(caio silveira
ramos)
Para
Fernado Szegeri
Ela vinha sempre na volta pra
casa, no último dia de aula, assim que eu descia do ônibus no ponto da rua XV
de Novembro, quase esquina com a São João.
Durante o ano, ela desaparecia,
dessonhava, devia viver em algum canto esperando seu momento: eu não me
lembrava dela e ela se esquecia de mim. Nem mesmo nas férias de julho ela se
manifestava. Só mesmo no último dia, ali, pelo final de novembro, começo de
dezembro. Era botar o pé pra fora do ônibus e a sensação de liberdade, a
perspectiva de liberdade e a própria liberdade me traziam o nananã de uma
melodia que eu não conseguia decifrar, segurar pelos cabelos, fixar na memória.
E eu ia flutuando, flutuando, cantarolando aquela música que crescia exultante,
me levando pro alto, me fazendo voar mesmo sem letra até a porta de casa, onde
de fato as férias começavam. Onde as férias incitavam aquele som de liberdade a
me preencher a alma. Som que seria
retirado novamente de dentro do meu peito apenas um ano depois.
De onde viria aquela melodia de
liberdade e de alegria incontida? Minha não era: não tinha vindo de um sonho.
Talvez tivesse surgido de dentro de um rádio que vivesse estacionado na cozinha
de casa ou de outro que gostasse de espalhar seus sons pela rua. Talvez da TV,
de uma trilha sonora de uma novela que esperava o jornal das 8 ou que se
propagandiava durante os intervalos da Sessão da Tarde. Só sei que durante os quatro anos do ginásio
e os três do colegial, a melodia me encontrava no lugar e no dia certos.
Sempre. Mas eu, naqueles tempos pré-internéticos, nunca consegui encontrar sua
origem e seu caminho.
Entrei na Faculdade e durante os
cinco anos, por capricho, sempre no último dia de aula, voltando de São Paulo,
só para encontrar a melodia que marcava o início das minhas férias (e da minha
liberdade), eu deixava de desembarcar na rodoviária para saltar do ônibus na
esquina da Moraes com a Independência. Ia descendo a pé, desviava do meu
caminho, entrava na rua Bom Jesus e por fim dobrava a XV só para passar de
propósito pelo velho ponto de ônibus quase na esquina com a São João. E
milagrosamente a melodia vinha. Solta. Sem letra, sem nome, sem autoria.
E me preenchia de liberdade.
***
Num final de semana em Ribeirão
Preto, na casa da minha irmã, ouvi, vindo pela janela, a melodia sonhada. A
melodia que me aparecia sempre no último dia de aula e que marcava
misteriosamente, desde a infância, o início das minhas férias.
A música começou com um “deixa
estar...”, mas depois não consegui decifrar mais nada: alguém abaixou o som do
rádio, trocou de canal, desligou o mundo. Mas como nessa época eu já tinha sido
completamente envolvido pelo samba, ainda consegui apreender a voz do cantor:
sem dúvida nenhuma, era uma composição interpretada por João Nogueira.
Com a ajuda da internet,
encontrei a listagem completa dos seus discos e músicas, mas entre os diversos
títulos, não aparecia nada que fizesse qualquer referência às palavras mágicas
“deixa estar”.
Passei a vasculhar lojas de
discos, sebos e estantes de casas de amigos atrás dos sambas daquele João. E fui ouvindo, descobrindo, redescobrindo a
beleza gingada de seu canto. A força transformadora do seu poder de criação. Seu e de parceiros como o grande poeta Paulo
César Pinheiro. E assim, me embriaguei de “Espelho”, “Além do espelho”,
“Súplica”, “Minha Missão”, “E lá vou eu”, “Nó na Madeira”, “Mineira”, “Se
segura, segurança”, “Batendo a porta”, “Eu, hein, Rosa!” e tantos outros.
Topei então com o LP “Boca do
Povo”, de 1980. E como sempre fazia a cada audição de um disco do João, para
saborear ainda mais minha busca e meu sonhado encontro, fui colocando o
comecinho de cada faixa, uma a uma. E assim foram brotando sambas como “Poder
da Criação”, “Mulher valente é minha mãe” e o clássico de Padeirinho e Ferreira
dos Santos, “Linguagem do Morro”.
Então, na 12ª faixa (justamente a
última!), após uma introdução feita só pela batida da percussão, começou um
samba-amaxixado iniciado pelo esperado “deixa estar” e com a melodia sonhada.
Ali estava o samba que me alimentou de liberdade durante tantos anos.
“Bons ventos”, do próprio João
Nogueira e de Ivor Lancellotti – compositor que carrega na voz e na criação o
som de uma alma enluarada que encantou e encanta intérpretes como Clara Nunes
(que, entre outras, gravou “Sem companhia” e “Amor perfeito”, ambas parcerias
com Paulo César Pinheiro) e Roberto Carlos (“Abandono”) –, traz a história de
alguém que anseia desistir de um amor para, aos poucos, reabrir o coração. De qualquer forma, a letra trata da esperança
de “um novo amanhecer”, o que rima com a inspiração de liberdade que a música
há tanto tempo já me oferecia.
Recentemente, descobri que a
composição tinha figurado como uma das faixas da trilha sonora de uma novela
das 18 horas da Rede Globo, “As Três Marias”, baseada no romance homônimo de
Rachel de Queiroz e exibida de novembro de 1980 a maio de 1981. Não me lembro de ter assistido à novela –
embora me recorde das atrizes protagonistas -, mas foi naquele período que o
bendito samba me enfeitiçou.
Observo agora a foto da capa do
tal LP “Boca do Povo”: nela, João Nogueira sorri feliz enquanto ouve um radinho
de pilha. Se não fosse a impossibilidade do tempo, alguém poderia dizer que ele
fala com alguém ao celular.
Gosto de sonhar assim: João, de
fato, atravessa o tempo e fala comigo: depois de mandar um abraço do parceiro
Ivor Lancellotti, pergunta se eu continuo andando por aí, cantarolando seu
samba.
Emocionado, mesmo sem conseguir
responder ao poeta, “devagar, vou abrindo meu coração” com a certeza de que “o
amor vai sobreviver”.
E lalariando a melodia pelas
ruas, vou me perder pelo tempo.
Ilustração de Erasmo Spadotto - cedida pelo Jornal de Piracicaba
Publicado no Jornal de Piracicaba em 10 e 17/12/2017
Publicado no Jornal de Piracicaba em 10 e 17/12/2017
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