas e coplas.
Mas o tal Hermes é mesmo um vagulino estranhoso, que labora sábado, domingo, feriado e dia santo.  Pois malaco que é malaco sempre tem que estar na contramão: se a honestidade hoje caiu na valeta, o marginal da vera é aquele que vai lá no meio-fio esgotado e toma a água da chuva que escorre pelos cantos, quase perdida, justamente pra resgatar a danada da honestidade, trazer a dita pra tona e escancará-la na careta da vilanada.
Na linguagera modernosa, Hermes Petrini é um “agitador cultural, que vai além da música, irradiando movimentos, tecendo todos os gêneros, dançando na corda ou em cima da lona do circo.  Mas pra mim, ele é um Malaco Agitadeiro, subvertendo gostos, desgostos e maus gostos. Livre, talentoso e valente.
Como todo malandro de responsa tem que ser.

                       Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
                                    Publicado no Jornal de Piracicaba em 2/11/2012

Um comentário:

  1. Obrigado por compartilhar amigo.
    Infinitas felicidades a vc e sua linda família.

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