sexta-feira, 13 de julho de 2018

A saudade que ficou


(caio silveira ramos)

Agora neste ano de 2018, o dia 4 de maio me pregou mais uma peça: faleceu o compositor Elzo Augusto. Exceto pelo também compositor e intérprete Luiz Ayrão, que publicou um belo texto sobre Elzo em uma rede social, não houve notícias em jornais, nem lamentos de outros artistas. 
Como acontece com a maioria dos compositores populares brasileiros, Elzo não era conhecido do grande público, mas suas músicas até hoje são tocadas em rodas de samba infinitas e até em intermináveis festas infantis. É dele, por exemplo, “A saudade que ficou (O lencinho)”, sucesso na voz do já citado Luiz Ayrão (que também assina o samba por meio de um de seus pseudônimos: Joãozinho da Rocinha). E é de Elzo Augusto a inconfundível versão em português de uma canção que na internet consta como de autoria de Honorio Herrero e Luis Gomez Escolar: “Comer, comer” (“comer, comer, comer, comer é o melhor para poder crescer”) que foi inicialmente gravada pelo grupo “Brazillian Genghis Khan”, se transformou num estrondoso sucesso, recebeu regravações de inúmeros outros artistas e conjuntos, e até hoje tem seu refrão cantado por milhares de crianças.
Elzo nasceu Elso (mas era para ser Nelson) em Jaboticabal, em 19 de setembro de 1930.  A partir da década de 1950 passou a ser gravado por intérpretes fabulosos como Ângela Maria, Jamelão, Gilberto Alves, Joel de Almeida, Demônios da Garoa, Francisco Egídio, Luiz Gonzaga, Dalva de Oliveira, Hebe Camargo, Pery Ribeiro, Isaurinha Garcia, Luiz Ayrão e Germano Mathias.  Como se não bastasse, os apresentadores Silvio Santos e Chacrinha também gravaram músicas compostas por Elzo com muito sucesso.  Isso sem falar nos inúmeros artistas de quem ele foi empresário.  Aliás, graças ao Elzo, pude conhecer o mítico Jamelão após um show memorável no SESC Ipiranga.
No livro “Sambexplícito: as vidas desvairadas de Germano Mathias”, me debrucei um pouco sobre a obra de Elzo Augusto e, em um capítulo a ele dedicado, apelidei-o de “A lanterna de Diógenes”. 
A imagem me veio quando descobri que Elzo, ao lado de José Saccomani e Jorge Martins, compusera o sucesso de Gilberto Alves “Lanterna na mão” (1960). Então, para ilustrar um período difícil na carreira de Germano, divaguei: “A partir da década de 1970, apenas carregando orgulhoso os farrapos do seu samba, Mathias, esmigalhado pelo reverso da fama e da fortuna, passou a perambular no pseudo-túmulo paulistano para vasculhar entre os mortos a música verdadeira. Foi então que Elzo se transfigurou na lanterna daquele diógenes, guiando-o por entre as ruelas, não deixando que ele tropeçasse nos corpos estendidos, sacando da escuridão palcos e síncopes para iluminar o seu caminho desesperado. E ainda hoje, mesmo aquecido pelo sol de Taipas, Diógenes, em seu tonel, mantém a lanterna acesa”.
Pois não era de Elzo a composição “Costela Predileta”, samba que me fez descobrir a figura espantosa de Germano Mathias cantando entusiasmada nas noites de sábado no programa “Festa Baile” da TV Cultura? Não era de Elzo o sincopado-manifesto “Samba da periferia”, declaração de princípios com que Germano abria apoteoticamente seus shows?  Não fora  Elzo quem compusera para a Escola de Samba “Flor da Penha” o samba-enredo em homenagem a Mathias “Esquentando a memória do povo”?  Não tinha sido o palmeirense Elzo quem criara o hoje clássico “Bandeira do Timão”, fazendo Germano voltar a um estúdio para gravar depois de décadas?  Não tinha sido Elzo quem, em 2002, compusera todas as faixas e produzira “Talento de Bamba”, primeiro CD solo de inéditas do “Catedrático do Samba”, que tinha gravado seu último LP lá em 1974?  Pois foi Elzo, poeta introspectivo que Mathias sempre admirou, quem nunca deixou de acreditar no talento de seu amigo bamba e, por ele, se transfigurou em lanterna e porto seguro.
Alguém poderá dizer que Elzo era um homem duro, seco, mas o conheci graças a sua humildade. Graças a sua generosidade. Um certo dia, recebi uma ligação e a voz rouca de Elzo Augusto se apresentou.  A seguir, disse que tinha apreciado muito dois sambas meus cantados por Germano e por isso gostaria de me encaminhar algumas de suas letras para que eu colocasse melodias.  Me envergonhei, não me senti capaz, mas disse que sim, ficava orgulhoso do convite, da confiança e da futura parceria.  Ele me enviou pelo correio dezenas de canções e sambas cuidadosamente datilografados e eu, muito sem jeito, coloquei minhas melodias encabuladas.  Elzo gravou algumas delas em CDs autorais que me enviou de presente assim que saíram do forno.
Quando soube apenas um mês depois que “Ela” – assim Elzo chamava a morte, inclusive num samba antológico gravado por Mathias – viera encontrá-lo após tantas escapadas, liguei para Germano que ficou estarrecido com a notícia. 
Para consolá-lo, lembramos de tantas gravações que ele fizera dos sambas de Elzo durante décadas.  Ele cantou alguns, mas depois se calou.  Precisava desligar o telefone.
Para me consolar, peguei o livro “Extensão de mim”, no qual Elzo conta um pouco de sua vida, lembra de suas composições e escreve sobre seus parceiros.  Na página 126 ele me dedicou um verso singelo: “Você, novo parceirinho, meu balaio está cheio de letras e temas pra ganhar seu cavaquinho”.
Por aí vou assobiando: uma melodia me chega, depois vem outra, e outra, e outra, mas já não há as letras de Elzo Augusto para que elas descansem e se abriguem.  Então as melodias se fazem esquecer, se emudecem, se perdem no ar.
Que um dia elas, livres de mim, possam nascer de novo no peito de outros poetas. 

Publicado no Jornal de Piracicaba em 24/6/2018

Um comentário:

  1. Muito obrigada Caio Silveira Ramos pelo carinho e sensibilidade de suas palavras!

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