(caio silveira
ramos)
Agora
neste ano de 2018, o dia 4 de maio me pregou mais uma peça: faleceu o
compositor Elzo Augusto. Exceto pelo também compositor e intérprete Luiz Ayrão,
que publicou um belo texto sobre Elzo em uma rede social, não houve notícias em
jornais, nem lamentos de outros artistas.
Como
acontece com a maioria dos compositores populares brasileiros, Elzo não era
conhecido do grande público, mas suas músicas até hoje são tocadas em rodas de
samba infinitas e até em intermináveis festas infantis. É dele, por exemplo, “A
saudade que ficou (O lencinho)”, sucesso na voz do já citado Luiz Ayrão (que
também assina o samba por meio de um de seus pseudônimos: Joãozinho da
Rocinha). E é de Elzo Augusto a inconfundível versão em português de uma canção
que na internet consta como de autoria de Honorio Herrero e Luis Gomez Escolar:
“Comer, comer” (“comer, comer, comer, comer é o melhor para poder crescer”) que
foi inicialmente gravada pelo grupo “Brazillian Genghis Khan”, se transformou
num estrondoso sucesso, recebeu regravações de inúmeros outros artistas e
conjuntos, e até hoje tem seu refrão cantado por milhares de crianças.
Elzo
nasceu Elso (mas era para ser Nelson) em Jaboticabal, em 19 de setembro de
1930. A partir da década de 1950 passou
a ser gravado por intérpretes fabulosos como Ângela Maria, Jamelão, Gilberto
Alves, Joel de Almeida, Demônios da Garoa, Francisco Egídio, Luiz Gonzaga,
Dalva de Oliveira, Hebe Camargo, Pery Ribeiro, Isaurinha Garcia, Luiz Ayrão e
Germano Mathias. Como se não bastasse,
os apresentadores Silvio Santos e Chacrinha também gravaram músicas compostas
por Elzo com muito sucesso. Isso sem
falar nos inúmeros artistas de quem ele foi empresário. Aliás, graças ao Elzo, pude conhecer o mítico
Jamelão após um show memorável no SESC Ipiranga.
No livro
“Sambexplícito: as vidas desvairadas de Germano Mathias”, me debrucei um pouco
sobre a obra de Elzo Augusto e, em um capítulo a ele dedicado, apelidei-o de “A
lanterna de Diógenes”.
A imagem
me veio quando descobri que Elzo, ao lado de José Saccomani e Jorge Martins,
compusera o sucesso de Gilberto Alves “Lanterna na mão” (1960). Então, para
ilustrar um período difícil na carreira de Germano, divaguei: “A partir da
década de 1970, apenas carregando orgulhoso os farrapos do seu samba, Mathias,
esmigalhado pelo reverso da fama e da fortuna, passou a perambular no
pseudo-túmulo paulistano para vasculhar entre os mortos a música verdadeira.
Foi então que Elzo se transfigurou na lanterna daquele diógenes, guiando-o por
entre as ruelas, não deixando que ele tropeçasse nos corpos estendidos, sacando
da escuridão palcos e síncopes para iluminar o seu caminho desesperado. E ainda
hoje, mesmo aquecido pelo sol de Taipas, Diógenes, em seu tonel, mantém a
lanterna acesa”.
Pois não
era de Elzo a composição “Costela Predileta”, samba que me fez descobrir a
figura espantosa de Germano Mathias cantando entusiasmada nas noites de sábado
no programa “Festa Baile” da TV Cultura? Não era de Elzo o sincopado-manifesto
“Samba da periferia”, declaração de princípios com que Germano abria apoteoticamente
seus shows? Não fora Elzo quem compusera para a Escola de Samba
“Flor da Penha” o samba-enredo em homenagem a Mathias “Esquentando a memória do
povo”? Não tinha sido o palmeirense Elzo
quem criara o hoje clássico “Bandeira do Timão”, fazendo Germano voltar a um
estúdio para gravar depois de décadas?
Não tinha sido Elzo quem, em 2002, compusera todas as faixas e produzira
“Talento de Bamba”, primeiro CD solo de inéditas do “Catedrático do Samba”, que
tinha gravado seu último LP lá em 1974? Pois foi Elzo, poeta introspectivo que Mathias
sempre admirou, quem nunca deixou de acreditar no talento de seu amigo bamba e,
por ele, se transfigurou em lanterna e porto seguro.
Alguém
poderá dizer que Elzo era um homem duro, seco, mas o conheci graças a sua
humildade. Graças a sua generosidade. Um certo dia, recebi uma ligação e a voz
rouca de Elzo Augusto se apresentou. A
seguir, disse que tinha apreciado muito dois sambas meus cantados por Germano e
por isso gostaria de me encaminhar algumas de suas letras para que eu colocasse
melodias. Me envergonhei, não me senti
capaz, mas disse que sim, ficava orgulhoso do convite, da confiança e da futura
parceria. Ele me enviou pelo correio
dezenas de canções e sambas cuidadosamente datilografados e eu, muito sem
jeito, coloquei minhas melodias encabuladas.
Elzo gravou algumas delas em CDs autorais que me enviou de presente
assim que saíram do forno.
Quando
soube apenas um mês depois que “Ela” – assim Elzo chamava a morte, inclusive
num samba antológico gravado por Mathias – viera encontrá-lo após tantas
escapadas, liguei para Germano que ficou estarrecido com a notícia.
Para
consolá-lo, lembramos de tantas gravações que ele fizera dos sambas de Elzo
durante décadas. Ele cantou alguns, mas
depois se calou. Precisava desligar o
telefone.
Para me
consolar, peguei o livro “Extensão de mim”, no qual Elzo conta um pouco de sua
vida, lembra de suas composições e escreve sobre seus parceiros. Na página 126 ele me dedicou um verso
singelo: “Você, novo parceirinho, meu balaio está cheio de letras e temas pra
ganhar seu cavaquinho”.
Por aí
vou assobiando: uma melodia me chega, depois vem outra, e outra, e outra, mas
já não há as letras de Elzo Augusto para que elas descansem e se abriguem. Então as melodias se fazem esquecer, se
emudecem, se perdem no ar.
Que um
dia elas, livres de mim, possam nascer de novo no peito de outros poetas.
Publicado
no Jornal de Piracicaba em 24/6/2018
Muito obrigada Caio Silveira Ramos pelo carinho e sensibilidade de suas palavras!
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