(caio silveira ramos)
(para
Naná)
Assim que desliguei o telefone, João Pedro me cutucou sério: “quem
morreu?”. Me surpreendi com sua
pergunta: além de prestar atenção na minha conversa e captar o ponto central
dela, ele, aos quatro anos, parecia ter consciência da gravidade da palavra
“morte”. Quando, desarmado, consegui
responder que quem tinha morrido era a cachorrinha que morava com sua avó –
cachorrinha que fora sua companheira durante boa parte das férias, ainda
naquele mês –, os azuis profundos de seus olhos se encheram d’água e ele
estendeu o beicinho, como faz quando, por causa do trabalho, não posso ver ao
seu lado o seu desenho preferido na TV. Aquele olhar tristonho e o labiozinho
trêmulo também me surpreenderam, porque além da gravidade da palavra, ele a
associava, ao pensar na cachorrinha, ao seu sentido mais dolorido.
Mas desarmado fiquei de fato quando seus olhos, de repente, se
tornaram muito vivos e, intrigado, ele voltou a perguntar: “ela não existe
mais?”. Naquele instante ele suplantava o conceito simples de morte que
absorvera desde o último mês de dezembro, quando a palavra começou a lhe
instigar. Até então, a morte era associada a um inseto (formiga, barata ou
“jonaninha”) visto inerte no meio da calçada: morrer era ficar parado. Com a questão do “não existir mais”, ele
transcendia a “inércia” da morte. Num só momento ele tomava consciência de que
viver era existir e, ao mesmo tempo, que esse existir era finito e que havia a
possibilidade da não existência. Ser ou não ser.
Assim, diante da sua pergunta, só pude responder: “sim, ela não existe
mais”. Mas com a tranquilidade de quem já sabia a resposta, ele se deu por
satisfeito naquele momento e já saiu correndo pela casa, com a serenidade de
sempre. Lá foi ele existir.
Eu já devia estar acostumado com essas surpresas – aos três anos,
brincando com uma calculadora, ele exclamou: “papai, os números não tem fim!”
–, mas as crianças parecem feitas para nos restituir o deslumbramento. E foi assim que, dias depois, ao ouvir que a
cachorrinha teria dez anos, João Pedro, discordou: “não, a vovó disse que ela
tinha onze anos. Mas ela não vai mais fazer doze”.
Então eu compreendi que aquela cachorrinha, que não existia mais,
tinha cumprido sua função. Além de
companheira incansável de sua dona – verdadeira sombra que acompanhava
cambaleante de sono os passos mais queridos nos despertares na madrugada; ou
que esperava tristonha no alto da escada, se recusando a brincar com quem
fosse, enquanto sua amada não voltasse da rua ou de viagem –, a cachorrinha
tinha introduzido o menino nos mistérios da existência.
E enquanto meu pequeno hamlet de calças curtas corre pela casa,
recriando-se em infinitas existências para além daquela sala, eu me lembro da
cachorrinha que não existe mais.
Não mesmo? Eis a (outra) questão.
Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de
Piracicaba em 8/2/13
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