(caio silveira ramos)
Quem andou
pelo Bairro Alto entre as décadas de 1970 e 1990 deve ter conhecido uma
farmácia na esquina das ruas Moraes Barros e São João. E se conheceu a
farmácia, não se esquece de quem ficou atrás de seu balcão durante todo aquele
período e ali teceu a vida de sua família: seu Pedro Boscariol.
Eu, que
tantas vezes subi e desci a Moraes Barros, nunca deixei de olhar para os lados
da farmácia e saudar aquela figura alta, de cabelos e bigode
escuros. E no sorriso-resposta ao meu aceno,
flutuava um abraço tão paternal e certo, que meu passo se encorajava e eu
seguia em paz. Tudo porque o sorriso abrigava não só aquele abraço,
mas pessoas, uma casa, uma família toda, que era (e para sempre será) também
minha.
Nos meus
pesadelos mais terríveis, nos meus desencontros sonhados, se não vislumbro o
caminho de casa, vou logo para a rua São João e corro até o portão que dá
acesso a uma vila, não muito distante da farmácia. Lá, percorro um
corredor, passo ao lado de um gramado e chego finalmente à última casa. Estranhamente,
ela nunca está fechada. E naquela casa, nos pesadelos transformados em sonhos
tranquilos, ainda mora meu refúgio e a família de Pedro Boscariol, que me
recebe menino e acalenta meu sono até o despertar de um dia sem medo.
Desde que
me entendo por gente, faço parte daquela família feita do sorriso mais doce da
Jacque, do olhar mais maroto da Ju, da voz amorosa de dona Terezinha (que me
aconchega até hoje) e da serenidade do querido e saudoso seu Pedro. Não
sei quando, não sei como tudo começou, mas quando me vi, vivo e risonho, já
estava lá naquela casa, brincando com o filho de seu Pedro: Nando, o melhor
amigo que minha infância feliz poderia esperar.
Fui tantas
vezes àquela casa, na vigília ou nos sonhos, que conheço de olhos fechados
todos os seus cômodos, as fotos das crianças na parede, o quadro de São
Francisco de Assis, a cozinha, a rede no quintal. Naquela
casa, me escondi atrás do tanque brincando de caubói, planejamos (mas só
planejamos) fazer um “z” no espelho como se o próprio Zorro tivesse passado por
lá e, no corredor comprido do fundo do quintal, jogamos bola em campeonatos que
não terminaram até hoje.
Muito por
causa de Nando Boscariol, me tornei palmeirense. Como ele e o pai
eram torcedores doentes do São Paulo, precisávamos ter times diferentes para
que nossos jogos imaginários se estendessem em prorrogações de arrebentar
corações desavisados. Assim, um desprezado (por meu amigo) pôster
do “Palmeiras - Campeão Paulista de 1976”, brinde de um álbum de figurinhas da
época, foi parar na minha parede e meu sangue virou verde. Mas se
dependesse de mim, meu time nunca mais seria campeão (como de fato não foi por
longos 17 anos), pois Nando era o melhor jogador do mundo. Habilidoso,
driblador, valente: com meu “adversário” eu não tinha muita chance,
principalmente quando ele apareceu com uma pedalada no ar que pegava a bola de
sem pulo e o gol era certeiro. E mesmo que eu tentasse imitar
meu amigo, encontrava pela frente o maior goleiro que nossas traves feitas de
bujão de gás ou tijolo podiam encontrar. Tanto que,
anos depois, assisti orgulhoso a um jogo preliminar da equipe júnior do XV e
Nando Boscariol foi grande destaque.
Mas se
Nando poderia ser hoje goleiro tão famoso quanto Marcos e Rogério Ceni (por
coincidência, os mais recentes ídolos de nossos times), ele preferiu ser
professor. Amado (que eu sei) por seus alunos, ele faz o esporte se
transformar em caminho seguro para suas crianças.
Durante as
férias, sonhei mais uma vez com aquela casa e aquela família, e resolvi passear
com meu filho em frente ao portão da vila na rua São João, que há muitos anos
já não é endereço dos Boscariol. Ficamos olhando o corredor da entrada e
de repente vimos Nando e eu, ambos pequenos, jogando bola ali mesmo: um esfolando
o dedo no cimento encrespado das paredes, enquanto o outro (ele) marcava mais
um gol. Depois, mesmo sem ultrapassar o portão, eu e meu filho
passeamos pela vila e brincamos no gramado onde Nando criou porquinhos-da-índia
e me senti como Bandeira. Por fim, chegando à última casa,
encontramos a porta aberta: olhamos as fotos na parede, comemos pão com
manteiga preparado por Dona Teresinha e, feito um passarinho, meu pequeno saiu
brincando comigo e com um Nando-menino: éramos zorros, sacis e índios, valdir
peres e leões. Depois, eu e meu filho dormimos na rede colorida
daquele quintal e sonhamos que, em suas aulas, o professor Luís Fernando leva,
guardados dentro peito, sua antiga casa, sua família e seu velho amigo de
infância. E ensina para os novos meninos a força da amizade para a vida
inteira.
Talvez à
noite ele também sonhe com a minha casa: lá, Nando sobe as escadas, passa pela
sala e encontra um eu-menino que o espera ansioso para mais uma partida
infinita. Corremos pelo piso de pedras
vermelhas, driblando as azuis e amarelas salpicadas aqui e ali. E, mesmo
torcendo por times rivais, sabemos que naquele pátio (ou em seu antigo quintal)
nossa amizade nos fez irmãos para sempre.
Ilustração: Erasmo Spadotto - cedida
pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 3/8/2012
Publicado no Jornal de Piracicaba em 3/8/2012
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