quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Doce refúgio

(caio silveira ramos)

Quem andou pelo Bairro Alto entre as décadas de 1970 e 1990 deve ter conhecido uma farmácia na esquina das ruas Moraes Barros e São João.  E se conheceu a farmácia, não se esquece de quem ficou atrás de seu balcão durante todo aquele período e ali teceu a vida de sua família: seu Pedro Boscariol.
Eu, que tantas vezes subi e desci a Moraes Barros, nunca deixei de olhar para os lados da farmácia e saudar aquela figura alta, de cabelos e bigode escuros.   E no sorriso-resposta ao meu aceno, flutuava um abraço tão paternal e certo, que meu passo se encorajava e eu seguia em paz.   Tudo porque o sorriso abrigava não só aquele abraço, mas pessoas, uma casa, uma família toda, que era (e para sempre será) também minha.
Nos meus pesadelos mais terríveis, nos meus desencontros sonhados, se não vislumbro o caminho de casa, vou logo para a rua São João e corro até o portão que dá acesso a uma vila, não muito distante da farmácia.   Lá, percorro um corredor, passo ao lado de um gramado e chego finalmente à última casa. Estranhamente, ela nunca está fechada. E naquela casa, nos pesadelos transformados em sonhos tranquilos, ainda mora meu refúgio e a família de Pedro Boscariol, que me recebe menino e acalenta meu sono até o despertar de um dia sem medo.
Desde que me entendo por gente, faço parte daquela família feita do sorriso mais doce da Jacque, do olhar mais maroto da Ju, da voz amorosa de dona Terezinha (que me aconchega até hoje) e da serenidade do querido e saudoso seu Pedro.  Não sei quando, não sei como tudo começou, mas quando me vi, vivo e risonho, já estava lá naquela casa, brincando com o filho de seu Pedro: Nando, o melhor amigo que minha infância feliz poderia esperar.
Fui tantas vezes àquela casa, na vigília ou nos sonhos, que conheço de olhos fechados todos os seus cômodos, as fotos das crianças na parede, o quadro de São Francisco de Assis, a cozinha, a rede no quintal.    Naquela casa, me escondi atrás do tanque brincando de caubói, planejamos (mas só planejamos) fazer um “z” no espelho como se o próprio Zorro tivesse passado por lá e, no corredor comprido do fundo do quintal, jogamos bola em campeonatos que não terminaram até hoje.   
Muito por causa de Nando Boscariol, me tornei palmeirense.   Como ele e o pai eram torcedores doentes do São Paulo, precisávamos ter times diferentes para que nossos jogos imaginários se estendessem em prorrogações de arrebentar corações desavisados.   Assim, um desprezado (por meu amigo) pôster do “Palmeiras - Campeão Paulista de 1976”, brinde de um álbum de figurinhas da época, foi parar na minha parede e meu sangue virou verde.   Mas se dependesse de mim, meu time nunca mais seria campeão (como de fato não foi por longos 17 anos), pois Nando era o melhor jogador do mundo.  Habilidoso, driblador, valente: com meu “adversário” eu não tinha muita chance, principalmente quando ele apareceu com uma pedalada no ar que pegava a bola de sem pulo e o gol era certeiro.    E mesmo que eu tentasse imitar meu amigo, encontrava pela frente o maior goleiro que nossas traves feitas de bujão de gás ou tijolo podiam encontrar.     Tanto que, anos depois, assisti orgulhoso a um jogo preliminar da equipe júnior do XV e Nando Boscariol foi grande destaque.
Mas se Nando poderia ser hoje goleiro tão famoso quanto Marcos e Rogério Ceni (por coincidência, os mais recentes ídolos de nossos times), ele preferiu ser professor.   Amado (que eu sei) por seus alunos, ele faz o esporte se transformar em caminho seguro para suas crianças.   
Durante as férias, sonhei mais uma vez com aquela casa e aquela família, e resolvi passear com meu filho em frente ao portão da vila na rua São João, que há muitos anos já não é endereço dos Boscariol.  Ficamos olhando o corredor da entrada e de repente vimos Nando e eu, ambos pequenos, jogando bola ali mesmo: um esfolando o dedo no cimento encrespado das paredes, enquanto o outro (ele) marcava mais um gol.   Depois, mesmo sem ultrapassar o portão, eu e meu filho passeamos pela vila e brincamos no gramado onde Nando criou porquinhos-da-índia e me senti como Bandeira.    Por fim, chegando à última casa, encontramos a porta aberta: olhamos as fotos na parede, comemos pão com manteiga preparado por Dona Teresinha e, feito um passarinho, meu pequeno saiu brincando comigo e com um Nando-menino: éramos zorros, sacis e índios, valdir peres e leões. Depois, eu e meu filho dormimos na rede colorida daquele quintal e sonhamos que, em suas aulas, o professor Luís Fernando leva, guardados dentro peito, sua antiga casa, sua família e seu velho amigo de infância.  E ensina para os novos meninos a força da amizade para a vida inteira. 

Talvez à noite ele também sonhe com a minha casa: lá, Nando sobe as escadas, passa pela sala e encontra um eu-menino que o espera ansioso para mais uma partida infinita.  Corremos pelo piso de pedras vermelhas, driblando as azuis e amarelas salpicadas aqui e ali. E, mesmo torcendo por times rivais, sabemos que naquele pátio (ou em seu antigo quintal) nossa amizade nos fez irmãos para sempre.

   Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 3/8/2012

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